Caso das gémeas e queda do Governo. "Assistimos a um dos momentos mais difíceis da democracia"

Ex-ministra Margarida Mano, atual presidente da Transparência Internacional, entende que a queda do Governo e as suspeitas de cunha que recaem sobre o Presidente da República estão a "defraudar a confiança" dos cidadãos.
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Estamos claramente a assistir a um dos momentos mais difíceis, se não mesmo o mais difícil, da nossa democracia", afirmou ao DN Margarida Mano, presidente da associação cívica Transparência Internacional, a propósito da dupla crise que o país vive: o caso da alegada cunha do Presidente da República para que duas gémeas luso-brasileiras obtivessem um tratamento médico de quatro milhões de euros no Hospital de Santa Maria, conjugado com a queda do Governo na sequência das buscas da Operação Influencer, que investiga presumíveis crimes em torno dos negócios do lítio, do hidrogénio e de um centro de dados em Sines.

"Instituições como o Governo ou a Presidência da República têm de estar acima de qualquer reparo do ponto de vista ético e observar um sentido de integridade irrepreensível, mas têm assumido comportamentos de ética duvidosa", acrescentou a mesma responsável. "A confiança dos cidadãos nas instituições que os governam é um ativo intangível e muito precioso. Neste momento, com um Governo em gestão, com uma maioria absoluta a fechar o seu ciclo antecipadamente e com dúvidas sobre a eventual influência ilegítima do Presidente da República, estamos a defraudar as expectativas e a confiança."

Em declarações ao DN a propósito do Dia Internacional Contra a Corrupção - instituído desde há 20 anos pela Organização das Nações Unidas, e que se assinalou este sábado -, Margarida Mano defendeu que "a cunha ou o favorecimento significam que é quebrado o princípio da igualdade, no qual assenta a democracia e que dá aos cidadãos a confiança de que são todos tratados da mesma forma, de acordo com regras claras".

Margarida Mano comentou também as palavras de Paulo Morais, atual dirigente da associação Frente Cívica e um dos fundadores da Transparência Internacional, que esta semana declarou ao DN que a atuação de Marcelo Rebelo de Sousa no caso das duas gémeas cabe na definição de "corrupção" apresentada pela Transparência Internacional. "Não sei o que o Presidente da República fez ou não fez neste caso", disse Margarida Mano. "Mas se teve algum comportamento que beneficiou alguém, em desrespeito pelas regras, é óbvio que isso é corrupção no sentido que a Transparência Internacional dá à palavra". No site da associação define-se "corrupção" como "abuso do poder confiado para obtenção de benefícios privados".

No entender da presidente da Transparência Internacional, a demissão do primeiro-ministro a 7 de novembro foi resultado de "sucessivas crises e situações", não decorrendo apenas da Operação Influencer e das últimas cinco linhas de um comunicado da Procuradoria-Geral da República, onde se informava que o chefe do Governo é alvo de um inquérito no Supremo Tribunal de Justiça.

"Houve sucessivas crises e situações, desde logo as ligações familiares entre membros do Governo. A aceitação de padrões éticos duvidosos levou a um descrédito que apenas culminou com a Operação Influencer", afirmou.

Margarida Mano, de 60 anos, é doutorada em Gestão pela Universidade de Southampton (Reino Unido) e vice-reitora da Universidade Católica. Além de deputada à Assembleia da República entre 2015 e 2019, eleita pelo PSD em Coimbra, foi ministra da Educação e da Ciência no segundo Governo de Passos Coelho, que durou menos de um mês. Assumiu a 30 de setembro um mandato de três anos na liderança da Transparência Internacional, associação cívica criada há 13 anos em Portugal e integrante da rede Transparency International, a qual se descreve como "a maior organização mundial de organizações da sociedade civil dedicadas a combater a corrupção".

Referindo-se às eleições legislativas antecipadas de 10 de março, a presidente da Transparência Internacional criticou a "tentação dos discursos demagógicos de promessas, que não reforçam a confiança", e disse que a associação vai "apelar nos próximos meses à importância da participação eleitoral e aos atores políticos para que valorizem os valores éticos e defendam a integridade contra a cunha e o conflito de interesses".

Segundo esta responsável, "é difícil medir o nível de corrupção num país". Empregar critérios como o número de processos em tribunal por corrupção não daria uma resposta rigorosa, porque esse número é diminuto face à real dimensão do fenómeno da corrupção. "O que se mede é a perceção sobre a corrupção, é o que é passível de ser medido", explicou Margarida Mano.

O Índice de Perceção da Corrupção, produzido desde 1995 pela Transparency International nos vários países em que está presente, é um dos mais conhecidos indicadores de corrupção do mundo. O mais recente destes relatórios refere-se a 2022 e indica que "o combate à corrupção no nosso país é frágil e não regista avanços". Portugal foi avaliado em conjunto com os países da Europa Ocidental e da União Europeia e registou 62 pontos numa escala de 100, abaixo de países como Estónia, Uruguai, Chile ou Lituânia. Nos lugares cimeiros, com menor perceção pública de corrupção, estavam em 2022 a Dinamarca, a Finlândia e a Nova Zelândia. Os resultados de Portugal são "assustadores porque os níveis de perceção são altos e crescentes", resumiu Margarida Mano.

A ex-ministra tem dúvidas sobre se a corrupção, em sentido lato, é resultado da pobreza económica e de qualificações, como afirma o sociólogo João Ribeiro-Bidaoui no livro O Compadrio em Portugal, recentemente publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. "Não consigo fazer essa relação causal. A pobreza pode ter um papel como o têm forças económicas monopolistas numa sociedade como a nossa."

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