Realismo - eis uma palavra que não está na moda. Mas é o cinema francês que, na competição do Festival de Cannes, nos convoca para as suas múltiplas ressonâncias. É certo que a abertura do certame, com Annette, de Leos Carax, constituiu uma bela celebração dos poderes do musical, de qualquer, depois disso, já tivemos Tout S"est Bien Passé, de François Ozon, cruzando o realismo social com a tradição do melodrama; agora, importa destacar o magnífico La Fracture, de Catherine Corsini (cineasta de quem podemos recordar, por exemplo, o drama Partir, com Kristin Scott Thomas)..O realismo não é o mero prolongamento das imagens que, de uma maneira ou de outra, se repetem na aceleração mediática. Em qualquer caso, o efeito realista de La Fracture começa no nosso reconhecimento do contexto em que tudo acontece: uma noite, em Paris, marcada por uma manifestação dos "coletes amarelos" que, na sequência da intervenção das forças policiais, vai levar muitas pessoas ao hospital..Uns bons 90% da acção decorrem, precisamente, num hospital. Corsini consegue, além do mais, concretizar um verdadeiro "tour de force", já que o essencial se passa em duas ou três salas e alguns corredores. Aí se vão encontrar um motorista de camiões, ferido na manifestação (Pio Marmai, espantoso actor), e um casal de duas mulheres (as sempre impecáveis Marina Foïs e Valeria Bruni Tedeschi)..Em boa verdade, a presença delas no hospital não tem nenhuma relação com a manifestação (a não ser pelo facto de tentarem contactar o filho adolescente que foi encontrar-se com amigos nos Campos Elísios). O filme começa com uma discussão em que, com emoções desencontradas, voltam a avaliar a hipótese muito séria de, ao fim de uma década de vida partilhada, se separarem... Na atribulação que se segue, uma delas (Tedeschi) fractura um braço e vai parar às urgências..Um dos efeitos mais intensos - realista, justamente - do modo como Corsini filma os lugares e as pessoas decorre do súbito cruzamento destas pessoas que, à partida, pouco ou nada têm em comum. O certo é que não podem deixar de partilhar o próprio "ar do tempo" em que vivem. É especialmente sugestivo o modo como evolui o diálogo entre as personagens de Marmai e Tedeschi, desde logo reflectindo as suas diferenças de classe, a certa altura explodindo numa especulação sobre quem votou ou não votou em Emmanuel Macron... Sem esquecer que o hospital está longe de ser um cenário neutro, já que Corsini tem o cuidado de explicitar os seus desequilíbrios estruturais e também as singularidades dos que lá trabalham..Entretanto, vale a pena lembrar que esta pulsão realista continua a ser um fenómeno que transcende fronteiras geográficas e culturais. Uma prova eloquente poderá ser o filme da cineasta russa Kira Kovalenko, Unclenching the Fists, apresentado na secção "Un Certain Regard". Como ela explicou na projecção oficial, tratou-se de regressar à Ossétia, no Cáucaso, de onde é originária (nasceu em 1989). Fazendo o retrato de um família ferida por memórias profundamente traumáticas, umas íntimas, outras históricas, o trabalho de Kovalenko faz lembrar as matrizes de um certo realismo assombrado que pontua muitas narrativas do cinema russo. Para fazer o retrato do seu tão peculiar universo, talvez valha a pena referir que foi aluna do autor de A Arca Russa, Aleksandr Sokurov..dnot@dn.pt