Joana Pereira, 39 anos, é a filha do meio de um casal de Espinho com três filhos. Tem uma família "tipicamente nortenha", como quem diz numerosa: a mãe tem 13 irmãos, o pai sete. Primos são 60. Viveu "sempre rodeada por muita gente". E foi "acabar casada" com Fernando Matias, 36 anos, o último bebé que nasceu numa das aldeias menos habitadas do país - a Figueira, no concelho de Proença-a-Nova, Castelo Branco, onde vivem atualmente 16 pessoas. "De repente estou com uma pessoa que é o meu oposto, recatado e tímido, que cresceu a jogar às cartas com a velhota da frente e que jogava à bola contra a parede", brinca Joana..Agora vivem entre a Figueira - onde estão a construir o seu negócio e para onde se querem mudar e dar a conhecer as coisas boas da aldeia - e Lisboa, a cidade onde se encontraram. Tinham acabado de deixar o sítio onde nasceram para ir para a faculdade, na capital. Ela estudou Ciências da Educação e está ligada à área da formação e do turismo; ele fez o curso de Engenharia Informática e trabalha numa consultora.."Era um mundo novo", descreve Fernando Matias. Já conhecia Lisboa e "não foi nenhum choque de civilizações", também não vivia isolado na Figueira, mas "o ritmo de vida é muito diferente". Em criança, a pessoa mais próxima de si que tinha para brincar era o irmão, dois anos mais velho, e no verão, três outros meninos, filhos de gente da terra que regressava para matar saudades. "No inverno, era um bocadinho mais solitário. Só tive contacto com outras crianças [para além destas] aos 5 anos, quando fui para a escola primária", conta..Mas Fernando integrou-se bem em Lisboa, onde ainda hoje vive durante a semana, essencialmente por causa do trabalho. Aos fins de semana lá pegam na mala e trocam a agitação da capital pelo sossego da Figueira. A aldeia fica a sensivelmente duas horas e meia de Lisboa..A aldeia da Figueira tem um formato oval, as casas de xisto formam entre si um círculo fechado, parede com parede, apenas quebrado por quatro entradas, onde ainda são preservadas portas de madeira, que seriam para proteger a população dos lobos. Viviam, vivem fechados sobre si, com um grande espírito de comunidade e na maioria dos casos ainda há entradas de uma casa para a outra..O centro é preenchido por outras habitações, com o ano de construção centenário gravado na pedra. As ruas são estreitas e exigem quase uma fila indiana para percorrer o espaço "labiríntico", como descreve Joana, que se tornou uma espécie de guia turística da aldeia. Move-a a vontade de dar a conhecer as gentes, os modos de vida, as paisagens com campos cultivados e floresta a perder de vista. Percorre, com orgulho visível, os poucos caminhos da aldeia com desenvoltura, conhece-lhe os cantos, as histórias.."A Figueira é das poucas aldeias que aparecem em mapas militares das Invasões Francesas exatamente como a conhecemos hoje", vai explicando ao grupo que acabou de chegar, encaminhando-o pela "ruas dos beijinhos", como é conhecida a meia dúzia de metros que começa numa das portas principais, e onde não será possível passarem duas pessoas sem haver contacto físico..Fernando não acompanha Joana desta vez, "está no back office a preparar a comida" que os visitantes vão saborear no fim da visita, tudo pratos típicos da região. De qualquer maneira, Joana é um trunfo que têm para apresentar, é uma comunicadora nata, e traz a lição bem estudada. Depois da licenciatura, durante a especialização em formação de professores, na Universidade de Lisboa, teve uma cadeira sobre desenvolvimento local "que foi uma grande paixão" e que coincidiu com a altura em que conheceu Fernando e a aldeia da Figueira. "Eu olhava para a aldeia como um projeto ideal para poder pôr em prática aquilo que imaginava", diz..Foi tão bem acolhida, que propôs ao município de Proença-a-Nova um trabalho de investigação sobre as aldeias locais. E foi assim que, durante um ano, percorreu o concelho na carrinha de livros bibliomóvel - em que o funcionário da biblioteca lhe abria uma porta imaginária para a conversa com as pessoas da terra. Assim, Joana foi anotando "as histórias sobre como viviam, como dormiam, como se casavam"..Joana Pereira considera que há "muito potencial aqui" e trabalho por fazer. Quando começou a dizer que queria mudar-se disseram-lhe logo: "És maluca." Nem de fora nem de dentro a perceberam de imediato. Entre as pessoas da terra havia a ideia de que não tinham nada para lhe oferecer, a ela e a Fernando. "Não temos castelos, palácios, património edificado, diziam-me sempre. O que é um disparate, porque o património mais rico é precisamente este: as pessoas, esta forma de viver, de estar. Está aqui um diamante. E esta tornou-se a minha luta." Mas não esquece a frase que ouviu