Cerveira anseia pela abertura da fronteira. Sem os espanhóis não há negócio

A vila raiana do Alto Minho sente os efeitos da fronteira fechada. A reabertura parcial na segunda-feira é boa para os trabalhadores transfronteiriços, mas não chega. O comércio local vive muito dos galegos. "São 60 a 70% do negócio."
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Para descrever a estreita relação entre Vila Nova de Cerveira - e o exemplo podia estender-se a Valença, Monção ou Melgaço, todas na raia minhota - e a vizinha Galiza, Domingos Branco conta uma história ao balcão do restaurante situado no centro histórico da vila do Alto Minho. "Já vieram cá excursões de Lisboa ou do Alentejo e as pessoas perguntaram? 'Isto aqui é Portugal ou Espanha?' Uma pessoa fica surpreendida e quer saber: 'Diz isso porquê?" E a resposta explica tudo: "É que só se ouve gente a falar espanhol."

Depois do confinamento necessário, Cerveira e Tomiño anseiam pelo regresso a uma liberdade de movimentos que colocava muitos galegos a comer nos restaurantes minhotos, permitia fazer compras em Espanha, deixar os filhos no infantário ou ir ao médico no outro lado da fronteira, e, em muitos casos, poder ir para o trabalho no país vizinho pelo caminho habitual. A situação epidemiológica está controlada dos dois lados e a Galiza é uma das regiões espanholas que se prepara para o regresso à normalidade pós-Covid.

O restaurante de Domingos Branco tem o nome de Luso-Galaico e isso explica muito da ligação existente entre Cerveira e o outro lado do rio. A abertura de um posto fronteiriço de passagem controlada, na Ponte Amizade sobre o rio Minho, a partir da próxima segunda-feira, foi bem recebida mas ainda sabe a pouco. Funcionará entre as 07.00 e as 21.00 e destina-se a trabalhadores transfronteiriços que, desde março, têm de ir até Valença para poder passar para Espanha. É uma viagem de cerca de 30 kms quando, normalmente, cruzando a ponte em Cerveira, é de 3 kms se for para Tomiño.

Por isso, até final do mês, Domingos Branco não perspetiva grandes melhorias na afluência. "Faltam os espanhóis", lamenta. Depois de quase três meses encerrado, por força da pandemia, a reabertura tem sido tímida. "Nem um décimo dos clientes temos. De fronteira aberta, tinha o restaurante cheio. A maior parte eram espanhóis. Se neste feriado [11 de junho], também Dia Santo em Espanha, as fronteiras estivessem abertas e não houvesse o vírus, Cerveira estaria cheia até domingo. Para já isto está mal, toda a gente se queixa", diz ao DN, referindo que houve prejuízos de milhares de euros com estes condicionalismos.

Apesar haver espanhóis que trabalham em empresas localizadas na zona industrial de Cerveira, a maioria dos visitantes sai da Galiza com o objetivo de lazer. "Eles gostam de vir cá comer. Adoram o bacalhau: Em julho espero que isto melhore", diz Domingos Branco, tendo em conta que no próximo meses as fronteiras devem ser reabertas mas resta saber em que condições.

Horário na fronteira criticado

Os trabalhadores transfronteiriços eram atualmente a maior preocupação e motivava os protestos de todos do autarcas da região, de ambas as margens. Já tinham acontecido dois protestos na ponte e estava agendado um terceiro quando foi conhecida a decisão da reabertura da fronteira, ainda que muito condicionada. Muitos portugueses trabalham em indústrias espanholas e este posto fronteiriço com horários merece críticas. Muitos turnos têm início às 06.00 o que obriga os trabalhadores a irem ainda por Valença. Mas, às 14.00, já podem regressar pela Ponte da Amizade. A reabertura, sem horários, é esperada por todos em julho.

Se os espanhóis viajam até ao Minho para lazer e restauração, preferencialmente, os portugueses deslocam-se à Galiza para fazer compras. E logo à cabeça surgem os combustíveis e o gás. "Com a fronteira fechada, isso nota-se no bolso. Em Espanha, o gasóleo esta a 80 e tal cêntimos, aqui custa 1.20 euro por litro. O gás é muito mais barato lá, já comprei a 10.80. Falo por mim, e creio que é comum à maioria das pessoas, ir a Espanha às compras compensava", conta João Silva, professor, sentado na esplanada do estabelecimento do amigo Salah Boukkaze.

