Células T. Memória imunitária para a covid-19 pode mesmo ser duradoura
Com a pandemia a alastrar em força em várias regiões do mundo e a corrida às vacinas contra o Sars-cov-2 a entrar numa fase decisiva, com os primeiros ensaios clínicos de larga escala a começarem agora em vários países, como o Brasil, a África do Sul ou o Reino Unido, a questão da imunidade à covid-19 ganha um novo relevo.
A grande questão neste momento é a de se saber se a imunidade à doença, nas pessoas que já foram infetadas, poderá ser duradoura. Há ainda muitas dúvidas e dados contraditórios, mas disso vai depender, afinal, a eficácia de uma eventual vacina.
Neste momento ninguém tem ainda uma resposta definitiva à pergunta - ainda só passou meio ano desde que o novo coronavírus surgiu na China, vai ser preciso esperar mais tempo para ver o que acontece. No entanto, os resultados um estudo publicado esta semana por investigadores de Singapura na revista Nature, traz novos dados para discussão e novas esperanças sobre a possibilidade de haver mesmo uma memória imunitária mais duradoura para o novo coronavírus.
O que a equipa de Singapura descobriu foi que a exposição ao novo coronavírus parece induzir uma memória duradoura no organismo, através das células T. Estas sélulas fazem parte da memória do sistema imunitário, e são responsáveis por produzir anticorpos e desencadear um ataque a um vírus com o qual já tenham tido contacto antes - quer através da doença, quer de uma vacina.
Mas não é tudo. Na prática, os resultados da investigação, que foi liderada por Antonio Bertoletti, do Programa de Doenças Infecciosas Emergentes da Universidade Nacional de Singapura, revelaram três tipos diferentes de dados que são importantes para esta discussão.
O primeiro mostra que todas as 36 pessoas avaliadas pela equipa que estiveram infetadas com o novo coronavírus e recuperaram têm as células T de memória específicas para ele. Os outros dois resultados do estudo sugerem que a memória imunitária poderá mesmo ser duradoura para a nova doença.
Um deles, que de certa forma pode ser surpreendente, é o de que essas células T específicas para o Sars-cov-2 também existem numa parte substancial dos indivíduos que não chegaram sequer a ser infetados pelo Sars-cov-2 - a equipa avaliou 26 indivíduos saudáveis que não tiveram qualquer contacto com o vírus.
O outro resultado tem a ver com a primeira epidemia de SARS ocorrida em 2003, causada pelo primeiro coronavírus deste tipo, e que é um parente do Sars-cov-2. No total de 23 pessoas que estiveram infetadas com aquele primeiro vírus SARS, há 17 anos, e que foram testadas pela equipa, os investigadores verificaram que todas elas mantém ainda células T específicas para aquele primeiro vírus.
Ou seja, ao fim de 17 anos, ainda persiste uma memória imunitária para o coronavírus. E há mais: essas células T específicas para o primeiro SARS mostraram uma reação imunitária também para o Sars-cov-2.
Há novos estudos a fazer a partir daqui, e aequipa já está em campo nesse sentido. Nomeadamente para perceber melhor a presença de célutas T específicas para o Sars-cov-2 em pessoas que nunca tiveram contacto com o vírus.
"Descobrimos que mais de 50% das pessoas saudáveis que testámos têm células T específicas para o Sars-cov-2", confirmou António Bertoletti, citado no site de notícias de ciência Science Daily, sublinhando que a explicação para isto pode estar "na imunidade cruzada". Ou seja, na imunidade "que resulta de uma exposição anterior a outros coronavírus que provocam constipações comuns, o que por sua vez pode ajudar explicar também o motivo pelo qual o organismo de algumas pessoas controla a infeção de covid-19", explica o investigador.
Este dado vem de resto reforçar a ideia sugerida por alguns cientistas de que a imunidade natural da população para a covid-19, justamente devida a imunidades cruzadas por infeções com outros coronavírus, poder ser mais vasta, o que explicaria aliás o grande números de assintomáticos.,
Meio ano depois de o Sars-cov-2 ter surgido na China, a questão da imunidade tem estado no centro das atenções, já que é decisiva para a vida em comunidade e para o desenvolvimento de uma vacina contra a covid-19.
Se a imunidade ao novo coronavírus vier a revelar-se pouco duradoura, como um estudo britânico, de investigadores do King"s College, sugeria há dias, a possibilidade de uma vacina de longo prazo estará em causa, e as implicações para a vida em sociedade serão severas, com muito mais incertezas para os os próximos anos.
De acordo com o estudo britânico, os doentes que estiveram infetados com covid-19 e recuperaram apresentam uma diminuição visível dos anticorpos passados três meses.
Este pode no entanto não ser um indicador decisivo e, por outro lado, os dados publicados agora na Nature pelos investigadores de Singapura abrem outras perspectivas.
Na prática, os anticorpos não são a única parcela da equação na defesa do organismo contra um vírus. As células T, da memória do sistema imunitário, são a outra face desta moeda. Se uma pessoa esteve em contacto com o vírus, elas poderão existir mesmo que num dado momento, nem elas, nem os anticorpos, se detectem. Daí a importância de estudos como este agora, que avança novos dados sobre a questão.
Na sequência dos seus resultados a equipa de Singapura quer agora seguir os doentes de covid-19 recuperados que já avaliou, para poder acompanhar a persistência das células T específicas para o novo coronavírus.
"Já iniciámos esse estudo nos doentes recuperados, para verificar se a imunidade demonstrada nas suas células T persiste ao longo do tempo", adiantou Tan Yee Joo do Departamento de Micriobiologia e Imunologia da Escola de Medicina da Universidade Nacional de Singapura, outro dos autores do estudo. "Esta questão é muito importante para o desenvolvimento de uma vacina", sublinhou.
Seja como for, o facto de a equipa ter detetado, 17 anos depois, células de memória específicas para o primeiro vírus SARS no sistema imunitário das pessoas que estiveram infetadas na altura, é, para já, um bom indicador em relação ao novo coronavírus.
Por isso, estima Jenny Low, investigadora do Departamento de Doenças Infecciosaas da Universidade Nacional de Singapura, e outra das autoras do trabalho, estas dados novos "podem ser um passo para ficarmos mais perto de uma vacina eficaz para a covid-19".