Cardeal Tolentino fala aos jovens: "Em vez de medo, tenham sonhos"
O Santuário de Fátima voltou a esgotar na manhã desta quinta-feira (13 de maio) a lotação de 7500 pessoas, deixando do lado de fora do recinto centenas de peregrinos. Ao contrário de há um ano - em que a pandemia obrigou a celebrações sem público - desta vez os peregrinos esgotaram o (ainda diminuto) limite. Vieram de toda a parte do país, e apenas um dos 22 grupos inscritos era estrangeiro - da Áustria. Apesar disso, do altar do mundo foram saudados todos os peregrinos, com direito até a uma mensagem do Papa Francisco, num momento bastante emotivo. "Este é o momento de pedir à mãe pelo mundo inteiro", disse o Santo Padre, rogando para que consiga debelar a pandemia, em nome "dos que perderam o seu trabalho e os seus ente-queridos". E foi sempre o vírus que, afinal, deu o mote às intervenções dos diversos responsáveis da Igreja Católica neste 13 de maio, em que se comemoram 104 anos das aparições de Fátima, mas também se assinalam outras efemérides: 40 anos do atentado ao papa João Paulo II, em Roma, e 75 anos da coroação da imagem de Nossa Senhora, ao tempo do papa Pio XII.
Na homilia desta manhã, o cardeal José Tolentino Mendonça voltou a encher de esperança a peregrinação internacional aniversária a que presidia, como de resto já fizera ontem à noite.
"Numa hora de encruzilhada da história como esta que vivemos não podemos fazer coincidir o relançamento da esperança unicamente com o cuidado pela expressão material da vida. Sem dúvida que é urgente garantir o pão e esse trabalho exigente - fundamentalmente de reconstrução económica - deve unir e mobilizar as nossas sociedades", disse D. José Tolentino. Mas o arquivista e bibliotecário do Vaticano foi mais além, nas suas palavras, ao considerar que "as nossas sociedades precisam também de um relançamento espiritual. Sem o pão não vivemos, mas não vivemos só de pão. Os maiores momentos de crise foram superados infundindo uma alma nova, propondo caminhos de transformação interior e de reconstrução espiritual da nossa vida comum". Para o cardeal, não há dúvidas de que "é essa a mensagem de Fátima, naquele longínquo 1917, com o mundo mergulhado na primeira guerra química da história e uma das que maior mortandade infligiu". "O que é que a Virgem pediu à humanidade, através dos pastorinhos? Oração, penitência e conversão, isto é, meios concretos de reconstrução interior", recordou.
À sua maneira, Tolentino Mendonça fez uma homilia que tocou em vários pontos da contemporaneidade, no plano filosófico, poético, e espiritual, nos eu todo: "É curioso que no mesmo ano das aparições, um grande filósofo europeu, Max Scheller, pensava na necessidade de reconstrução civilizacional da Europa e propunha ferramentas muito semelhantes àquelas de Fátima. Dizia ele que a reconstrução cultural da Europa só seria possível se as diversas nações assumissem face à tragédia da guerra a necessidade de "uma penitência comum, um arrependimento comum, um sacrifício comum", que favorecesse depois uma renovada capacidade de entreajuda solidária e recíproca", disse.
E depois fixou-se em 1943, através das palavras de Simone Weil, que então perspetivou a necessidade de um projeto espiritual que permitisse a Europa renascer da devastação da Segunda Guerra mundial. Foi quando redigiu o "Prelúdio para uma Declaração dos Deveres para com o Ser Humano", insistindo em que "as necessidades humanas são físicas (necessidade de pão, de proteção social, de habitação, de cuidados de saúde...), mas são também morais e espirituais", escrevendo que "constitui um atropelo à vida humana privá-la do "alimento necessário à vida da alma"".
Numa espécie de viagem no tempo, D. José Tolentino Mendonça recordou depois o momento em que "há 39 anos atrás, o Papa São João Paulo II presidia a esta eucaristia "para agradecer à Divina Providência, neste lugar, que a Mãe de Deus parece ter escolhido de modo tão particular", ter sido poupada a sua vida ao atentado na Praça de São Pedro em Roma. E o apelo de João Paulo II é que se reconhecesse em Fátima a preparação de um tempo espiritual novo´".
Mas a experiência da pandemia - sempre presente - " e a crise poliédrica e global que ela instaurou representam igualmente para a contemporaneidade um imenso desafio a renascer", disse o cardeal, sublinhando que "a consciência das cinzas deve responsabilizar-nos ainda mais na procura do fogo. Pois não basta voltarmos exatamente ao que éramos antes: é preciso que nos tornemos melhores. É preciso um suplemento de alma. É preciso que desconfinemos o nosso coração", disse.
Ao longo de toda a homilia, o cardeal prendeu a atenção dos peregrinos que o escutavam por todo o recinto, alheios à chuva miudinha que caiu nos minutos iniciais da missa deste 13 de maio, com destaque para a leitura do Livro do Génesis. Exortou os fiéis a este "momento de revisão crítica do caminho que realizámos até aqui, de fazer uma espécie de balanço interior que avalie os nossos estilos de vida, os modelos de desenvolvimento e a natureza das opções que nos têm conduzido. Como referiu o Papa Francisco, no inesquecível momento extraordinário de oração na Praça de São Pedro vazia, «a tempestade desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a descoberto as falsas e supérfluas seguranças com que construímos os nossos programas, os nossos projetos, os nossos hábitos e prioridades. Mostra-nos como deixamos adormecido e abandonado aquilo que nutre, sustenta e dá força à nossa vida e à nossa comunidade". Por isso, o cardeal considera que "estamos a tempo de transformar a crise em oportunidade e a calamidade em esperança".
Porque D. José Tolentino Mendonça não tem dúvidas: "a reconstrução pós-pandemia depende do modo como encararmos a fraternidade. É isso que afirma o Papa Francisco na Encíclica Fratelli Tutti que se propõe como bússola à Igreja e ao mundo para relançarmos a nossa viagem comum".
O cardeal guardou para o final o momento que diz muito sobre o caminho que a Igreja e o Santuário de Fátima já estão a preparar: as Jornadas Mundiais da Juventude em 2023, em Portugal, que incluem a vindo Papa Francisco a Fátima. De resto, já ontem o bispo de Leiria-Fátima, cardeal António Marto, revelara, em conferência de imprensa, o momento em que, há dias, a 29 de abril, em Roma, o papa lhe transmitiu que viria ao Santuário, aproveitando a vinda às Jornadas de 2023. "Disse-me que não faria sentido ir a Portugal e não ir a Fátima", transmitindo-lhe mesmo que "Fátima é a alma de Portugal".
E por isso, foram também os jovens um dos alvos de D. José Tolentino Mendonça, num mundo "fatigado por esta travessia pandémica que ainda dura, e que pede a cada um de nós vigilância e responsabilidade". E que "não tem apenas fome e sede de normalidade: precisa de novas visões, de outras gramáticas, precisa que arrisquemos ter sonhos. Em especial aos jovens, e aos jovens portugueses que se preparam para acolher em 2023 as Jornadas Mundiais da Juventude, eu quero dizer a partir de Fátima: em vez de ter medo, tenham sonhos. Descubram que Deus é aliado dos vossos sonhos mais belos. Ousem sonhar um mundo melhor. Sintam que o futuro depende da qualidade e da consistência dos vossos sonhos".
No recinto, havia alguns que o escutavam, entre os 7.500 peregrinos. Depois, D. José Tolentino dirigiu-se a todos, colocando-se no papel de um deles. Afinal, também ele fizera o caminho a pé, a partir de Porto de Mós, como revelou na véspera.