A detenção em Pequim, por razões de "segurança nacional", de uma jornalista com dupla nacionalidade chinesa e australiana é o último capítulo da deterioração das relações entre a China e a Austrália. Uma guerra que não é de agora mas que a pandemia de coronavírus veio intensificar..Cheng Lei, uma das mais conceituadas jornalistas de economia da estação de televisão CGTN (controlada pelo governo chinês e que transmite em inglês), foi detida a 14 de agosto. Mas só nesta terça-feira o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Zhao Lijian, disse porquê, alegando que ela era "suspeita de empreender atividades ilegais que põem em risco a segurança nacional da China"..A confirmação surgiu horas depois de os dois últimos correspondentes australianos na China - Mike Smith, da Australian Financial Review (AFR), e Bill Birtles, da estação pública ABC - terem regressado à Austrália, após terem ficado cinco dias protegidos nas missões diplomáticas do país em Pequim e em Xangai, respetivamente. Ambos foram questionados sobre Cheng Lei antes de serem autorizados a partir..Nascida na província de Hunan, na China, em 1975, Cheng Lei foi viver para Melbourne com os pais quando tinha 10 anos. Apesar do sonho de ser jornalista de televisão, tirou o curso de Comércio e Finanças na Universidade de Queensland, sabendo que com os seus traços orientais não seria fácil trabalhar onde queria no país adotivo..Atrás da carreira de sonho, mudou-se para Pequim em 2002, conseguindo um estágio na estação oficial CGTV, antes de ganhar destaque como a correspondente financeira da norte-americana CNBC na China. Em 2012, já estava na CGTN, em língua inglesa, e era um dos rostos mais conhecidos da estação - que entretanto já tirou do site qualquer referência a ela..A 14 de agosto, os colegas e família na Austrália - tem dois filhos pequenos - perderam o contacto. Soube-se apenas dias depois que tinha sido detida e estava em "vigilância residencial", num local desconhecido. Pode ficar assim seis meses sem que sejam apresentadas acusações.."Até à sua detenção, Cheng era a imagem pública da contenção dos media estatais chineses, delineando os planos do país para a contenção e a recuperação económica, enquanto fazia a cobertura de eventos políticos importantes, como o Congresso Nacional do Povo. Mas, em privado, tinha dúvidas sobre muitas das alegações do Partido Comunista Chinês, que tinha agido para assegurar o controlo total da narrativa em relação à crise do coronavírus assim que foi detetado em Wuhan em dezembro", escreveu o The Sydney Morning Herald..No Facebook, as críticas que não são típicas de alguém ligado aos media estatais chineses estavam disponíveis para todos lerem. Cheng Lei mostrava-se frustrada com a forma como o governo estava a lidar com o covid-19, apelidando o presidente chinês Xi Jinping de "Querido Líder", como era conhecido o ditador norte-coreano Kim Jong-il..A Austrália estabeleceu relações diplomáticas com a China em 1972 e esta não é a primeira vez que estas se deterioram. Em 1996, o governo australiano ficou do lado dos EUA na escalada de confrontação por causa das primeiras presidenciais diretas em Taiwan - os norte-americanos enviaram dois porta-aviões para o estreito. A Austrália foi então comparada nos media oficiais chineses a um morcego, que declara a sua fidelidade aos mamíferos quando estes ganham, mas mostra as asas e diz ser um pássaro quando estes vencem..Depois disso, a situação normalizou-se, de tal maneira que a China é o principal parceiro económico da Austrália, representando em 2018 31% de todas as exportações do país (num volume de negócios que era 2,5 vezes superior ao do segundo principal sócio comercial, o Japão)..Mas as coisas não tem estado bem nos últimos anos. Em 2018, por exemplo, cedendo à pressão dos EUA (o seu principal parceiro em matéria de segurança e defesa), a Austrália proibiu a Huawei de participar na construção da sua rede 5G, falando no receio que tal podia representar para a sua segurança nacional..Foi contudo já neste ano que a relação se deteriorou mais rapidamente..Em abril de 2020, a Austrália foi um dos países que ativamente defenderam uma investigação internacional e independente sobre a origem do novo coronavírus, o que foi mal visto por Pequim..Em resposta, o embaixador chinês em Camberra disse que os estudantes e turistas podiam começar a boicotar a Austrália e os consumidores a não consumir os seus produtos agrícolas. Para piorar, os chineses impuseram uma taxa de importação de 80% sobre a cevada australiana e suspenderam as importações de carne de quatro matadouros australianos. E mais recentemente começaram a investigar as de vinho..Um golpe numa altura em que a Austrália entrou oficialmente em recessão por causa da pandemia, sendo a pior recessão desde a década de 1930. Camberra tem contudo um trunfo na relação comercial com Pequim: o minério de ferro. É o maior produtor do mundo e fornece à China dois terços das suas necessidades..Mas