Entre o momento que a levaram para o bloco operatório de uma clínica privada e o dia em que acordou, entubada, dorida e com marcas da máquina que a salvou, Carmen Vicente nada se recorda. Apenas sabe o que lhe foi dito pelos médicos e pela família. "Tive uma paragem cardiorrespiratória quando estava a fazer uma cirurgia ligeira numa clínica. Logo ali, começaram as manobras de reanimação, chamaram o INEM e trouxeram-me para São José.".Carmen não se envergonha de dizer: "Não sei se sou uma lutadora ou se alguém lutou por mim", referindo-se à equipa médica que a tratou e de quem diz: "Devo-lhes a vida. Estou muito grata por tudo o que me fizeram.".Faz sete meses no dia 4 de agosto que Carmen, operadora ocupacional numa escola de Sintra, entrou na Unidade de Urgência Médica (UUM) do Hospital de São José. Já levava muitos minutos de paragem cardiorrespiratória, apesar das muitas manobras de ressuscitação realizadas pelo INEM a caminho do hospital..Quando chegou, ainda dava sinais de vida, sempre que lhe colocavam os compressores automáticos reagia. Os médicos continuaram a tentar. Não desistiram, mas já tinham passado 40 minutos quando conseguiram ligá-la à máquina - à ECMO (extra corporeal membrane oxygenation) - que substitui o coração e o pulmão, quando estes deixam de funcionar, dando suporte de vida a um doente como ela..Quem a assistiu diz: "Deu sempre sinais de vida. Quando se ligava os compressores automáticos, mexia os braços, tentava agarrar o equipamento. Sabíamos que não tinha o coração a funcionar, mas, claramente, tinha sinais de vida", afirma Philip Fortuna, um dos médicos intensivistas que a receberam na UUM e coordenador do programa ECMO..Carmen foi a doente que até hoje, e desde que a ECMO está a ser usada naquela unidade, outubro de 2017, esteve mais tempo de coração parado. "Incrível", remata o médico. "Teve de ficar ligada à máquina durante dois dias, depois ficou mais cinco dias em cuidados intensivos e só depois foi para o internamento", recorda Philip Fortuna.. A ECMO ou o Lucas para os amigos.Ao todo, "sei que estive internada 15 dias. Quando acordei tiraram-me os tubos que tinha na boca, para poder falar, mas soube que tinha acontecido alguma coisa pelas enfermeiras. Uma delas estava a tratar-me e disse para a outra: 'Esta senhora ainda tem as marcas do Lucas.' Não esqueci isto. Mais tarde, quando já podia falar, perguntei quem era o Lucas. Riram-se e explicaram-me. Afinal, era a máquina que me tinha ajudado nisto tudo", conta..Na altura, os médicos prepararam a família para o facto de poder acordar com sequelas neurológicas, devido ao tempo em que esteve em paragem cardiorrespiratória e o cérebro esteve sem oxigenação, mas acordou sem elas. Apenas ficou com o lado direito ligeiramente afetado, braço e perna, "ainda tenho três dedos que não mexem, mas de resto estou bem"..Carmen tem agora a vigilância normal no Hospital de Santa Marta. Foi-lhe um implantado um desfibrilhador, para garantir que não tem novas situações e que consegue sobreviver se as tiver, mas continua a fazer exames para perceberem o que poderá ter desencadeado a paragem cardiorrespiratória. Philip Fortuna explicou ao DN que Carmen registou a "síndrome de coração partido. Pode ser desencadeado por estados de grande ansiedade ou em cirurgias, o coração deixa de bombear o sangue de forma adequada e para"..Muitos meses depois, Carmen tem a certeza de que não é a mesma. Este episódio mudou a sua vida. "A minha família, que me está sempre a dar força, diz que tenho de deixar de pensar nisto, mas não consigo. E sei que não sou a mesma. Uns dizem que mudei para melhor, outros não. Acho que me tornei uma pessoa com medos, mas, por outro lado, passei a viver um dia de cada vez, sem fazer planos, antes não o conseguia", desabafa. E, após um silêncio, remata: "Às vezes, ainda agarro no coração e pergunto: 'Porquê eu?'".Carmen é casada e tem dois filhos, uma rapariga de 20 anos e um rapaz de 19, é assistente operacional numa escola, lida diariamente com milhares de crianças. Ainda não voltou ao trabalho. "Não posso ficar a fazer mesma coisa. É uma grande responsabilidade lidar com crianças, não sei se o meu coração aguenta." E o coração já o teve "partido" uma vez. . "Fui apanhada pelo inesperado da vida a 100%".Há um ano Paula Batista, hoje com 35 anos, recuperava do internamento de 45 dias no Hospital de São José, em Lisboa. "Num dia estava bem, no outro fui de avião da Força Aérea com uma médica e uma enfermeira para o continente. É o inesperado da vida. Fui apanhada a 100%", diz com sotaque madeirense, denunciando que nasceu e cresceu no Funchal, ao mesmo tempo que solta uma gargalhada de quem teve força para tocar a vida para a frente.."Tenho um filho de 4 anos. Não sei o que me aconteceu, nem consigo reproduzir tudo com muitos detalhes, a minha irmã é que falou sempre com os médicos. Ela sabe mais do que eu. Só me lembro de pensar no meu filho e de estar sempre a ver a imagem dele. Foi a isso que me agarrei." No Funchal, "as que pessoas que têm fé olham para mim como um milagre"..Paula deu uma queda em abril do ano passado. Não ligou, mal sabia que tinha feito um hematoma hepático. Começou por se sentir mal, mas, no