Um pouco antes do Halloween, quando as vivendas de Culver City estavam decoradas com esqueletos, fantasmas e abóboras, um carro estacionado de portas abertas passava a música FDT (F**k Donald Trump), de YG e Nipsey Hussle, no volume máximo. Os vizinhos sentavam-se à soleira das portas, levantando as mãos ao ritmo dos versos e sorrindo, numa espécie de exorcismo coletivo embalado pela música. Pelos jardins impecáveis das vivendas, que dão aos subúrbios um aspeto tão tipicamente americano, a mensagem dos cartazes era sempre a mesma, não importa quantas vezes se virasse para uma rua à direita ou à esquerda: "Votem em Biden-Harris.".O cenário repete-se por todo o lado no condado de Los Angeles, que, com dez milhões de habitantes, é o mais populoso do país inteiro. "Biden-Harris: Tornem a América orgulhosa outra vez", lê-se num estandarte em North Hollywood. "Qualquer adulto funcional 2020", lê-se noutro. Pelas ruas de Los Angeles é difícil encontrar um único sinal de apoio a Trump-Pence nos quintais, nos vidros traseiros dos carros ou nas janelas dos apartamentos..Este condado do sul da Califórnia é também um dos mais multiculturais do estado, ele próprio muito rico em diversidade e também o mais populoso do país - 39,5 milhões de habitantes. Aqui há comunidades vindas de todo o mundo, emigrantes de todo o tipo (legais e ilegais) e um sentido muito próprio de sonho americano.."Los Angeles é muito liberal. A maior parte dos republicanos estão em Orange County e em zonas mais conservadoras", disse ao DN Afonso Salcedo, um norte-americano que cresceu em Portugal e regressou ao país em 2004, aos 24 anos. Fotógrafo e artista de iluminação, com um extenso currículo em filmes da Pixar e da Disney, Salcedo considerou que Joe Biden foi uma boa escolha do partido democrata, e está "pela primeira vez" a sentir-se confiante na sua vitória.."Acho que existe uma possibilidade muito grande de haver uma vitória esmagadora do Biden, não só em termos das eleições presidenciais mas também da Câmara dos Representantes e do Senado", afirmou. "Estamos a bater os recordes de participação, por causa do voto postal, não só na Califórnia mas a nível nacional. Isso é muito bom sinal.".A Califórnia já tinha registado um recorde de participação em 2016, quando 14,1 milhões de eleitores (75,3% do universo total) votaram - muito mais do que a média nacional, de apenas 58,1%. Nesse ano, Hillary Clinton esmagou o oponente no estado, ganhando por 30 pontos (61,5% contra 31,5% de Trump) e ultrapassou até a margem com que Barack Obama vencera nas eleições anteriores..Agora, há mais eleitores registados do que nunca, 21 milhões, e as projeções são igualmente megalómanas. Se as eleições presidenciais dependessem só do voto da Califórnia, Joe Biden venceria com o que os norte-americanos chamam de landslide - um deslizamento de terra, uma avalancha, uma onda esmagadora. A plataforma FiveThirtyEight prevê que o candidato do Partido Democrata vença por uma margem de 25 a 30 pontos percentuais, levando facilmente os 55 votos do colégio eleitoral a que a Califórnia tem direito..A inclinação do estado para a esquerda nota-se também nos números de afiliação partidária. A percentagem de eleitores registados como democratas cresceu de 45,1% em 2016 para 46,3%, segundo os últimos dados do Instituto de Política Pública da Califórnia (PPIC, na sigla inglesa). Ao mesmo tempo, o número de eleitores registados como republicanos caiu de 27,1% em 2016 para 24% em 2020. A maioria dos restantes aparece como independente (24%), mas também aqui há um pendor democrata: 46% dos independentes inclinam-se para o partido azul, enquanto 37% se inclina para o partido vermelho..Sandra Lee Carapinha, uma norte-americana que foi viver para Portugal aos 9 anos e regressou aos Estados Unidos na idade adulta, é uma eleitora independente que pende para os democratas. "As pessoas aqui são muito progressistas, ainda defendem muito esses ideais, têm mais mente aberta, ajudam o outro, são mais tolerantes", disse ao DN. "Nesse sentido, identifico-me muito com a Califórnia, com a maneira de ser e de estar dos californianos. É uma das razões que me fazem