Se em Lisboa a Feira do Livro abre dia 26 e no Porto a 27, ambas encerram a 12 de setembro. A da capital é o segundo maior evento de sempre, com 131 expositores - 24 novas presenças - que somam 638 editoras, chancelas e livrarias distribuídas por 325 pavilhões. O evento do Porto evoca os 150 anos da morte de Júlio Dinis e conta com 78 expositores, divididos por 124 pavilhões. Em ambas as feiras do Livro, garantem os responsáveis, estão "asseguradas todas as medidas de higiene e segurança de acordo com as recomendações em vigor para expositores e visitantes"..Novidades literárias não faltam, até porque desde que se iniciou o abrandamento gradual das medidas de confinamento devido à pandemia, as editoras tentam recuperar o tempo perdido e avançaram na publicação a grande velocidade. Além das edições em atraso, as feiras do Livro suscitam sempre uma avalanche de novidades - que não deixou de se verificar -, bem como as oportunidades que vão estar à disposição dos leitores nos jardins do Parque Eduardo VII e nos jardins do Palácio de Cristal..O milagre da escrita.O romance Palavra do Senhor (Bertrand) de Ana Bárbara Pedrosa "refaz" a Bíblia e a autora conta como tudo, afinal, aconteceu desde os primórdios, dando voz a Deus: "Leram tudo e entenderam tudo mal. Falam de Sodoma e Gomorra, chacinas, inundações. Dizem que separei famílias, disseminei a fome, escolhi matar pessoas. Uns tratam-me como assassino em série, homem sem coração ou com coração em chamas. Outros vão mais longe, espetam a faca onde dói, dizem que nem sequer existo." Com uma narrativa empolgante e que se lê com pressa e vontade de descobrir as diferenças entre o que se conta e o que a escritora desconta, torna-se muitas vezes surpreendente, com frequência inesperado e quase sempre divertido, resultando num dos grandes romances publicados neste princípio de década. Ou seja, não se pode deixar de trazer da Feira do Livro, até porque, sendo extremamente original, traz à memória algumas das implicações religiosas de Saramago. Decerto terá sido um desafio para a escritora, claramente conseguido..Descaminhos da História.Bem investigado e cuidadosamente inventado, Deus Pátria Família (Companhia das Letras) de Hugo Gonçalves é uma espécie de policial suportado por uma saga familiar que se transforma numa recriação histórica do que seria Portugal se um incidente tivesse provocado a morte de Salazar e alterado todo o percurso dos acontecimentos desde a neutralidade nacional na II Guerra Mundial e saísse vitoriosa a latente sedução de então pelos que foram derrotados no conflito. O uso de personagens muito bem delineados, a par de uma reconstituição de época bastante credível, com uma cadência narrativa muito bem montada, permite ao leitor navegar por um engano consciente e que permite entender o que poderia resultar da célebre premissa "e se?".Fechar a biografia.Entre os mais importantes escritores da literatura portuguesa encontra-se Mário Cláudio, um autor que teima em evitar os facilitismos da escrita e das tramas nos seus romances desde sempre. Em Embora Eu seja Um Velho Errante (D.Quixote), regressa a um tema fundamental na sua obra, a da presença da biografia como eixo estrutural da narrativa. Regressa também a um protagonista ficcionado a quem dedicou um extenso trabalho, Tiago Veiga, e assume que será o fecho da sua efabulação sobre tal pessoa. Após a biografia exaustiva já publicada, o autor "descobriu" documentos que o iluminam mais e pretende encerrar a descrição dessa vida. Desta vez, entre outras situações, envereda pela revelação de um diário de Ellen Rassmunsen, a segunda mulher de Veiga, com o qual leva o leitor à descoberta de novos detalhes do seu biografado..A música da escrita.O nome Fernando Ribeiro não é do conhecimento dos leitores enquanto