O maior festival de cinema do mundo arranca esta terça-feira sob muitos signos. O da mensagem que o cinema continua num mundo em guerra com a pandemia e um outro com um dardo muito afiado: a insofismável causa de um cinema de autor aberto a vários públicos. Mas dê por onde der, Cannes 2021 será sempre um festival da retoma, sobretudo num ano em que estão filmes da seleção do ano passado, de Nanni Moretti a Paul Verhoeven, dois exemplos de cineastas que esperaram que o festival acontecesse de novo e não quiseram trair a Croisette com outros festivais rivais. Tal como o Europeu de Futebol, esta 74ª edição também poderia colocar 2020 no título..A partir de hoje, o mundo do cinema aposta todas as fichas numa seleção de filmes que prefere mais consagrados do que novatos. Mais do que nunca, eram precisos filmes com "nome". Filmes que dêem esperança a um mercado massacrado com os contratempos deste novo normal. Por isso mesmo, do ponto de vista do mercado é um ano ainda mais decisivo, ainda que já se saiba que estarão muito menos stands do que o habitual, conforme se esperava...De um outro ponto de vista, mais artístico, é essencialmente um festival que dos autores vai aos atores. Um pouco como nos melhores tempos, trata-se de um festival também marcado pelo peso dos atores. Atores que garantem a sua presença numa escadaria de tapete vermelho com novas regras: os paparazzi terão de apostar mais no zoom - as estrelas não estarão tão perto..É precisamente nessa passadeira que uma atriz desfilará com frequência: a musa do festival, Léa Seydoux, a atriz francesa mais internacional. Num ano em que voltará a ser a Bond Girl oficial em 007 Sem Tempo para Morrer, Léa é estrela de The French Dispatch, de Wes Anderson, France, de Bruno Dumont, The Story of My Wife, de Ildikó Enyedi e Tromperie, de Arnaud Desplechin. Aconteça o que acontecer, será sempre um certame marcado pelo seu olhar fulminante. Mas não é a única atriz omnipresente: Tilda Swinton também é presença constante em Cannes. De The French Dispatch a Memoria, de Apichatpong Weerasethakul, passando por The Souvenir Part II, de Joanna Hogg, este exibido na Quinzena dos Realizadores. Depois, da América o contingente é vistoso: Sean Penn traz o seu Flag Day; Matt Damon é a estrela de Stillwater, filme americano de Tom McCarthy que passa fora de competição e só French Dispatch traz ao Gran Palais Lumiére craques como Bill Murray, Owen Wilson e Adrien Brody. E para provar que o Festival gosta de atores há um encontro público com Matt Damon e esta noite Jodie Foster tem direito a homenagem na soirée de abertura. Para quem pensa que este festival apenas faz o culto à figura do realizador como a única grande estrela, estas iniciativas tendem a provar o contrário..Talvez mais do que nunca vamos ter uma seleção oficial já com muitos filmes adquiridos pelas distribuidoras portuguesas. Desta fornada quase tudo poderá ser visto nos cinemas e é conveniente reforçar "nos cinemas". Tal como o ano passado, a Netflix aqui não tem permissão para passar os filmes. O tal braço de ferro entre o gigante do streaming e o festival continua. Cannes ainda propôs alguns títulos na secção ora de competição mas a Netflix foi inflexível e, por exemplo, o novo filme de Jane Campion ficou mesmo de fora (talvez sobre para Veneza, festival que é de um país que não tem regras tão protecionistas contra os abusos das plataformas no mercado do cinema...)..Neste regresso a Cannes o que se pode dizer do dia da véspera é que a covid acaba por dominar todas as ações. Alguém que queira entrar no Palais tem de mostrar certificado de vacina ou teste com validade de 48 horas, coisa que fará todo o sentido se pensarmos que a capacidade das salas vai estar completa - aqui não há cadeira ao lado vazia . O problema está no sistema de testagem: gratuito para todos os acreditados mas com mais filas do que se poderia espantar e com cerca de seis horas de aviso de resultado, algo pouco lógico se pensarmos que se trata de um teste de saliva. Cobrir este festival com diversas secções, inúmeras conferências de imprensa e entrevistas agendadas pode ser um pesadelo logístico desafiador....Tudo isto num ano em que o festival quis ficar verde de forma brusca: os cacifos com os dossiers de imprensa foram abolidos, bem como todos os catálogos. Poupar papel é uma das divisas deste festival que também cobrou uma taxa de 25 euros a todos para combater as emissões de carbono. Uma pegada ecológica que também inclui uma secção para o cinema repensar os problemas ecológicos deste planeta e na qual se espera com alguma curiosidade La Croisade, de e com Louis Garrel, o último filme escrito pelo saudoso Jean-Claude Carriére..O festival arranca com um dos filmes mais antecipados: o regresso de Leos Carax com Annette, a partir da música dos Sparks. Um musical emocional para sermos levitados por Adam Driver e Marion Cotillard. Uma abertura em grande e com o tal "star power" que não vai abandonar a escadaria alcatifada do palácio.