Call centers. Trabalham à distância mas não podem fazer teletrabalho
"Venho trabalhar com medo. Trabalhamos 24 horas e em turnos, nesta sexta-feira estávamos 50 pessoas no mesmo espaço. Todos os dias mudamos de computador, o mesmo lugar pode ser usado por três a quatro pessoas. A partir de hoje, pediram para ficarmos em cadeiras afastadas, de manhã foi possível mas à tarde não porque éramos muitos. Estamos assustados, em pânico, pensar que alguém, incluindo eu, poderá ter o vírus e o estar a espalhar aos outros."
É o relato de uma funcionária da Webhelp, um call center francês presente em 35 países, incluindo Portugal, e com mais de 55 mil funcionários. Não quer revelar o nome, com medo de ser despedida, chamemos-lhe Margarida.
A trabalhadora da Webhelp revela as condições de quem continua a trabalhar em espaços fechados não respeitando as regras de distância para evitar a propagação do novo coronavírus e, como ela, muitas outras pessoas trabalham sem condições de saúde para fazer face ao covid-19, denuncia o Sindicato dos Trabalhadores dos Call Centers (STCC), que mantém para terça-feira o aviso de greve.
"Os trabalhadores estão todos com medo, assustados, alguns estão a faltar, outros meteram férias, há quem esteja a dar apoio aos filhos e está em casa, mas grande parte das empresas exigem que as pessoas trabalhem no local de trabalho", denuncia Danilo Moreira, presidente do STCC.
Margarida tem 30 anos, fala inglês e francês, além do português, desloca-se todos os dias para o escritório da empresa em Lisboa porque tem "contas por pagar" e não quer arriscar "perder o emprego". Recebe cerca de mil euros por mês, vai no segundo contrato de seis meses, revela que há colegas contratados ao mês e alguns a quem não estão a renovar o contrato. "São muitas as pessoas que estão no mesmo espaço, depende das horas e dos turnos, que se cruzam. Há pessoas que já não vêm trabalhar, preferiram arriscar o emprego em prole da saúde. Não posso arriscar, tenho uma casa para pagar."
Denuncia, também, que não estão a ser cumpridas as regras de higiene. "O desinfetante esgotou, tentaram dar um headset [auscultadores com microfone] a cada agente, que não eram novos, não foram desinfetados e não eram em número suficiente. Alguns agentes tiveram de continuar a partilhar os headsets." Acrescenta que não têm máscaras ou luvas, o ar condicionado funciona mal e o chão é de alcatifa.
A discrição não surpreende Danilo Moreira, que trabalha num centro da PT, cujos trabalhadores estão em regime de teletrabalho. Salienta que as deficientes condições de trabalho foram um dos aspetos para os quais alertaram quando fundaram o sindicato, em 2013. "As pessoas estão todas em cima uma das outras, há edifícios com mais de dez andares e sobem nos elevadores umas em cima das outras, o que também se verifica nos espaços de refeição. As más condições já existiam, só que agravaram-se com a situação da covid-19".
Explica que limitar os trabalhadores por computador, deixando uma cadeira livre entre cada funcionário, nem sempre é viável, porque não há cadeiras suficientes. E, seja no início do turno ou após as refeições, a regra é ocupar o computador que esteja livre. Também o STCC recebeu denúncias de não haver desinfetante suficiente e de falta de higiene nos escritórios.
Existem 422 call centers no país e mais de cem mil trabalhadores em centro de contacto (call center), muitos dos quais estão em empresas multinacionais, com base num levantamento do Instituto do Emprego e Formação Profissional, de 2017.
Um dos responsáveis da Associação Portuguesa de Contact Centers (APCC) e administrador da Rh+, Rui Henriques, tem uma visão menos pessimista do que está a acontecer. "O que se passa no meu grupo é representativo do setor. Tem havido uma luta contra o tempo e as várias adversidades no sentido de colocar em teletrabalho o maior número de colaboradores, mas uma coisa é falar de teletrabalho e outra é concretizar. Depende das aplicações, é preciso reconfigurar máquinas, não há equipamentos suficientes, há quem não tenha internet em casa. Há setores em que 50% das pessoas estão em teletrabalho; na minha empresa, estamos 73,7% em teletrabalho e 5% estão em apoio à família e em isolamento profilático."
Não parece ser essa a situação de Margarida, na Webhelp, do Parque das Nações. Argumenta que há suficientes computadores portáteis com as mesmas capacidades de um computador de mesa, existindo até funcionários que estão a trabalhar em casa, nomeadamente chefias, pessoas com doenças crónicas ou que prestam apoio aos filhos, bem como os que moram longe. "Estamos revoltados. Sentimo-nos desvalorizados, desconsiderados. Estamos em risco de vida e tristes por poder estar a comprometer a vida de outros cidadãos que realmente precisam de sair à rua e que têm empregos essenciais à vida humana", protesta.