continuar a viver nos Estados Unidos. Se vivesse num estado onde as coisas fossem mais conservadoras, sentia-me mais forçada a voltar para Portugal.".Na Califórnia liberal, os democratas encontraram um dos seus redutos mais fortes, controlando o congresso estadual com supermaiorias na câmara e no senado e o governo do estado, liderado por Gavin Newsom. Os dois assentos californianos no Senado são democratas há décadas e dos 53 lugares na Câmara dos Representantes no congresso, 45 são democratas e apenas sete republicanos (há um distrito sem representante neste momento)..Como se explica este domínio azul num estado tão grande e diverso? A questão é ainda mais pertinente quando se olha para o passado recente. Entre 2004 e 2011, a Califórnia foi governada por um republicano, Arnold Schwarzenegger. Já o tinha sido entre 1991 e 1999, com Pete Wilson, e entre 1983 e 1991, com George Deukmejian. E foi o cargo de governador da Califórnia, entre 1967 e 1975, que impulsionou o republicano Ronald Reagan para a Casa Branca anos mais tarde. Nunca houve, na história da Califórnia, um pendor tão forte para um só partido. O que é que aconteceu?."Parte disso é porque este presidente considerou ser do seu interesse declarar certos estados como inimigos", disse ao DN Justin Levitt, professor de Direito na Loyola Law School e especialista constitucional. "Ele gosta de escolher vencedores e perdedores, gosta de fazer amigos e inimigos, governa como se tudo fosse para a televisão", afirmou. "Decidiu que seria do seu interesse representar a Califórnia como a vilã, a inimiga, um sítio que ele gosta de vaiar nos seus comícios." Nova Iorque, e mais alguns estados democratas, são outros sítios representados da mesma forma. Mas a Califórnia tem tido um destaque especial na retórica do presidente, que ainda há pouco tempo escreveu no Twitter que o estado "está a ir para o inferno" e que os californianos não têm nada a perder em votarem nele.."A Califórnia era azul, mas não escandalosamente azul. Não é uma memória distante ter governadores republicanos e uma parte substancial da legislatura estadual republicana", lembrou o professor Levitt. "Orange County foi durante muito tempo a casa espiritual do movimento conservador moderno. Os presidentes Nixon e Reagan eram enfáticos conservadores californianos.".Agora, explicou, não é que a Califórnia não tenha uma "poderosa afiliação" com o que o partido republicano costumava ser. "É que este presidente viu ser do seu interesse, e isso não significa o interesse do partido, alienar a Califórnia. Em certa medida, a Califórnia respondeu", disse. O professor comparou o estado à União Europeia, onde há "visões muito diversas" sobre políticas económicas, sociais e direitos humanos, mas sublinhou que a maioria da Califórnia é centrista/progressista. "O governador Newsom estaria em casa junto de muitos líderes europeus", sugeriu. A retórica incendiária do presidente, aliada a uma série de políticas contrárias aos princípios de muitos californianos, teve um impacto no grau de polarização do estado..Um bom exemplo desse efeito foi o facto de Orange County, onde Richard Nixon nasceu e se criou, ter passado para os democratas depois de décadas sob uma "cortina" republicana que parecia impenetrável.."Há partes da Califórnia que são profundamente vermelhas, mas cada vez em menor número", explicou Levitt. "Isso tem que ver tanto com o facto de o partido republicano ter seguido a liderança de Trump no afastamento da maioria dos californianos, como com a visão dos californianos em relação a uma série de questões.".Uma dessas partes profundamente republicanas encontra-se no vale central da Califórnia, onde reside uma grande comunidade de origem portuguesa. Nos condados de Kings, Tulare, Kern e Fresno encontram-se muitos eleitores conservadores, o que se reflete na eleição de representantes republicanos como o luso-americano Devin Nunes (22.º distrito) e Kevin McCarthy (23.º distrito). No 21.