dia 29, as dores na zona abdominal eram tantas que decidiu ir às urgências no Machico. "Mandaram-me logo para o Funchal. Perceberam que era mais grave do que parecia. Cheguei ao hospital, fizeram-me logo exames e internaram-me nos cuidados intensivos. No dia seguinte, vim para o continente.".A partir daqui, "já não me lembro de nada. Disseram-me que tinha feito quatro paragens cardiorrespiratórias, mas não sei se foi antes ou durante a cirurgia que me fizeram", relata. Paula prefere não pensar muito no que aconteceu. Neste ano de recuperação preferiu estabilizar a sua vida e tentar voltar à normalidade, mas o seu caso foi um dos que marcaram a equipa da Unidade de Urgência Médica de São José.."A Paula deu uma queda e fez um pequeno traumatismo que resultou numa hemorragia hepática. Veio do Funchal para o Hospital Curry Cabral para a Unidade Hepato-Biliar, quando estava a ser avaliada pela equipa médica para se ver o que havia a fazer em relação ao hematoma teve uma embolia pulmonar grave, que proporcionou uma paragem cardiorrespiratória. O coração ficou sem conseguir bombear adequadamente. A equipa do Curry Cabral chamou-nos e em meia hora pusemo-nos lá com o dispositivo, mas, quando nos preparávamos para a ligar à máquina, ela voltou a ter uma paragem cardíaca. Teve três eventos destes de seis minutos cada. Só recuperou quando implantamos a ECMO", recorda o intensivista Philip Fortuna.."A doente foi para o bloco e fez uma quarta paragem. Voltou a recuperar e com ela ligada à máquina, os médicos conseguiram resolver o problema da hemorragia hepática e da embolia pulmonar. Só depois a trouxemos para a UUM, onde ficou ligada à máquina durante cinco dias. Ao fim deste tempo, a ECMO foi retirada e regressou ao Curry Cabral onde ficou internada e só depois voltou ao Funchal", explica..Paula Batista está bem. Voltou ao trabalho que fazia anteriormente. "Trabalho na área de lavandaria e engomadoria. Estou bem, mas agora que a rotina voltou toda ao normal. Vou pensar mais em mim. Tem de ser", afirma entre gargalhadas. "A vida é assim", desabafa, revelando a força que teve de ter. De uma coisa diz estar certa: "Tive os melhores a tratar de mim. Dizem-me que foram incasáveis. Só tenho de agradecer isso.".20% dos doentes em cuidados intensivos não sobrevivem.O que lhe aconteceu poderia ter tido outro desfecho. Cada caso é um caso. Muito depende do tempo que as pessoas estão em paragem cardiorrespiratória antes de chegarem ao hospital, e também muito da idade. "Por norma, as pessoas que recuperam são as mais jovens e as que chegam ao hospital mais rapidamente", argumenta Philip Fortuna, acrescentando: "A máquina substitui o coração, mas quanto mais rápido os doentes chegarem ao hospital, mais hipótese têm de sobreviver.".Um programa que tem dado resultados e que começou como projeto-piloto no norte, em 2016, depois veio para Lisboa, e está a ser aplicado em São José e em Santa Maria. Em São José, Philip Fortuna é o coordenador do programa. Médico de 38 anos, há 13 a exercer a profissão, e já com duas especialidades, medicina interna e medicina intensiva..Admite que desde o primeiro dia que soube que era esta a área da medicina que queria para si. Ou melhor, "desde o dia em que ainda estava no curso e fiz um estágio em pediatria, em Santa Maria. Logo aqui percebi que o que queria fazer era lidar com doentes críticos. Achei que a pediatria era um demais para mim, e passei para os adultos"..À pergunta se foi a adrenalina que o levou àquela área, ri-se e diz que não, porque em cuidados intensivos é preciso agir e reagir sempre de forma a que a situação se mantenha sob controlo e tranquila, mas reconhece que é das especialidades em que há mais pressão: "As pessoas chegam aqui muito mal e ninguém quer perder um doente, quer seja porque é jovem, tem filhos, ou porque é idoso e ainda pode reagir, ou porque também não queremos estar a fazer mais do que é aceitável.".As estatísticas mundiais não enganam quanto à gravidade dos doentes que entram numa unidade de cuidados intensivos. "Cerca de 20% não sobrevivem", afirma o médico. Portanto, apesar das "situações dramáticas que vivemos, temos de fazer tudo para salvar os outros 80%"..Mas quando chega o momento de parar e de tomar a decisão, a de que nada mais há a fazer, "é muito difícil", assume. "É uma área onde temos sempre muito contacto com o doente, com as famílias, para as manter informadas ou descansadas, e há uma grande pressão para se fazer tudo e não se chegar a essa situação.".Philip Fortuna não esquece o primeiro doente que recebeu na UMM de São José para ligar à ECMO. "Uma jovem de 18 anos teve uma paragem cardíaca quando estava no autocarro. Foi chamado o INEM, que fez manobras de ressuscitação, trouxeram-na para aqui e tentámos tudo para a recuperar. Ela ainda conseguiu recuperar o ritmo cardíaco, mas não resistiu às consequências de ter estado muito tempo em paragem e veio a falecer.".Mas o último doente que ali esteve ligado à ECMO antes da nossa conversa está estável e a recuperar no Hospital de Santa Marta. "Fomos buscá-lo a Évora. Conseguimos trazê-lo, ligámo-lo à máquina e ele recuperou. Agora, está em Santa Marta à espera de um transplante."