escritor, sendo reconhecido como vocalista de uma banda, os Moonspell. Nada que o impeça de dar voz também a um conjunto de personagens em Bairro Sem Saída (Suma de Letras) e da sua vida naquele que afirma ser o "bairro mais clandestino da Europa nos anos 70 e 80", o da Brandoa. O cenário do romance é o da eterna luta entre classes e o protagonista alguém que nasce durante o terramoto de 1969, fica marcado para integrar um conjunto de situações que, na contracapa, se diz fazer transparecer os "batimentos rápidos do heavy metal e a melancolia escura do gótico". É verdade essa súmula, mas vai muito além e com ecos de uma realidade citadina inesperada..O mundo segundo Ana.A escrita de Ana Teresa Pereira tem uma legião de admiradores que a seguem com a fidelidade de quem anseia por uma história fixada num cenário que de tão bem criado parece real. Daí que em Como se o Mundo Existisse (Relógio D"Água) o leitor se confronte com "um se não foi assim bem que poderia ter sido" e volte a rever-se no sonambulismo que estes quinze contos provocam. A recolha destes textos resulta de proveniências várias, alguns são primeiras versões ou publicações em revistas, mas o encanto regressa como se todos fossem inéditos impossíveis de não se lerem, ou de relerem cada vez que a oportunidade acontece. Afinal, trata-se de um mundo que existe por via desta autora..Leitores e fantasmas.O trabalho literário de Mário de Carvalho vem de longe e, como escreve numa frase que poderá ser surripiada para descrever em poucas palavras este O Homem de turbante Verde (Porto Editora), "a cavalaria nunca se apressa na retirada". É essa realidade que se encontra nestes dez contos, quando a evolução do texto, mesmo sendo feito a um ritmo apressado, não bate em retirada sem um meio e um desfecho fundamental. Não são suficientes os escritores portugueses que ofereçam a língua deste modo, o que contribui para que, enquanto se leem estes textos, a imaginação possa correr em paralelo ao que está impresso. Quanto mais não seja porque existem referências que transportam o leitor a afinidades suas e que nestas páginas vão saltando como fantasmas da memória individual - ou coletiva - nas várias paragens de tempos e lugares que lhes servem de cenário..Água literária.Enquanto contista, Luísa Costa Gomes nunca tem deixado de ser uma surpresa e a sua mais recente recolha de contos mantém essa hipótese de o leitor se confrontar com um universo fluído como é o da água, o fio condutor do livro. Em Afastar-se (D.Quixote), com um antetítulo Treze Contos sobre Água, o tema principal está exposto e, diz a contista, resulta de uma coleção de escritos em que "de uma maneira ou de outra metem água". E tal como refere, se a água está sempre presente, ela é uma boa matéria-prima para modelar os textos de uma "forma termal" ou "lapidar". O que é servido ao leitor em lugares bastante diferentes e percursos emocionais vários harmoniza-se, sendo que em vez de afastar aproxima. Como acontece com a mulher que perfaz a sua educação literária dentro de água, o homem que cai à água ou a encosta que se dilui no mar, partes que ao fechar este livro se completam num todo ou do tamanho que a água ocupa no planeta..A biografia paralela.Nas páginas iniciais de António Lobo Antunes - As Crónicas (D.Quixote) enumeram-se as crónicas selecionadas para este volume, explica-se que a seleção pretende ser "uma amostra realmente abrangente da versatilidade e do talento" do autor e regista-se a opinião de Marcelo Rebelo de Sousa sobre o autor através desta ordem: "Meninice, Adolescência, Saudade, Ternura e Biografia"; ou seja, um roteiro para a "descoberta do artista enquanto homem". Acrescenta que este volume reúne "não o épico" ou o do "fim do Império", mas o "lírico, de corpo inteiro. Ele e os seus