da primeira vez que anunciou a sua intenção de ficar: "Cachopa, o que vens para aqui fazer? Isto são só pedras.".Citaçãocitacao"O património mais rico é precisamente este: as pessoas, esta forma de viver, de estar".No pós-25 de Abril, a aldeia sofreu uma perda significativa de pessoas que decidiram ir aventurar-se, principalmente, para Castelo Branco, Coimbra, Lisboa, nesta última sobretudo na margem sul da área metropolitana por haver mais campos agrícolas e este ser o principal meio de sustento dos "ratinhos", como eram chamados os agricultores da região da Beira Baixa que iam trabalhar para os campos alentejanos. Há 50 anos, a aldeia ainda teria pouco mais de uma centena de habitantes. Em 2011, quando Joana a conheceu, eram 37. E a tendência é para que fique cada vez mais desabitada, à medida que os moradores vão morrendo e não há gente nova para os substituir.."A média de idades dos habitantes, neste momento, ronda os 90 anos", diz Joana Pereira. Os mais novos são os pais de Fernando: a mãe com 65 e o pai com 74, os únicos que decidiram ficar e continuar a ocupar-se do trabalho do campo. Todos os outros habitantes têm 93 anos ou mais..Fernando e Joana ainda não são contabilizados como moradores, mas "cada vez mais estou a trabalhar para me fixar aqui a tempo inteiro", assume a espinhense. Tornou-se representante das Aldeias do Xisto e está a montar o seu projeto de alojamento local ali perto. Isto soma-se ao restaurante que a família abriu em 2012, depois da criação da Loja da Aldeia do Xisto da Figueira, onde vendem produtos regionais. Os dois espaços ficam na mesma casa e são os únicos estabelecimentos da aldeia..O restaurante, explicam, "surgiu por necessidade". As pessoas que vinham visitar a Figueira não tinham até então nenhum sítio para parar, para comer qualquer coisa. Sem ser por marcação, a Casa da Ti Augusta - o nome que deram ao restaurante em honra da senhora que ali morou e que foi uma figura benemérita da aldeia, apesar de ser de uma família de posses sempre ajudou os mais desfavorecidos - está aberta apenas à sexta, sábado e domingo. Aqui "não se faz só comida", estão a "representar uma região, a contar uma história em torno do prato"..Enquanto servem a refeição tradicional, que pode incluir do maranho (um rolo de carnes de cabra, presunto e arroz) ao plangaio (uma mistura de enchidos, com massa de farinheira e ossos) até à sobremesa, a tradicional tigelada feita no forno comunitário da aldeia ainda em funcionamento, Joana passeia pelas mesas para dar uma explicação e saber se está tudo bom..No verão que passou receberam a visita de mais turistas, que aproveitaram os constrangimentos da pandemia para conhecer o país. Segundo dados enviados ao DN pelo Turismo do Centro, agosto foi o melhor mês para a região da Beira Baixa, que teve uma taxa de ocupação hoteleira de 68%, só ultrapassada nesta zona do país por Aveiro (73%). "A covid tornou evidente o potencial que este sítio tem: o facto de não termos algumas coisas faz de nós especiais. Não temos ruído, não temos vento", enumera Joana, que já se diz da Beira Baixa também..Na aldeia, o novo coronavírus teve pouco impacto, dizem. Continuam a viver da mesma maneira, apenas cumprindo maior distanciamento nos encontros, mas seguem partilhando os dias. A mudança está na forma de receber, se antes "de cada vez que chegava aqui alguém, eles faziam questão de conversar com as pessoas, de as receber, de lhes abrir a porta", agora, mal ouvem vozes que não identificam, recolhem-se dentro de casa. A idade não lhes permite sujeitarem-se a riscos e, por isso, quem visita, por estes dias, a aldeia da Figueira só conhece os rostos de quem ali vive pelo postigo da janela..Já o espírito continua intacto, garante Fernando. A solidariedade, a partilha, que marcaram a sua infância e adolescência não são passíveis de desaparecer, nem com um vírus que muda a vida do mundo inteiro. Da gaveta da memória em que guarda as recordações mais felizes, para exemplificar esta união, tira a da desfolhada, a altura da colheita do milho de dia e à noite de reunião entre vizinhos. Todos os dias em casa de um diferente, para desfolhar o milho. "Havia uma grande escassez de recursos, mas as pessoas partilhavam tudo. No forno, na eira, em todas as atividades a aldeia estava unida.".Citaçãocitacao"Havia uma grande escassez de recursos, mas as pessoas partilhavam tudo".É isto que o casal quer transmitir a quem vem de fora. "Não estamos a falar de um turismo de massas, mas eu acredito que existe possibilidade de trazer mais pessoas para a aldeia e até de fixar pessoas", admite Fernando, que espera voltar a ver crianças aqui em breve outra vez..A jornalista viajou a convite da Comunidade Intermunicipal Beira Baixa.