Bombeiros e INEM negam agressões a jovens da Cova da Moura

Equipa de socorro já começou a ser ouvida em tribunal, como testemunha no caso que levou o Ministério Público a acusar 17 agentes da PSP de agressão e racismo contra seis jovens.
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Esta sexta-feira, foi ouvida em tribunal parte da equipa que prestou socorro aos seis jovens da Cova da Moura, Lisboa, que acusam 17 agentes da PSP de racismo, tortura e difamação. Vítor Hugo Silva, Valéria de Souza, Ana Sofia Moreira e Antonieta Pinto foram chamados, no dia 5 de fevereiro de 2015, para prestar auxílio na esquadra de Alfragide, garantindo não terem encontrado vestígios de agressões e desvalorizando a gravidade dos ferimentos.

"Já prestei assistência a outras vítimas de agressões e eles não pareciam ter sido agredidos". Quem o diz é Vítor Hugo, 42 anos, bombeiro desde 2001 e parte integrante do corpo de bombeiros da Amadora.

No dia em que foram chamados à esquadra de Alfragide, a testemunha terá apenas registado ferimentos superficiais em Rui Moniz, uma das alegadas vítimas e a pessoa que assistiu. "Tinha uns arranhões, nada demais", conta, não se recordando das limitações motoras do jovem, que sofreu um AVC quando tinha apenas sete anos e ficou com um braço paralisado e uma perna quase imobilizada.

Valéria, 37 anos, e Ana Sofia, 27 anos, que seguiam juntas na mesma viatura de bombeiros, confessam também não terem assistido a nada fora do normal nem registado marcas físicas graves ou até mesmo sangue. Antonieta, 35 anos, técnica do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM), não se recorda se chegou sequer a entrar na esquadra, mas garante não ter visto nada de anormal.

Queda ou agressão: o que dizem os registos?

Se os bombeiros socorristas falam em "queda acidental" como causa dos ferimentos dos jovens, o INEM, por outro lado, teve através da central-rádio informações de que iria encontrar no local uma tipologia de ocorrência diferente: "agressão".

Ao todo, o INEM entregou dois registos oficiais, fichas designadas de Integrated Clinical Ambulance Record (ICARE), onde ficou escrito que a pessoa transportada foi vítima de agressão, socos e pontapés, tendo-se queixado de dores em algumas zonas do corpo. Contudo, não há qualquer menção no ICARE de que as agressões tenham sido praticadas por parte de agentes da PSP. Tal obrigaria à abertura de um inquérito no momento. As tipologias de ocorrência são, por norma, apresentadas aos técnicos antes de partirem ao local de socorro. Neste caso, terão sido avançadas pelos próprios polícias, quando efetuada a chamada de emergência.

Vítor é bombeiro desde 2001 e, naquele dia, prestava funções como tripulante da ambulância que a sua colega de serviço, Andreia Casanova, guiava. Suspira antes de fazer um exercício de memória: "à nossa chegada, fomos encaminhados ao interior da esquadram e não vi nada de anormal". "Queda acidental", assim lhes teria sido referenciada a causa daquilo que iriam encontrar no local.

Terão imediatamente feito o seu caminho até aos jovens, "uns sentados", "um outro de pé". Não se recorda quem socorreu - embora o tribunal tenha acesso aos registos que indicam que foi Rui Moniz - e disse que a escolha de quem socorrer é aleatória. Questionado pelo coletivo de juízes se tinha recordação de alguma característica particular da vítima, Vítor apressa-se a dizer que não. Como tripulante, o bombeiro confirma que teria de escrever no verbete oficial caso denotasse alguma. Contudo, não há referências à tala que Rui utiliza no braço devido à sua doença. "São muitos serviços, talvez esteja confuso", argumenta.

Vítor também não tem memória de quaisquer hematomas ou outras lesões de maior gravidade no jovem que assistiu. "Se os tivesse, estaria escrito", garante. Registou apenas pequenos arranhões e diz não ter visto sangue na esquadra. E por isso não acredita que Rui tenha sido vítima de agressões. Afirma ainda que o jovem se negou a ser assistido pela equipa médica, pedindo para o levarem até ao hospital.

As respostas das quatro testemunhas continuavam, ainda assim, muito vagas para o procurador do Ministério Público, Manuel das Dores, questionando o que teria, então, levado a equipa de socorro a concluir que o melhor seria dirigir os jovens até à unidade hospitalar, uma vez que não apresentavam lesões graves.

Ana Sofia, que seguia com Valéria naquela que teria sido a primeira ambulância a chegar ao local, responde que, como condutora, não manteve tanto contacto com o paciente como a colega, mas acredita que este foi encaminhado para o hospital fruto de alguma queixa que o justificasse.

Vítor Hugo sublinhava ainda: "nós não somos médicos e se ele quer ser assistido por uma pessoa mais credenciada por nós, nós encaminhados", frisou. Rui seguiria, então, para o hospital Amadora Sintra.

Contradições e episódios por apurar

No depoimento que fez em tribunal, no início de outubro, Celso Lopes, uma das alegadas vítimas, recordava a chegada dos paramédicos à esquadra onde se encontrava detido, destacando uma profissional brasileira: Valéria de Souza. Esta sexta-feira, a paramédica descrita pelo jovem como alguém com "grande cumplicidade com os agentes", admitiu conhecer todos os 17 agentes acusados, devido à sua profissão.

A bombeira surge pela primeira vez no processo pela boca de Celso, que expõe um momento daquele dia com o qual Valéria seria confrontada pelo procurador do Ministério Público. De acordo com o antigo morador da Cova da Moura, a socorrista terá ficado "em estado de choque" quando os viu "feridos e sob tamanha pressão", "mas muito rapidamente foi chamada ao gabinete do chefe de esquadra" e, "quando sai, sai com uma postura completamente diferente". Mais serena e a quase a querer despachar o assunto, relatou.

Questionada sobre o tema, garante que não teve qualquer conversa em privado com algum agente ou chefe de esquadra. Contudo, a sua colega de serviço, Ana Sofia, viria a relatar um momento em que, tendo a equipa a obrigação de esperar por mais transportes de emergência médica - pois cada ambulância pode levar apenas uma pessoa -, esta fica na ambulância, já com a vítima, enquanto Valéria permanece na esquadra.

A bombeira brasileira viria ainda adicionar um relato nunca antes ouvido em tribunal, onde mencionou ter encontrado pedras e vidros no chão, à entrada da esquadra de Alfragide - conduzindo a audiência presente para a versão dos agentes policiais em que acusam os jovens de atirarem pedras à esquadra nesse dia.

Ana Sofia e Valéria teriam começado o seu turno juntas às oito da manhã, com fim previsto para as oito da noite. Sofia relatou ao tribunal que ambas foram chamadas para uma outra ocorrência pouco tempo antes - a Bruno Lopes, alegada vítima e o primeiro detido pela polícia -, exatamente no mesmo local. Versão que Valéria contrariou, contando que não teria estado naquela esquadra duas vezes naquele dia, mas sim numa outra, perto desta.

Em julho de 2017, os agentes da esquadra de Alfragide foram formalmente acusados pelo Ministério Público por denúncia caluniosa, injúria, ofensa à integridade física e falsidade de testemunho, contra os jovens da Amadora. Os 17 arguidos estão atualmente sujeitos a termos de identidade e residência.

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