Além das condições de trabalho, salienta que estas empresas têm trabalhadores de muitas nacionalidades e que, nas últimas semanas, viajaram para os países de origem sem que lhes tenha sido feito algum controlo no regresso a Lisboa.
No caso da Webhelp, há escritórios da multinacional em Portugal que promoveram o teletrabalho. A explicação que deram é que isso depende do cliente. Margarida e os colegas trabalham para a HotelTonight, que foi comprada pela Airbnb, que não permitirá que os trabalhadores façam o atendimento a partir de suas casas. Já a Lacoste, serviço que é prestado pelo gabinete de Oeiras, dá essa permissão.
Rui Henriques é sensível ao facto de haver circulação transfronteiriça de muitos das trabalhadores destas empresas e que deveria haver maior atenção a esses casos; também que há setores, como as telecomunicações, que mais rapidamente se adaptaram às novas exigências. Justifica, no entanto, que não se trata, apenas, de levar um computador para casa e trabalhar a partir dai, nomeadamente na área de atendimento, que diz representar 90% dos casos.
"Todas as empresas que colocaram as pessoas em teletrabalho fizeram das tripas coração. Um administrativo ou quem esteja em formação pode fazer isso, já no atendimento depende da capacidade da empresa para instalar o equipamento necessário e tem de se estabelecer prioridades, do lado dos clientes, dos trabalhadores e do tipo de serviço que é prestado. Do ponto de vista técnico, a prioridade tem que ver com a maior ou a menor aceleração dos processos tecnológicos para permitir o acesso externo aos sistemas internos", explica o representante da APCC.
A situação de serem os clientes a não permitir que se faça essa transição teráquea ver com o tipo de informação com que trabalham. "Os sistemas foram todos blindados para proteger o acesso à informação dos clientes e, de repente, tem de se possibilitar o acesso para fora a milhares de colaboradores."
O DN tentou contactar, sem êxito, a Webhelp, a Airbnb e a Teleperformance. Esta última conta com mais de 350 mil trabalhadores a nível internacional, 11 mil dos quais em Portugal.
No seu site, a Webhelp orgulha-se de ser "a líder europeia no seu setor, com uma receita de 1,4 mil milhões de euros em 2018", tendo aumentado os lucros em 250% nos últimos quatro anos. No dia 16 de março, os seus fundadores, Olivier Duha e Frédéric Jousset, apelaram ao esforço dos trabalhadores, prometendo tomar "medidas de saúde compatíveis com a continuidade" das atividades/serviços", para responder aos clientes. Asseguram: "Sempre que a contenção for necessária, faremos o possível para implementar soluções técnicas que permitam que o trabalho em casa cumpra nossa missão e mantenha nossos negócios em funcionamento. Proteger os nossos funcionários a todo custo e evitar a contaminação, atender nossos clientes adotando uma abordagem de parceria responsável, proteger nossa empresa e garantir nosso futuro são nossos desafios neste momento."
No mesmo sentido, a Teleperformance emitiu uma nota aos colaboradores: "Estamos comprometidos em manter um ambiente de trabalho seguro para a nossa família TP. Vamos expandir esse sentimento ao longo de todas as nossas vidas diárias - não apenas no trabalho."
Já a mensagem da Airbnb dirige-se aos anfitriões, às pessoas que disponibilizam os alojamentos: "Apesar da enorme repercussão do coronavírus na nossa comunidade, sabemos que esse momento vai passar e que as viagens voltarão a acontecer. Como os hóspedes estão a usar o Airbnb para reservas de longo prazo e estadas perto de casa, precisamos de atuar de maneira solidária para superar essa situação o mais rapidamente possível", escrevem os fundadores, Brian, Joe e Nate.
O presidente do STCC salienta que uma coisa são as palavras e outras são as ações, a prática, daí terem decidido manter a greve, depois de audição aos juristas sobre se o poderiam fazer uma vez que foi declarado de estado de emergência que, entre outras medidas, restringe o direito à greve a todos os prestam serviços considerados críticos - saúde e abastecimentos, como se lê no decreto do estado de emergência). "Não fornecemos serviços essenciais e o que pedimos é que se garantam as condições de saúde dos trabalhadores", justifica Danilo Moreira. Lançaram uma petição há menos de uma semana - Calamidade Pública: Ausência de Condições Laborais Call Centers e Shared Services Centers acentuadas pelo COVID-19 , que conta com mais de 600 assinaturas.
O DN contactou o gabinete da ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ana Godinho, que respondeu que as medidas adotadas há uma semana, decreto-lei 10/202, se aplicam a todos os trabalhadores. O artigo 29.º, sobre o teletrabalho, diz que "o regime de prestação subordinada de teletrabalho pode ser determinado unilateralmente pelo empregador ou requerido pelo trabalhador, sem necessidade de acordo das partes, desde que compatível com as funções exercidas".