Calvinismo vs. catolicismo explica mal-entendidos entre Norte e Sul na UE
O holandês Mathieu Segers, professor de História Contemporânea e de Integração Europeia na Universidade de Maastricht, recorda-se perfeitamente de quando o seu compatriota Jeroen Dijsselbloem acusou os europeus do Sul de gastarem dinheiro em "copos e mulheres". Estávamos em março de 2017 e Dijsselbloem era ministro das Finanças dos Países Baixos (o nome oficial da Holanda) e presidente do Eurogrupo. "Foi um reflexo da cultura calvinista, ou do que sobra dela no país, sobretudo no norte. E um aspeto dessa cultura é o individualismo levado ao extremo. Porque esse foi o grande argumento da Reforma: que as pessoas deviam começar a ler sozinhas a Bíblia, a ter uma relação com Deus como indivíduos. Isto de alguma forma ainda se expressa quando se trata de cooperação europeia, especialmente quando o dinheiro está envolvido. Mas se muitos holandeses concordaram, outros tiveram vergonha do que foi dito", explica o académico, que esteve em Lisboa para uma conferência sobre as divisões Norte-Sul na União Europeia, e preconceitos, realizada na Nova SBE, em Carcavelos.
"Do ponto de vista holandês, e com base nessa tradição individualista, há sempre o foco na competição, o que cada país deve conseguir no quadro da cooperação europeia. A ideia é melhorar através da competição, a chamada convergência por cima. E temos, como povo, medo que os outros não levem a sério essa competição, que vão ser frágeis e pedir ajuda, algum dinheiro, fundos extras. Chamamos a isso, nos Países Baixos, a abordagem francesa, porque dizemos que os franceses não pensam em competição, mas sim em fundos para compensar o malheur do mercado interno", acrescenta Segers. No fundo, e olhando para as sociedades do Norte da Europa e comparando-as com as do Sul, na parte protestante, onde domina o calvinismo ou luteranismo, o ênfase é no indivíduo, por contraponto ao ênfase na comunidade, para manter a coesão social, como acontece nos católicos Portugal, Espanha, França ou Itália.
Segers, nascido em 1976 em Maastricht, cidade que deu nome a um dos mais famosos tratados europeus, admite que na sua região, quase encravada entre a Bélgica e a Alemanha, o pensamento até é um pouco diferente do resto do país, e não hesita em criticar as célebres palavras de Dijsselbloem por serem aquilo que classifica como "a busca da popularidade à Boris Johnson, à base de clichês", referindo-se ao primeiro-ministro britânico, que foi um dos campeões pró-Brexit na campanha inflamada para o referendo de 2016.
Colunista em vários jornais holandeses, e com obra publicada e premiada sobre os Países Baixos no processo de construção europeia, Segers afirma que a saída do Reino Unido, concretizada em 2020, foi uma péssima notícia para o seu país. E explica: "ao longo de séculos, os britânicos foram os nossos protetores contra as ambições hegemónicas umas vezes da Alemanha outras vezes da França. De certa forma, foi surpreendente em 1957, enquanto nação atlântica, termos entrado num projeto de construção continental franco-alemão. E na década de 1960, quando foi criada a EFTA, sob liderança britânica e com membros como a Dinamarca ou Portugal, houve muitas dúvidas no governo holandês - secretas -, sobre se fazia sentido estar na CEE, a antepassada da UE. A adesão em 1973 do Reino Unido e da Dinamarca foi um alívio. O atlanticismo ganhava força. E ao mesmo tempo a ideia de liberalismo, de livre circulação de pessoas, bens e produtos financeiros, impôs-se, num sentido que favorecia a economia holandesa".
Nota ainda o antigo investigador em Harvard e Oxford, que, por ironia, o Reino Unido saiu da UE quando esta, moeda única à parte, cada vez mais era moldada à maneira britânica, com uma verdadeira influência do Reino Unido a fazer-se sentir nos então 28. Segers relembra ainda 2003 e a cimeira dos Açores como exemplo de haver um grupo atlanticista na UE, com Portugal e Países Baixos juntos com os anglo-saxões no ataque ao Iraque de Saddam, enquanto o eixo franco-alemão, falando em nome de uma UE continental, se opunha à intervenção.
A conversa decorre num pequeno hotel lisboeta, na zona da rua das Janelas Verdes, perto do Museu Nacional de Arte Antiga. Segers esteve a passear um pouco antes da conversa e diz que percebe bem o lado atlântico de Portugal, "que não é pela geografia um país do Mediterrâneo, mesmo que partilhe o catolicismo e a latinidade do Sul". Concordamos que a saída do Reino Unido também contraria uma ligação histórica secular com Portugal, de certa forma idêntica à que o Reino Unido tem com os Países Baixos. Mas o académico holandês acrescenta que há algo em que Portugal na UE sempre esteve em campo oposto ao do Reino Unido, e dos Países Baixos, que é a "integração pela negativa", deixando cair barreiras alfandegárias e outras, e a "integração pela positiva", por exemplo, preparando um salário mínimo comum aos, agora, 27.
Se "Divisão Norte-Sul na UE - perceção ou realidade?" era o tema da conferência na Nova SBE, organizada em parceria com a embaixada dos Países Baixos, também se pode falar de outra divisão: A Leste-Oeste, que parecia desaparecida com a queda do Muro de Berlim em 1989, mas que ressurge agora através de choques na UE sobre o direito de asilo ou o primado da lei. "Fala-se muito de democracia, até de democracia direita com recurso a referendos como o do Brexit, mas o primado da lei está a ser posto em segundo plano em países como a Polónia ou a Hungria e isso contraria o espírito da construção europeia, a própria credibilidade de todo o sistema idealizado nos anos 1950. A ideia era haver o primado da lei nos países e a UE trazer um quadro adicional de primado da lei", nota Segers, que acusa vários líderes europeus de imitarem o que fez Donald Trump quando foi presidente dos Estados Unidos.
No quadro da recente cimeira na Eslovénia sobre os candidatos dos Balcãs Ocidentais à adesão à UE, Segers faz uma leitura dupla sobre um eventual novo alargamento a Leste. "Por um lado está na natureza da UE esse alargamento. Nunca foi fixado um objetivo final nem geográfico, político nem institucional. Por outro, trata-se da linha da frente de novos desafios geopolíticos, mas também por isso, e pela forte relação com a UE, o alargamento pode ser equacionado".
A conversa não termina sem Segers dar um tom mais otimista à conversa: "no fundo, apesar de todos estes debates sobre divisões, apesar do Brexit, há uma geração transeuropeia cada vez mais evidente. E essa realidade vai ficar ".