º distrito, o lusodescendente David Valadão está a tentar recuperar o lugar que perdeu em 2018 para o democrata T. J. Cox.."Queremos ganhar distritos suficientes, como o do Devin e do David, e há outros no norte", explicou Richard Machado, luso-americano que trabalhou com o ex-governador republicano Pete Wilson e que é presidente de uma empresa de software agrícola, Agrian, em Fresno.."Eu chamo a isto a "costa esquerda", não a costa oeste, porque as áreas conservadoras são as do interior", disse. "O desafio para os republicanos na Califórnia é conseguir o máximo de distritos do congresso quanto possível.".A tarefa não é fácil e, no caso do Senado, Machado considera ser quase impossível. "Pessoalmente, na corrida ao Senado, não me parece que alguma vez a Califórnia vá eleger um senador republicano", considerou. "Por isso, estou a apoiar senadores que competem noutros estados. Porque um senador noutro estado consegue cancelar o voto da Califórnia. Têm o mesmo poder", descreveu..É por isso que o luso-americano faz donativos a campanhas republicanas que considera competitivas. "Houve um democrata muito estratégico na Califórnia, Jesse Unruh, que disse que dinheiro era o leite materno da política", explicou..No vale de São Joaquim, onde há um forte pendor para a indústria agrícola, as comunidades portuguesas são sobretudo conservadoras. "Há muitos portugueses que são democratas, mas há muitos republicanos de origem portuguesa também, com uma experiência mais tradicional, mais conservadora, ligada aos valores", revelou Machado..Isso é muito visível na região, onde os cartazes "Trump-Pence" estão por todo o lado. Em Fresno houve, recentemente, uma parada de carrinhas de apoio ao presidente, com bandeiras, buzinas e chavões. A retórica de Donald Trump em relação à Califórnia não incomoda os apoiantes. Pelo contrário.."A Califórnia tem ardido muito nos últimos cinco a seis anos, e é porque as florestas não estão a ser bem geridas", apontou Margaret DoCanto, que vai votar em Trump. "Ele mencionou ao nosso governador que tem de tratar desse assunto.".A irmã, Rosie Nunes, nem sequer percebe porque é alguém votaria nos democratas. "Biden e Harris são más notícias. Harris é uma senadora da Califórnia, e olhem para isto: a Califórnia é um gosto do socialismo neste momento", disse. "Somos os piores do país inteiro", considerou, criticando as medidas rigorosas de contenção da pandemia decididas por Gavin Newsom.."Temos um governador democrata radical que não tem nada que ver com o presidente Trump. É por isso que Califórnia, Nova Iorque e todos os estados democratas tiveram o número mais elevado de casos, de encerramentos, de tudo", afirmou..Richard Machado também apontou o dedo aos eleitos. "Na Califórnia, temos políticas loucas. A esquerda política levou a agenda para um extremo tão grande que é impossível fazer coisas.".Apesar de ter mais votos eleitorais do que qualquer outro estado, 55, acontece com frequência que o candidato preferido da Califórnia não é eleito presidente. Biden vai ganhar na Califórnia com milhões de votos a mais do que o oponente, mas isso não significa que a corrida nacional esteja garantida: o presidente será aquele que conseguir mais votos do colégio eleitoral. E nessa contabilidade os estados decisivos costumam ser outros.."São sempre os swing states que decidem as eleições, o que acaba por ser injusto. Não sou muito favorável ao colégio eleitoral", disse Sandra Lee Carapinha. "O que me choca é que um voto na Califórnia vale um terço de um voto no Wyoming. Não há uma proporção.".Afonso Salcedo tem uma visão semelhante, apesar de considerar que, historicamente, a criação deste colégio foi compreensível. "Agora já não faz tanto sentido. Não faz sentido estes estados no meio do nada, onde não há gente, conseguirem decidir as eleições constantemente.".Mas isso não significa que o estado não seja relevante, disse Justin Levitt. "São precisos 270 votos para ganhar a maioria do colégio eleitoral. A Califórnia tem um enorme número desses votos. Seria quase impossível pensar que o candidato preferido pela Califórnia ganharia a eleição sem ela.".Além disso, sublinhou, o que está no boletim de voto é muito mais do que Biden contra Trump. "Quando os eleitores vão às urnas para decidir o presidente, também decidem os membros da Câmara dos Representantes