Quando os americanos forem às urnas em 2020 para escolher o presidente, fará um século que as mulheres tiveram pela primeira vez o direito de voto naquele país. E, se é verdade que ainda faltam quase dois anos, a corrida à nomeação democrata é já a mais feminina de sempre. São seis as mulheres que anunciaram a candidatura: a Kamala Harris, Elizabeth Warren, Tulsi Gabbard, Kirsten Gillibrand e Marianne Williamson juntou-se no domingo Amy Klobuchar. Casadas, divorciadas, mães, avós, com idades entre os 37 e os 69 anos, todas têm o mesmo objetivo: vencer a nomeação democrata e tirar Trump da Casa Branca, tornando-se a primeira mulher presidente dos Estados Unidos.."Toda a minha carreira ouvi dizer 'as pessoas não estão prontas, não chegou o teu tempo, nunca uma pessoa como tu fez isto'", explicava Harris num encontro com a população, há dias, no Iowa. Para logo acrescentar: "As pessoas que votam, as pessoas que vivem neste país, são mais inteligentes do que isso." O pequeno estado do Midwest é tradicionalmente o primeiro a votar nas primárias, começando a atrair candidatos muitos antes do dia dos caucus - as assembleias populares que decidem o nomeado de cada partido, previstas para 3 de fevereiro 2020. "Uma pessoa como" Kamala Harris é uma filha de imigrantes - ele jamaicano, ela indiana -, uma mulher que se inspirou na mãe, especialista em cancro e ativista, para uma carreira que começou no Direito mas cedo passou para a política. Uma mulher que enquanto procuradora em São Francisco se notabilizou pela luta contra o tráfico de droga. Uma progressista que se empenhou na defesa do ambiente, na luta pelo casamento entre homossexuais e na proteção do Obamacare (a reforma da saúde do ex-presidente Barack Obama que deu seguro a mais 20 milhões de americanos)..Senadora da Califórnia desde 2017, Harris tem sido comparada a Obama - filho de um estudante queniano e de uma americana branca do Kansas - e sonha tornar-se a primeira mulher, na primeira negra e na primeira pessoa de origem indiana na Casa Branca..Casada desde 2014 com o advogado Douglas Emhoff, a senadora tem dois enteados e vive em Los Angeles. Isso não impediu alguns setores conservadores de, ainda ela não tinha lançado a campanha, já acusarem de ter usado as relações pessoais para subir na carreira. Nos anos 90, Harris teve uma relação com o ex-mayor de São Francisco Willie Brown. Este ainda era casado, apesar de estar separado desde 1981. A relação terminou em 1995, mas Brown veio dizer: "Sim, namorámos... Sim, posso ter influenciado a carreira dela ao nomeá-la para duas comissões quando era presidente da Assembleia.".Palavras logo usadas pelos conservadores para atacar a senadora, chegando alguns a acusá-la de "prostituir-se até ao topo". Mas também houve vozes a defendê-la: "Este é o tipo de movimentação sexista que os homens têm em relação às mulheres há demasiado tempo. Tem de parar", escreveu no Twitter Kasie Hunt, pivô da MSNBC..O ano das mulheres.Com tantas mulheres na corrida - pela primeira vez nos EUA há mais do que uma candidata à nomeação de um grande partido às presidenciais - a questão da "amabilidade" (likability) das candidatas, da empatia que despertam no leitor, volta ao debate..Se em 2008 Hillary Clinton perdeu para Obama a nomeação democrata, oito anos depois a ex-primeira-dama, ex-senadora e ex-secretária de Estado fez história ao tornar-se a primeira mulher nomeada por um grande partido. Mas ninguém duvida que ser mulher teve um papel na sua derrota. Logo em 2008 o próprio Obama lhe lançou num debate que ela era "suficientemente amável" e em 2016, quando a democrata o tentou acusar de desprezar e assediar as mulheres, Trump contra-atacou convidando para um debate várias mulheres que se diziam vítimas de ataques sexuais por parte do ex-presidente Bill Clinton..Contam-se as candidatas a presidente e vice pelos dedos das mãos.Da personalidade às roupas, passando pelo tom de voz, Hillary foi alvo de um escrutínio dos media que os candidatos masculinos não sofreram. E isso acontece com qualquer mulher candidata a um cargo público..À presidência foram poucas. Em 2016, do lado republicano, a empresária Carly Fiorina e a congressista Michele Bachmann chegaram às primárias em 2016, acabando por desistir. O pioneirismo foi para Victoria Woodhull, que em 1872, ainda antes de as mulheres terem direito de voto, se lançou na corrida. Mas alguns historiadores contestam a candidatura, lembrando que não tinha ainda os 35 anos exigidos pela Constituição. Mais recentemente, Shirley Chisholm ou Carol Mosley Brown entraram nas primárias democratas em 1972 e 2004, enquanto Margaret Chase Smith, em 1964, disputou a nomeação republicana..Mesmo quando falamos da vice-presidência dos EUA, nunca uma mulher ocupou o cargo. E até hoje, nos grandes partidos, só Sarah Palin, em 2008, foi escolhida pelo republicano John McCain para vice, depois de em 1984 o democrata Walter Mondale ter feito campanha com Geraldine Ferraro no ticket. Com mais mulheres do que nunca eleitas para o Congresso dos EUA nas intercalares de novembro (217 em ambas as câmaras), 2018 tem sido chamado nos media O Ano das