Há dez anos, Portimão ia ser a Cidade do Cinema, com um grande estúdio onde se rodariam grandes produções cinematográficas. Parecia um filme. Mas não era. Diz o Ministério Público que o projeto acabou por ser apenas um sorvedouro de dinheiro público, envolvendo crimes de burla qualificada, participação económica em negócio e branqueamento de capitais, com o ex-vice-presidente da Câmara algarvia, o médico Luís Carito, e o empresário Artur Curado a serem agora os principais arguidos do julgamento que se inicia este mês e em que o Estado reclama 4,6 milhões de euros desviados pelos arguidos. Pelo tribunal de Portimão vão passar como testemunhas figuras conhecidas do mundo do cinema e da política..Os atores Joaquim de Almeida e Pêpê Rapazote são duas dessas testemunhas que irão explicar como se envolveram na promoção do projeto do cinema. Almeida foi um dos impulsionadores da ideia em 2008. Outras testemunhas vão ser questionadas sobre a forma como o projeto lhes foi apresentado e como não deram, segundo o Ministério Público, crédito ao mesmo. São nomes como Basílio Horta, como ex-presidente da AICEP; Cecília Meireles, em 2012 secretária de Estado do Turismo; Manuel S. Fonseca, à época diretor da Valentim de Carvalho; Manuel Ramalho Eanes, filho do ex-presidente da República e gestor da Optimus (hoje Nos); e Jorge Monteiro, cônsul de Portugal em Sevilha. Todos foram contactados pelo projeto que prometia criar um cluster de cinema em Portimão. E apesar de não terem aderido à ideia, nos relatórios das empresas controladas pelo arguido Artur Curado constava sempre o seu interesse e disponibilidade para apoiar o empreendimento que a acusação formulada pelo Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) diz nunca ter tido pernas para andar e que apenas serviu para retirar dinheiro do erário público em favor dos principais arguidos..Além de Luís Carito e Artur Curado, vão também a julgamento Luís Marreiros e Carlos Barros, sócios de duas empresas acusadas controladas, na prática, por Curado, segundo o MP. Os quatro estão acusados de crimes de participação económica em negócio, burla qualificada e branqueamento de capitais. As empresas Green Trace, Simpliradar, Identik World, Cinepicture, Prodipicture e Spring Clock respondem por burla qualificada e branqueamento. Eram todas controladas direta ou indiretamente por Artur Curado, com ajuda de Carlos Barros e Luís Marreiros, e serviam, diz o MP, como veículos de circulação de dinheiro obtido na empresa Portimão Urbis, então presidida por Luís Carito, através de contratos por ajuste direto, sem fundamentação e sem trabalho real produzido. As verbas, acusa o MP, eram depois distribuídas por Carito e Curado, com recurso a contas bancárias de diversos familiares. São descritos dezenas de movimentos bancários entre empresas e arguidos, com vários casos de levantamentos de elevadas quantias em numerário..Sacou papel à PJ e engoliu-o.Este processo iniciou-se em 2011, após denúncia anónima, tendo em 2013 decorrido buscas e detenção de arguidos. Foi nessa altura que ocorreu um episódio caricato e que também irá ser julgado. Quando a PJ fazia a busca na casa de Luís Carito, um dos inspetores detetou um papel em que constavam referências a nomes e a quantias de dinheiro. Quando o entregava ao coordenador da operação, o médico Luís Carito arrancou-o da mão e fugiu para o pátio. Os polícias só tiveram tempo de tempo de o ver a engolir o papel "para impedir que esse documento fosse utilizado como prova". Por este ato, Carito é acusado de um crime de danificação ou subtração de documento..Também Artur Curado é acusado de um crime de usurpação de obra. Pediu a uma especialista em fiscalidade um estudo e depois apresentou-o como se fosse da autoria da sua empresa, omitindo o nome da autora, Clotilde Palma, que é demandante no processo..O caso centra-se no dinheiro que saiu de empresas municipais, a Portimão Turis, em 2009, e Portimão Urbis, entre 2010 e 2013. Luís Carito foi presidente da comissão executiva da Portimão Urbis de 2009 a 2012, com a acusação a dizer que o ex-autarca do PS decidia praticamente tudo, "afastando o executivo camarário do centro de decisão". A Cidade do Cinema, os apoios ao Portimonense e verbas gastas em formação profissional constituem as três áreas da acusação, com o Estado a reclamar uma indemnização superior a quatro milhões e 600 mil euros correspondente à verba que o MP considera ter sido desviada..A cidade ou cluster do cinema é o tema que concentra mais crimes e arguidos. Começou em 2008 como uma ideia apadrinhada pela Câmara de Portimão e a que "Luís Carito deu desmesurado destaque, disponibilizando verbas incompatíveis com a situação financeira da autarquia e da Portimão Urbis, visíveis num relatório da Inspeção Geral de Finanças que apontava para o enorme passivo do município e da empresa municipal. Artur Curado e as suas empresas conseguiu arrastar para o projeto a Associação Algarve Film Commission, organização que chegou a ser acusada tal como o seu dirigente Paulo Pereira, despronunciados depois na instrução do processo..Viagens a Cannes e a Hollywood.O objetivo seria tornar Portimão e o Algarve numa capital da produção cinematográfica, mas, apesar de dezenas de contratos estabelecidos entre a empresa municipal e as sociedades privadas arguidas, pouco ou nada avançou, a não ser o prejuízo para o Estado que, neste tema, atingiu quase os dois milhões de euros, incluindo despesas com viagens a Cannes, durante o festival de cinema, e aos Estados Unidos da América. Carito viabilizou