A arma anda sempre com Cidália, não vá ela ter tempo para ir "fazer uma pranchada". Que é como quem diz, partir pelo menos 25 pratos. E por isso mesmo é impossível resistir ao uso de chavões para traçar o perfil da Bicampeã Mundial de Tiro Desportivo TRAP 5, uma modalidade reconhecida mundialmente como Tiro aos Pratos, mas que em Portugal é considerada um hobby. Cidália Fernandes é, literalmente, uma mulher de armas. Alguém que prefere partir pratos a lavá-los. E para ser Campeã Mundial, no dia 11 de setembro, em Mira, foram 138 pratos partidos....De sorriso fácil e com a "frontalidade respeitosa" que caracteriza os transmontanos, Cidália Fernandes, de 32 anos, revelou ao DN que a relação com armas sempre lhe foi muito familiar graças ao avô Guilhermino, que lhe passou a paixão pelo tiro e pela caça - atividade que não esconde praticar, apesar de hoje em dia não ser bem aceite socialmente..A atiradora garante que tem mais jeito para partir pratos do que para cozinhar e já se habituou a ouvir as pessoas dizerem ao marido: "Cuidado com ela, é uma mulher de armas." Ele sabe-o bem. Foi o marido que a desafiou a passar da caça ao Tiro ao Prato há apenas três anos. Da primeira vez achou "muito difícil" e partiu "apenas cinco pratos", mas o jeito e o gosto fê-la insistir e começar a competir: "A insistência e resistência resultou.".No primeiro ano foi Vice-campeã Nacional, no segundo foi Vice-campeã Nacional e Campeã Mundial e no terceiro foi Campeã Nacional, venceu a Taça de Portugal e revalidou o título Mundial. É caso para dizer que dos regionais aos mundiais foi um "tirinho"..Ser atiradora em Portugal é saber lidar com "o pouco reconhecimento que existe para os desportos que não são futebol", "o esquecimento da interioridade" e adquirir o hábito de "lidar com as dificuldades", sejam elas a falta de tempo para treinar ou o dispendioso equipamento. Só a arma - tem de ser específica, uma espingarda TRAP, de grande alcance - custa cerca de cinco mil euros. Eis há que ter em conta os milhares de munições gastas durante um ano: cartuchos de chumbo e pólvora de 24 gramas..Treina "quando dá" para desassossego do treinador Paulo Moreira. Cidália Fernandes mora em Chaves e sempre que pode dá um saltinho ao campo de tiro do Clube Flaviense de Caça e Pesca Desportiva (só abre ao fim de semana) ou ao campo do Clube Industrial de Pevidém, que representa, e que fica a 45 minutos da cidade. Este ano mudou de trabalho - é Relações Públicas na empresa Lusorecursos, que vai explorar o lítio em Montalegre - e quase não deu uso à arma porque não quis pedir horas para treinar..Desde que foi Campeã Mundial pela primeira vez (2021), a transmontana natural de Vila Verde (Vinhais) tem Estatuto de Atleta de Alta-competição e uma das regalias é obter dispensa laboral para treinar e competir. Só que não se sentiu "confortável" para fazê-lo por ser novata na empresa. Mesmo assim, foi Campeã Nacional e venceu a Taça de Portugal sem treinar..Mas para o Mundial já não arriscou tanto. "Confesso que, antes do Mundial, meti uma semana de férias para me dedicar um bocadinho mais ao treino. Sabia que vinham atletas muito mais preparadas do que eu e precisava de me concentrar e treinar um pouco. Fui para Mira e treinei no campo de tiro onde decorreu o Campeonato do Mundo. Correu muito bem", disse feliz pela revalidação do título, que lhe permitirá manter o Estatuto de Atleta de Alta-competição e lançar-se em "voos mais altos"..Cidália vai abandonar o TRAP-5 e passar a competir em fosso Olímpico com o objetivo de ir aos Jogos de Paris 2024. Foi um passo adiado desde o ano passado pela falta de preparação, mas a atiradora quer dar seguimento à tradição Olímpica do tiro, que já vem desde os primórdios da participação portuguesa, que este ano celebra 110 anos. António Martins participou nos Jogos Olímpicos de Paris 1924 e o filho, Gentil Martins, hoje com 91 anos, esteve nos de Roma 1960. Na semana passada João Costa sagrou-se Campeão Europeu de pistola a 50m..A modalidade exige pontaria e muito treino, que passa em boa medida por ir para o terreno e conhecer as condições para não ir "às escuras" para as provas. Ver a saída do prato, o fosso (local de saída dos pratos), onde eles cruzam, treinar com o esquema que vai estar em prova e saber lidar com o cenário (sol ou nuvens) para perceber se é preciso usar óculos para contrastar a cor do prato.."É uma modalidade que exige muito, mentalmente. A concentração é essencial. Uma distração é um zero (prato falhado). Em prova sou só eu, a arma e o prato", disse a Bicampeã Mundial, revelando que cada vez há mais mulheres a federarem-se, apesar de ainda ser uma modalidade dominada pelos homens..isaura.almeida@dn.pt