a Austrália não ficou por aí e reforçou, em junho de 2020, o seu orçamento para a Defesa - é um aumento de 40% nos custos dos próximos dez anos, quando comparado com a última década. Os analistas indicam que é uma forma de responder ao crescimento da China na região..Pequim acusou nesse mesmo mês Camberra de empreender "projetos de espionagem em massa", apontando para a Austrália como um "fervoroso coletor de inteligência", ao abrigo da aliança dos "Cinco Olhos" com os EUA, o Reino Unido, a Nova Zelândia e o Canadá. Isto depois de denúncias, ainda no ano passado, de que os chineses estariam a tentar fazer eleger um deputado ao Parlamento australiano para servir como espião..Já em julho, a Austrália rejeitou formalmente a posição de Pequim em relação às reclamações territoriais e marítimas no mar do Sul da China, alegando que estas não têm "base legal". Até agora Camberra tinha defendido que as partes envolvidas deviam resolver as suas disputas ao abrigo da lei internacional - em 2016, um tribunal arbitral das Nações Unidas decidiu contra Pequim..Ainda em julho, o governo australiano condenou o executivo de Pequim por causa da nova lei de segurança nacional de Hong Kong, dizendo que tal ameaçava o território como "bastião da liberdade". A Austrália resolveu depois suspender o seu acordo de extradição com a China, oferecendo-se como um "porto seguro" para os cidadãos de Hong Kong, irritando ainda mais os chineses..Os viajantes australianos são ainda avisados em relação às viagens para o território, com a indicação de que existe o risco de poderem violar a lei sem o saberem e acabarem na China continental. Em relação às viagens para a China, além das questões da pandemia de covid-19, avisam que "as autoridades têm detido estrangeiros por pôr em causa a segurança nacional" e que "os australianos também podem correr o risco de detenções arbitrárias"..Além disso, a Austrália está a estudar leis que permitam ao governo federal cancelar acordos entre os governos dos diferentes estados e países terceiros, caso se considere que representem um risco para a política externa australiana. O Parlamento anunciou ainda uma investigação às acusações da alegada influência crescente do Partido Comunista Chinês nas universidades australianas..O deteriorar das relações e a detenção de Cheng Lei levaram os dois únicos correspondentes australianos na China a partir, depois de terem sido interrogados sobre a jornalista - com a qual apenas se tinham cruzado em algumas poucas ocasiões. É a primeira vez desde 1973 que a Austrália não tem um correspondente no país..Bill Birtles, correspondente há cinco anos da estação de televisão ABC na China, onde vive há sete, contou na primeira pessoa o que aconteceu. Na quarta-feira da semana passada, estava a dar uma festa de despedida para alguns amigos e a tentar fazer as malas no seu apartamento em Pequim, depois de a estação, aconselhada pela embaixada australiana, ter comprado um bilhete para que partisse no dia seguinte.."Não queria partir. Sentia-me seguro e tudo parecia normal", apesar da detenção de Cheng. "Estava a pensar se não seria um excesso de preocupação que tinha alimentado o conselho para que saísse. Mas, à meia-noite, bateram à porta", escreveu..Quando abriu a porta viu dois polícias e outras cinco pessoas à civil, com os amigos a dizer para que não o levassem preso, mas tornando-se aparente que não estavam ali para isso. "Em vez disso, os polícias mostraram as identificações do Departamento de Segurança Nacional, disseram-me que estava 'envolvido' num caso e que estava proibido de sair do país. Acrescentaram que tinha 'liberdade de movimento' e que me ligariam na tarde seguinte para organizar uma conversa. E depois partiram.".Na manhã seguinte, foi à embaixada australiana em Pequim. E descobriu que Mike Smith tinha recebido uma visita igual na sua casa em Xangai. O conselho que recebeu foi recusar a conversa quando telefonassem, o que fez, desencadeando negociações de alto nível entre os diplomatas, para garantir que nada aconteceria quando fosse ouvido (já que ficou claro que não poderia sair sem isso). E não sabendo quanto tempo teria de ficar na embaixada..Pensando que se o quisessem deter o teriam feito quando foram à sua casa, aceitou a conversa num hotel em Pequim. Um dos polícias que tinham batido à sua porta estava lá, com mais dois agentes e um tradutor, tendo a conversa sido filmada. Foi questionado sobre a cobertura da lei de segurança em Hong Kong e sobre onde obtinha a informação, mas não de forma aprofundada, e finalmente sobre Cheng.."Ela é alguém que conheço, mas não particularmente bem", indicou, questionando se o caso tinha algo que ver com as relações tensas entre a China e a Austrália e sendo-lhe pedida a opinião sobre o tema. No final, foi-lhe apresentada uma versão em chinês do testemunho, que leu com cuidado e assinou. No dia seguinte, viajou de volta a casa, com escala em Xangai para ir buscar Smith..Twittertwitter1303170118956900353