e do Senado, e cada uma dessas eleições é muito importante para concretizar a agenda federal", explicou o constitucionalista. "Tendemos a focar-nos demasiado neste país no que o presidente pode fazer, e não há dúvida de que é muito poderoso, mas é mais importante o que o congresso consegue fazer, em particular quando o congresso está unificado. Isso é muito mais sustentável do que qualquer coisa que o presidente faz.".Um cenário de unificação - isto é, Câmara dos Representantes e Senado nas mãos do mesmo partido - está à porta para os democratas. O partido vai manter a Câmara, que conquistou em 2018, e tem boas possibilidades de virar o controlo do Senado. Esse cenário tornaria uma reeleição de Donald Trump mais inconsequente, visto que o congresso poderia bloquear o presidente em todas as esquinas..Um congresso e a presidência nas mãos dos democratas durante os próximos dois anos seria uma viragem total das alavancas do poder, mas Levitt sublinha que a maioria das questões com que os californianos se deparam diariamente são geridas localmente. "Se pensarmos na resposta à covid, algo que está a afetar gente em todo o lado, a resposta do governador da Califórnia e da legislatura estadual foi muito mais importante do que qualquer coisa que o governo federal tenha feito", frisou..Talvez por isso mesmo, os californianos que se identificam como progressistas sentem-se mais protegidos e os que apoiam o presidente sentem-se frustrados. "A Califórnia tem resistido. À nossa maneira, naquilo que é possível, estamos a tentar ir numa direção oposta ao que o Trump pretende e sentimos que estamos aqui num cantinho resguardados", disse Sandra Lee Carapinha..Salcedo mencionou uma posição semelhante. "Pelo facto de estar na Califórnia, sinto-me um bocado protegido porque sei que o estado irá fazer o possível para manter as minhas liberdades e os meus direitos", afirmou. Mas ambos mostraram um receio pesado sobre o que acontecerá ao país se Trump for reeleito.."Tenho receio do que vai acontecer se Trump ganhar novamente. Tenho receio sobre o futuro do país", disse Sandra Carapinha. "Os Estados Unidos sempre foram uma referência em termos mundiais, em termos de liberdades; os melhores do mundo sempre quiseram vir viver para cá." Agora, disse, o mundo vê o país de forma diferente. "Os Estados Unidos estão divididos, o que só por si é assustador, e as pessoas não conseguem encontrar um ponto comum", analisou. Considerando que Joe Biden está aberto a tentar encontrar esse equilíbrio, a tutora de português disse que Trump dividiu as águas entre ele e os outros, separando estados republicanos de estados democratas.."Há aqui um processo de reconciliação que é preciso ser feito, que não vai ser fácil, e acredito que se Trump ganhar essa reconciliação não vai acontecer nos próximos quatro anos, e esta bipolarização vai ficar mais profunda e densa.".Por isso, considera que esta eleição é mais importante do que a de 2016. "Estes últimos quatro anos do Trump puseram em causa muitos valores que eram tidos como americanos", afirmou. "O país está completamente dividido e estou um pouco receosa, admito, sobre o que é que se vai seguir.".Afonso Salcedo referiu o mesmo receio. "Se Trump ganhar outra vez, ainda por cima com esta nomeação do Tribunal Supremo, vai ser muito complicado", afirmou, referindo-se à confirmação da juíza Amy Coney Barrett para a instituição, a 27 de outubro. "O Tribunal Supremo é uma chatice, porque ela é muito jovem e vai lá ficar durante décadas, é superconservadora e religiosa, anti-homossexuais, antiescolha, e acho que eles vão tentar regredir. Assusta-me um bocado", disse. "É a primeira vez, desde que vim para os Estados Unidos outra vez há muitos anos, que estou a considerar a hipótese de voltar para a Europa.".Salcedo sublinhou que Barrett pode ser decisiva se houver contestação dos resultados junto do Supremo, algo que tem sido ecoado por muitos democratas. Mas o professor Justin Levitt vê as coisas de forma diferente. "A minha previsão, de forma muito enfática, é que isso não vai acontecer", afirmou. "Os eleitores vão decidir esta eleição.".Correspondente em Los Angeles