O eurodeputado do Partido Socialista Carlos Zorrinho, copresidente da assembleia parlamentar paritária África, Caraíbas e Pacífico - União Europeia (ACP-UE), interveio na semana passada numa audição do Parlamento português sobre a crise em Cabo Delgado, e também em Bruxelas, para questionar o Serviço Europeu de Ação Externa sobre a aparente paralisia da cooperação europeia com Maputo, tendo lembrado que as pessoas pedem "ações concretas, planos de ação"..Na terça-feira, na Comissão de Assuntos Europeus da Assembleia da República, a propósito da demora sobre a ação europeia dirigida a Moçambique, comentou que "há quem esteja no terreno que não quer que essa ajuda se faça". Pode especificar?O que está a acontecer em Cabo Delgado segue um padrão que, infelizmente, se tem multiplicado em muitas outras regiões do continente africano: um forte desemprego jovem, uma fragilidade grande das autoridades locais e tudo o que é capacitação institucional. E depois a penetração de grupos que, na maioria dos casos, radicalizam à força. Ao mesmo tempo também se gerou em Cabo Delgado um cenário muito complexo. As autoridades nacionais começaram por recorrer a mercenários, as forças aparentam ter um comando relativamente difuso e no meio disto a situação de Cabo Delgado foi gangrenando, porque também os países vizinhos não se movimentaram. Como que houve um estranho desinteresse e por carambola das próprias autoridades nacionais e internacionais. Do que ouvimos das pessoas no terreno, as populações é que são as grandes vítimas, apelam à ajuda, mas há um conjunto de forças contraditórias que dificultam a ajuda. Há uma coligação de forças para o mal no território. E ainda não se conseguiu criar uma coligação de forças para o bem. Por isso eu disse que não ia cometer a injustiça de dizer que Cabo Delgado não queria ser ajudado. Tenho toda a certeza de que as populações queriam ser ajudadas, mas que havia atores no terreno que não pareciam estar com o mesmo tipo de sentido de urgência face à ajuda, que é fundamental nas missões humanitárias..Crianças decapitadas, um milhão de pessoas com fome. A crise no norte de Moçambique.Mas esses atores serão mais do campo militar ou do campo político? Em territórios como esse há uma ligação muito forte e muito direta. Nós não sabemos exatamente qual é a capacidade e a linha de comando, isto é, a capacidade que as autoridades políticas têm sobre as autoridades de segurança. O puzzle cristalizou numa situação muito má para a população moçambicana. A primeira prioridade é fazer chegar auxílio humanitário, e já está a acontecer. Por parte da UE são 100 milhões de euros, dos quais 37 milhões para Cabo Delgado e um apoio de 180 milhões para as vacinas e outros projetos a seguir. A segunda prioridade é quebrar esse puzzle. Às vezes há pequenas ações que espoletam dinâmicas positivas. Por exemplo, a ação que foi desenvolvida no Parlamento Europeu, quer através da assembleia parlamentar paritária ACP-UE, quer através da ação de vários grupos políticos, de fazermos dois debates com resoluções e mais recentemente um com o alto representante Josep Borrell. Isso levou à ida a Moçambique do ministro dos Negócios Estrangeiros português, Augusto Santos Silva, ministro do país que assume a presidência do Conselho Europeu, e com o mandato do alto representante. As informações que temos são de que a visita correu bastante bem e ajudou a melhorar os canais de comunicação entre as autoridades moçambicanas e a UE e que foi oferecido e também aceite cooperação em termos de capacitação e de treino das forças de segurança moçambicana. Estamos agora a preparar a missão para que os peritos europeus possam montar a operação, em conjunto com os responsáveis moçambicanos. Agora precisava de mais urgência, mas temos de ter consciência de que Moçambique é um estado soberano e só podemos fazer o que quiser que se faça, embora a mobilização da UE pode ajudar a mobilizar os vizinhos.."Guerra contra o terrorismo jihadista em Cabo Delgado será ganha em 2021".Há alguma ideia de um calendário para a missão? Essa foi a pergunta que eu coloquei à embaixadora Rita Laranjinha, diretora do Serviço Europeu de Ação Externa (SEAE) para África, no debate sobre o sul de África, organizado pelas comissões parlamentares de Negócios Estrangeiros e de Desenvolvimento do Parlamento Europeu. Referiu que se estavam a preparar, mas que a velocidade nem sempre é aquela que se desejava, porque o contexto no terreno é muito complexo. O aumento da pressão internacional para que haja maior recetividade à ajuda é o que temos de continuar a fazer, e ao mesmo tempo respeitar a soberania de Moçambique..Disse há pouco que há uma coligação para o mal, mas não uma coligação para o bem. Os Estados Unidos já estão no terreno a prestar formação militar. Não esteve em cima da mesa uma coligação entre UE e EUA para se agir de forma coordenada?Se houve uma reunião formal, não sei, mas a ação europeia desencadeou uma ação americana e obviamente que se começa a criar condições para haver a chamada coligação do bem, indiscutivelmente..É relator de um relatório sobre a relação UE-África. Há algo de concreto sobre Moçambique ou Cabo Delgado? Nesta semana vai ser aprovado no Parlamento Europeu um relatório de iniciativa do Parlamento em relação à estratégia Europa-África. Fui o relator-sombra, o negociador dos socialistas e democratas, e a relatora principal neste caso foi a deputada Chrysoula Zacharopoulou. É uma estratégia para enquadrar a cooperação específica com África na próxima década e para influenciar a estratégia da próxima cimeira Europa-África, que aguarda marcação. Estabelece os parâmetros gerais para a cooperação entre os dois continentes do ponto de vista do clima, da economia, das qualificações, da proteção das populações, dos direitos humanos... É de facto uma estratégia que se aplica como uma luva à cooperação com Moçambique, mas em nenhum momento faz referência a um país em particular..O relatório vem na sequência do plano do anterior presidente da Comissão, Jean-Claude Juncker, que dava grande importância ao relançar das relações, dando prioridade à questão migratória e da criação de emprego em África? A decisão de avançar para uma cimeira é muito importante, desde logo pela perspetiva multilateral. São duas potências, a UE e a União Africana, que têm tudo a ganhar com o retorno de uma visão da geopolítica multilateral, ainda por cima agora que os EUA também regressaram a essa visão. Em segundo lugar, a perspetiva da cooperação é muito frutuosa do ponto de vista económico e social, mas é também para o desenvolvimento de África, para que este seja um parceiro económico mais robusto e não seja apenas um fornecedor de matérias-primas. Se isso tudo acontecer, as questões como a de Cabo Delgado ou como as migrações também se resolvem pela forma boa, isto é, pelo desenvolvimento..cesar.avo@dn.pt