Mulheres. E os democratas acreditam que esta é uma tendência para repetir em 2020..Favorita nas sondagens.Nas sondagens, Kamala Harris é a favorita dos que já avançaram para as primárias democratas. Mas tem bastante concorrência feminina. A ela juntam-se quatro mulheres: a veterana Elizabeth Warren, a também senadora Kirsten Gillibrand, a controversa Tulsi Gabbard e a outsider Marianne Williamson. De todas elas, Warren é claramente a mais experiente. Aos 69 anos, a senadora do Massachusetts chegou a ser falada para vice de Hillary Clinton em 2016. Académica com trabalho focado na lei das falências, ganhou visibilidade nos EUA durante a crise financeira. Liberal, progressista, defensora da proteção do consumidor, da economia de oportunidades e do acesso de todos à saúde, ela própria sentiu na pele as disfunções do sistema: aos 13 anos teve de ir servir às mesas para ajudar a pagar as conta do hospital do pai, impossibilitado de trabalhar por um ataque cardíaco..Apelidada de "Pocahontas" pelo presidente Trump - depois de um teste de ADN ter revelado possuir sangue índio -, Warren não esconde as ideias de esquerda. As críticas à banca e às grandes empresas fizeram dela uma estrela mediática. Mas os críticos acusam-na de não compreender os problemas da classe média. Ao lançar a campanha no início de janeiro, no Iowa, Warren questionava: "Porque é que a classe média americana foi esquecida? O que aconteceu às oportunidades neste país?" Quanto à sua entrada na corrida presidencial, garantiu: "Esta é a batalha da minha vida. Escolhi-a porque ela me escolheu.".Avó de três netos, Warren tem-se demarcado das políticas de Trump, sobretudo em termos internos, defendendo que os EUA precisam de uma reforma da imigração justa, mas que garanta a segurança do país. Em termos de política externa, as suas ideias são mais vagas, defendendo uma estratégia que "beneficie todos os americanos", acusa Trump de ser pressionado por "líderes autoritários" como o russo Vladimir Putin ou o chinês Xi Jinping..A senadora, a ex-militar e a outsider.Mais atrás nas sondagens aparecem Kirsten Gillibrand, 52 anos, e Tulsi Gabbard, 37. A primeira, eleita congressista em 2006 e senadora por Nova Iorque desde 2009, ganhou fama como centrista, defensora do conservadorismo fiscal, de restrições à entrada de imigrantes ou do direito às armas, antes de mudar as posições para a esquerda. Socialmente liberal, apoiante do aborto ou do casamento entre homossexuais, é casada com o britânico Jonathan Gillibrand, que conheceu num encontro às cegas. Têm dois filhos..Mais controversa é Tulsi Gabbard. A congressista do Havai, uma ex-militar que serviu no Iraque e no Koweit, tornou-se em 2012 a primeira americana da Samoa e a primeira hindu eleita para o Congresso. Exemplo da diversidade das candidaturas a 2020, Tulsi, cujo nome significa "basílico sagrado" em sânscrito, é uma feroz populista em termos económicos e não intervencionista em termos de política externa, que gerou críticas ao defender que o presidente Bashar al-Assad não devia ser tirado do poder pela força na Síria. Os dois encontraram-se em janeiro de 2017 durante uma visita de Gabbard à Síria e ao Líbano. Segundo o Politico, a falta de organização está a causar problemas à sua campanha, que o jornal online garante estar "sem rumo"..A última a anunciar a candidatura foi Amy Klobuchar. A senadora do Minnesota entrou na corrida no domingo, no meio de uma tempestade de neve em Minneapolis. E aproveitou para garantir: "O povo está do nosso lado no que diz respeito às alterações climáticas. Porquê? Porque como vocês e eu, acreditam na ciência". Palavras que lhe valeram a ironia de Donald Trump. O presidente tweetou que a senadora parecia "um boneco (a) de neve enquanto falava orgulhosamente de aquecimento global!"..Casada e mãe de uma filha, Klobuchar foi considerada pelo The New York Times e pela revista The New Yorker como a mulher mais provável de se tornar na primeira presidente dos EUA..Nesta lista entra ainda Marianne Williamson. Candidata à Câmara dos Representantes pela Califórnia em 2014, acabou derrotada, mas agora a ativista, escritora e professora de psicoterapia espiritual volta a tentar a sorte, agora na corrida à presidência. Judia, divorciada e mãe de uma filha, aos 66 anos apresenta-se como a outsider, apoiante de uma fronteira aberta, da reforma do sistema judicial ou do pagamento de reparações às vítimas da escravatura..Onde andam os homens?.Mas onde andam os homens no meio disto tudo? Alguns já avançaram, a começar pelo senador de New Jersey Cory Booker, mas também o ex-secretário da Habitação de Obama, Julian Castro. Um afro-americano e um latino, a confirmar que os candidatos masculinos também apostam na diversidade. Mas pesos-pesados como o senador do Vermont Bernie Sanders, um autoproclamado socialista que em 2016 perdeu as primárias para Hillary, ou o ex-vice-presidente Joe Biden ainda não anunciaram se vão ou não concorrer..Resta saber se é desta vez que os americanos quebram o chamado "telhado de vidro" e põem uma mulher na Casa Branca. Por falta de escolha não será..Atualizada dia 12 de fevereiro às 9.00