Este francês, nascido na Argélia, está há três anos em Portugal. Há 12 meses iniciou o negócio no restaurante, com especialidades argelinos e orientais. Tudo parecia correr bem. "Perdi 80% dos clientes. Além dos espanhóis, tinha muitos turistas de outras nacionalidades e também peregrinos de Santiago", conta ao DN. A reabertura da fronteira agrada mas não o anima muito. "Estou com muito medo", admite, mas irá ver o que acontece em julho e agosto.

Natural de Cerveira, João Silva diz que sempre grande união entre os concelhos transfronteiriços, agora mais do que nunca, com as economias muito ligadas. "Uns fazem falta aos outros", aponta, notando que o "comércio local foi muito abaixo, já houve quem fechasse o negócio. É preciso ver que 60 a 70% do negócio é feito com espanhóis."

Ter um fornecedor de pão galego

Sónia Sá quem conhece bem os dois lados. Já trabalhou e teve depois um estabelecimento na Galiza, Há quatro anos regressou a Cerveira e mantinha com os vizinhos galegos uma estreita ligação. "Até frequentava o ginásio lá. Já reabriu mas com a fronteira fechada não posso ir", adianta, no café-restaurante do parque de lazer do Castelinho, uma zona à beira rio que aos fins de semana estava sempre cheia de espanhóis.

Com criou laços com fornecedores galegos, Sandra abastece-se habitualmente com eles. "Tem sido um problema, até o pão vem da Galiza. Não tem a ver com preços, sou pessoas que conheci, com produtos diferentes e que me agradam. Agora eles têm vindo entregar na fronteira a Valença onde vou buscar os produtos." O normal era atravessar a ponte e em poucos minutos estava no fornecedor. Espera que tudo melhore mas sabe que "vai haver receio do vírus e mais ainda de crise económica". Por isso, diz: "Não estou à espera que nos meses seguintes normalize completamente."

Na loja de artesanato Vila Artesão, Maria João está igualmente pessimista. "Este ano vai ser de prejuízo." Diz que a ponte aberta é fundamental e espera para ver a 1 de julho como será a reabertura de fronteiras. Além dos espanhóis, tinha muitos clientes turistas de outras nacionalidades. Nos últimos anos, o Alto Minho entrou nas rotas turísticas. "Além da ponte, estão os aviões parados e não chegam pessoas. Por aqui passavam também muitos peregrinos a caminho de Santiago", diz a comerciante que afirma ter uma ligação tão forte a Espanha que até brinca que fala melhor castelhano do que português. À Galiza desloca-se sobretudo para fazer compras.

O mesmo faz o taxista Joaquim Pereira, há mais de 40 anos a trabalhar em Cerveira. E fala logo dos preços muito mais baixos dos combustíveis. Além de produtos nos supermercados e outros. Admite que os espanhóis não são os seus principais clientes. "Mas transportava muitos que até vinham a pé para Cerveira e depois quando regressavam, iam com compras, e recorriam ao táxi." Além disso, Joaquim Pereira costuma ter serviços no aeroporto de Vigo, "com emigrantes e mesmo turistas", o que agora não é possível.

O projeto Eurocidade Cerveira-Tomiño usou a página de Facebook, no final de maio, para recolher testemunhos de como o fecho de fronteiras afetava a vida das pessoas. Recolheu 250 depoimentos e 45% deles referiam-se a alteração da atividade laboral para os trabalhadores transfronteiriços, ao nível de distância, tempo e custos, Um grupo de 17% dos relatos apontava para os efeitos económicos negativos, seja pela limitação das relações laborais e comerciais, com uma redução até 70% de clientes, como pela perda de empregos ou dificuldade de fornecimento de materiais para determinados negócios. E 25% falavam na impossibilidade de utilização de serviços de caráter essencial, nomeadamente de cariz educativo, como infantários, ou de saúde (consultas médicas e veterinárias), além da impossibilidade de usufruir de serviços ou equipamentos de âmbito desportivo, comercial ou cultural.

A abertura do posto fronteiriço com horário parcial ocorre segunda-feira dia 15, em Vila Nova de Cerveira, Monção, Melgaço e Miranda do Douro. Há outros quatro postos já abertos no país além das nove pontos fronteiriços, de Valença e Vila Real de Santo António. A 1 de julho as fronteiras devem reabrir, falta saber se ainda vão existir condições.

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