tudo, "bem sabendo que aquele projeto, da forma como estava desenhado não era exequível, por falta das condições mínimas e económicas da autarquia bem como do imprescindível know-how na área cinematográfica", diz o MP..Os contratos, no total de 15, foram feitas "à revelia das normas e procedimentos vigentes", sempre por ajuste direto e "nalguns casos com duplicação do objeto contratual e com relevante despesa para o erário público mas sem quaisquer resultados desde logo verificados pelo incumprimentos da maioria dos contratos pelas empresa privadas, sem qualquer tipo de controlo e reação.".Em relação a Artur Curado, o MP diz que era "movido por um irrealismo megalómano, impróprio de profissionais competentes". Terá recorrido "a uma técnica de aliciamento e recrutamento de investidores baseada em realidades que sabia que não existiam em Portugal nem seriam passíveis de concretização", como são exemplos a ida aos Estados Unidos da América onde disse a Carlos de Mattos, técnico de cinema de origem portuguesa com dois Óscares no currículo (ET e Cotton Club) e que já foi condecorado pelo Presidente da República Portuguesa, que tinha um grande estúdio em construção e mesmo um tanque semelhante ao usado na produção dos filmes da séria Piratas das Caraíbas. "Sabia perfeitamente que não se encontrava em construção nem sequer projetada ou pensada", acusa o MP..Mattos será ouvido por videoconferência tal como Matt Cimber, um realizador de filmes de série B nas décadas de 1970 e 1980 que era o homem que iria realizar a primeira produção em Portimão. Outros cinco americanos, ligados ao cinema, serão também testemunhas..Este empresário conseguiu cerca de um milhão de euros em verbas públicas, servindo ainda, com as empresas de fachada, para que parte do dinheiro chegasse a Luís Carito. O MP aponta 31 coincidências entre movimentos bancários de Curado e transferências em contas de Luís Carito ou familiares. Em causa estão contas da mulher, do filho, dos pais e de uma tia..No tema da formação profissional, o MP acusa Luís Carito de ter promovido um contrato com a empresa Triângulo da Perfomance, que pertence a Isabel Puga, sua companheira. De novo um ajuste direto de mais de 180 mil euros em que os serviços prestados não foram executados na totalidade..No caso do Portimonense, as acusações centram-se nos gastos que o município teve com a expropriação e requalificação do estádio, com gastos a superar os cinco milhões de euros. Mas é nos contratos de publicidade no recinto celebrados pela Portimão Urbis com empresas privadas que o MP considera haver crime, já que a empresa municipal tinha transferido mais de 300 mil euros para o clube para assegurar esse mesmo fim..Empresário José Agostinho livrou-se do julgamento.A acusação foi proferida pelo DCIAP em janeiro de 2017. O processo foi para instrução no Tribunal Central de Instrução Criminal, em Lisboa, onde o juiz Ivo Rosa despronunciou cinco arguidos singulares e outros cinco coletivos. Um dos arguidos que se livrou de ir a julgamento por burla qualificada e participação económica em negócio foi o empresário José Simões Agostinho, tal como três empresas do seu grupo, a Celeuma, a Mr. Do It, e a Media 360. Este empresário de Viseu foi um dos detidos na recente operação da PJ do Porto que visou os contratos do Turismo do Porto e do Norte, em que Melchior Moreira ficou em prisão preventiva por suspeitas de corrupção. José Agostinho é arguido e foi libertado com uma caução de 75 mil euros. Está indiciado por corrupção ativa e de ter beneficiado com contratos feitos por ajuste direto com a entidade..Neste caso de Portimão, o juiz Ivo Rosa considerou que os contratos estabelecidos pelas três empresas não indiciavam a existência de crimes, como dizia o MP que falava mesmo em empresas de fachada com o dinheiro a entrar por uma, proveniente de contratos por ajuste direto com a Portimão Urbis, e a chegar ao Portimonense através de outra que explorava o espaço publicitário no estádio."O simples facto do arguido, através das suas empresas, ter celebrado os contratos com a Portimão Urbis não é suficiente para se concluir que praticou um crime de burla, sendo que dele resultasse a astúcia que levou ao erro ou engano", escreveu o juiz Ivo Rosa no despacho datado de junho de 2018. Considerou "ser muito provável a absolvição dos arguidos" e por não os pronunciou..O mesmo aconteceu ao ex-vereador da Câmara de Portimão e ex-vogal da Portimão Urbis, Jorge Inácio Campos, que esteve acusado de abuso de poder e administração danosa por ter assinado a maioria dos contratos com Luís Carito. "Na verdade não conseguimos identificar quais os atos e em que medida, em particular quais os contratos que o arguido assinou, originaram um dano importante para o município de Portimão e para a Portimão Urbis", concluiu o juiz, pelo que "infere-se a inexistência de dano importante". Campos e Carito livraram-se assim das acusações de administração danosa e abuso de poder, com o primeiro a deixar de ser arguido..Fora do julgamento ficaram ainda Maria Celeste Elias, mulher de Artur Curado, que era acusada de um crime de branqueamento, por ter sido depositado numa conta por si também titulada 18 mil euros. "Verifica-se não indiciado que a arguida tenha agido sabendo que as quantias depositadas na sua conta tinham proveniência ilícita", diz o despacho do TCIC. Outros dois acusados, e duas entidades que representavam, foram também despronunciados..O julgamento tem início no dia 22 de janeiro no tribunal de Portimão, com o município a ser assistente no processo.