Cem anos do Armistício: Um americano em Paris a celebrar o fim da guerra sem discutir a paz

Donald Trump veio a Paris para as cerimónias do fim da Primeira Guerra Mundial e trouxe com ele uma polémica sobre a defesa europeia. Líder dos EUA é o grande ausente do Fórum da Paz organizado por Macron.
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Depois de ter visto os republicanos perderem a maioria na Câmara dos Representantes nas intercalares da passada terça-feira, depois de ter insultado os jornalistas durante a conferência de imprensa que se seguiu a essas eleições, garantindo que, em geral, as pessoas gostam muito dele como presidente, Donald Trump chega a Paris para participar nas cerimónias dos cem anos do Armistício. Sobretudo para estar com o presidente francês Emmanuel Macron e assistir à homenagem ao Soldado Desconhecido que assinala o fim da Primeira Guerra Mundial. Mas também trouxe com ele uma polémica sobre a defesa europeia.

Quarenta milhões de baixas e quatro anos depois de ter começado, o conflito conhecido também como Grande Guerra chegou ao fim a 11 de novembro de 1918, quando na floresta francesa de Compiègne, no interior de um vagão-restaurante, foi assinado o Armistício entre os Aliados e a Alemanha (a este seguiu-se depois a 28 de junho de 1919 o Tratado de Versalhes). Foi num dia 28 de junho, mas de 1914, que tudo começou. Uma ação isolada, de um só homem, acendeu o rastilho de um barril de pólvora, que num ambiente de tensão acumulada, acabaria por explodir um mês depois. Esse homem foi Gavrilo Princip, um sérvio da Bósnia de 19 anos que matou a tiro o arquiduque Francisco Fernando, herdeiro do Império Austro-Húngaro.

Para lembrar que a paz não pode ser tratada como um dado adquirido, sobretudo numa altura em que proliferam tensões, nacionalismos e populismos pela Europa (mas também noutras partes do mundo), Macron aproveitou a ocasião para organizar, também em Paris, o Fórum da Paz, que arranca precisamente neste domingo. Sessenta chefes de Estado e de governo e 30 organizações internacionais de mais de cem países estarão representados. "Este fórum mostra que ainda é o momento para o multilateralismo e uma melhor organização do planeta, entre Estados do norte e do sul, atores da sociedade civil. As tensões internacionais aumentam num momento em que as soluções para os desafios globais são urgentes", diz a organização do fórum, em que estarão, entre outros, António Guterres, Angela Merkel e Marcelo Rebelo de Sousa, respetivamente, secretário-geral da ONU, chanceler alemã da Alemanha e presidente de Portugal.

Trump, por sua vez, estará ausente. O presidente norte-americano, que em setembro defendeu nas Nações Unidas o patriotismo contra o globalismo, regressa à Casa Branca depois de assistir à homenagem ao Soldado Desconhecido e de almoçar com os outros líderes. "Vamos para a Europa. Estão lá muitos países, muitos líderes estão lá, especialmente por saberem que estão lá os EUA. Será genial. Uma parada comemorativa. Vai ser qualquer coisa de especial. Já vi o que têm preparado, é muito, muito especial", disse Trump aos jornalistas antes de partir na sexta-feira rumo a território francês.

Quando foi convidado por Macron a assistir ao desfile militar do 14 de Julho em França, em 2017, Trump ficou fascinado. Fotografias de arquivo mostram o chefe do Estado norte-americano a olhar para os céus seguindo o rasto dos aviões. Quando chegou aos EUA, quis fazer o mesmo, por ocasião do 4 de Julho. Mas por falta de acordo sobre o financiamento não houve qualquer parada militar grandiosa (falou-se num custo de 92 milhões de dólares). "Em vez disso vou à parada em Paris, celebrar o fim da guerra a 11 de novembro. Talvez no próximo ano façamos algo em DC, quando os custos BAIXAREM. Agora podemos ir comprar mais caças!", escreveu Trump no Twitter a 17 de agosto. Mas se estava à espera de um grande desfile bélico, vai ficar desiludido.

A verdade é que a visita começou com uma pequena polémica. Numa entrevista à rádio Europe 1 na terça-feira, Macron defendeu a criação de um "exército europeu", referindo-se às sucessivas ameaças à Europa, à intrusão no ciberespaço e à saída dos Estados Unidos do tratado de armas nucleares de médio alcance (INF) concluído durante a Guerra Fria. Trump reagiu no Twitter: "O presidente Macron de França sugeriu que a Europa construísse o seu próprio exército para se defender dos EUA, da China e da Rússia. Muito insultuoso, mas talvez a Europa devesse pagar a sua parte na NATO, que os EUA subsidiam." Macron desvalorizou, garantindo que "nunca disse que era necessário criar um exército europeu contra os Estados Unidos" e admitiu que devia ter havido uma confusão. Ontem, já com Trump em Paris, o tom era o mesmo: tudo não passou de um mal-entendido.

O atual líder dos EUA não parece muito interessado em discutir as formas como a cooperação multilateral, entre países e povos, pode evitar novas guerras no século XXI. "Seria um pouco estranho ver Trump e John Bolton [conselheiro de Segurança Nacional] aparecerem num fórum de governança global. Em circunstâncias normais iriam querer a presença do presidente dos EUA, mas Trump seria a doninha fedorenta da sala. A sua visão sobre a cooperação multilateral é a de que ela prejudica a soberania", disse ao The Guardian Thomas Wright, diretor do Centro EUA-Europa na Brookings Institution. Diplomatas em Washington e Paris citados pelo mesmo jornal indicaram que não houve grande insistência para que o presidente norte-americano fosse ao fórum, admitindo mesmo a existência de um certo alívio por parte da Casa Branca e do Eliseu.

Alvo de discussão e especulação tem sido também o tipo de encontro que Trump vai ter com o presidente russo. Antes de partir na sexta-feira para Paris, o chefe do Estado norte-americano indicou que não estava marcada qualquer reunião bilateral entre si e Vladimir Putin e que ambos se limitariam a coincidir no almoço que Macron vai oferecer aos líderes mundiais. "Vou encontrar-me com Putin no G20. Não sei se vamos encontrar-nos em Paris, mas parece que vai haver um almoço de líderes. Acho que nós termos uma boa relação com a Rússia, com a China e com qualquer outro país é uma coisa boa e não uma coisa má."

Ainda antes de partir para França, Trump garantiu que não discutiu a investigação sobre a alegada interferência russa nas presidenciais norte-americanas de 2016 com o procurador-geral interino Matt Whitaker, o qual nomeou no dia a seguir a serem conhecidos os resultados das intercalares. Isto depois de Jeff Sessions se ter demitido. Sessions e Trump estavam, há muito tempo, de costas voltadas. O presidente não perdoou o facto de ter recusado, em março de 2017, liderar a investigação à alegada interferência russa nas eleições. Após a recusa, a investigação foi entregue ao procurador-geral adjunto, Rod Rosenstein, que designou o procurador especial Robert Mueller para liderar a mesma depois de Trump ter demitido James Comey de diretor do FBI. Whitaker criticou, no passado, a investigação sobre a alegada interferência da Rússia. "Não falei com Matt Whitaker sobre isso", garantiu o chefe do Estado. E, assim sendo, com Putin também não irá falar. Será preciso esperar pelo encontro bilateral que os líderes dos EUA e da Rússia terão no G20, que decorre em Buenos Aires, na Argentina, entre os dias 30 deste mês e 1 de dezembro.

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