afetos." Com uma capa bastante impressiva, onde o menino futuro escritor está sentado ao colo da mãe, guardam-se nestas 623 páginas aquelas crónicas que são consideradas a biografia paralela e que permitem entender o autor. Muitas mais se poderiam acrescentar, mas a seleção cumpre - e supera - o objetivo..Holandês & português.A reunião de crónicas de J. Rentes de Carvalho intitula-se O País do Solidó (Quetzal) e traz mais uma vez o génio literário do autor através de pormenores registados à vez em página e meia. Estes retratos percorrem o autor, o mundo à sua volta, vão e vêm. Podem chocar com Bolsonaro, mas não esquecem a Luisinha, aquela que "no meio em que agora vive, quando lhe perguntam de onde é respondem com um vago "sou do Norte?"; reflete sobre o "trabalho delicado este de escrever ficção" ou das "boas novas de que todos precisamos", sem esquecer que "a História vem por vezes ao nosso encontro de maneira bizarra" ou de que "na juventude tudo são certezas". Três centenas de páginas de um livro que tem uma boa serventia: guia espiritual para os leitores portugueses, escrito por alguém que passou a maior parte da vida na sua casa na Holanda..Causas de MEC.Não foi um, nem dois, nem três, mas quatro os livros reeditados recentemente de autoria de Miguel Esteves Cardoso. Entre eles o A Causa das Coisas (Bertrand), um breviário de ensaios sobre a portugalidade em todos os seus aspetos, que reúne textos publicados numa coluna semanal do semanário Expresso e que, no entender do autor, revelam a sua "obsessão" com o país e os seus habitantes. Ainda por cima, sendo "meio-inglês", considera-se um convertido à causa, mesmo que esta já leve mais de oitocentos anos de discussão (p.151) sem grandes resultados. Na mesma leva de reedições estão Os Meus Problemas, As 100 Melhores Crónicas, Como É Linda a Puta da Vida e O Amor É Fodido. .Amigos perdidos.Foram muitos os livros publicados nos últimos meses que colocam a ficção de lado e não devem ser esquecidos nestas feiras do Livro. António Mega Ferreira lançou Desamigados - ou como cancelar amizades sem carregar no botão (Tinta da China), uma história de amigos que fecharam portas a relações famosas: Freud e Jung, Wagner e Nietzsche, Fitzgerald e Hemingway, Sartre e Camus, García Márquez e Vargas Llosa e Bocage e Macedo, entre outros. Uma leitura obrigatória para os próximos tempos, com a garantia de profundidade intelectual própria ao autor..Manipular a História.O historiador António Borges Coelho tem vindo a ser editado e reeditado e a mais recente obra que chegou às livrarias foi História e Oficiais da História (Caminho). A partir de grandes contadores, como Fernão Lopes, Rui de Pina, João de Barros, Alexandre Herculano, Vitorino Magalhães Godinho, Jorge Borges de Macedo, além de Arnold Toynbee e Georges Duby, o autor investiga a prática dos profissionais da História e de como o tempo e a memória podem ser manipulados..Em contraponto.A lucidez tão em falta na compreensão do mundo contemporâneo tem um antídoto feroz na recolha de ensaios Sinta-se Livre (D.Quixote) de Zadie Smith. Pode tentar-se apontar o "melhor" ou o "perfeito", mas é difícil contornar qualquer um dos textos, pois irá perder-se uma explicação fundamental para o mundo em que vivemos. Seja o "pornográfico" O Buda dos Subúrbios de Hanif Kureish, o destemperado Crash de J.G. Ballard, o inesperado Conheça Justin Bieber!, ou a pergunta Geração Porquê?. Entre as mais de 400 páginas de leitura intensa, não se perde nada em ter um contraponto, e ninguém melhor para o fazer do que Michel Houellebecq e a recolha intitulada Intervenções (Alfaguara). Curiosamente, apesar da inconveniência que lhe é reconhecida, o polémico autor é um bom parceiro para alternar com Zadie Smith e assim olhar-se o mundo mais recente..dnot@dn.pt