Bolsonaro e as mulheres

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Por baixo da túnica de moderno e renovador, o herdeiro do trono saudita, o príncipe Mohammed bin Salman (MBS), não deixará ainda assim de gerir uma das ditaduras mais perigosas do mundo para jornalistas, gays e também mulheres, sujeitas, apesar das concessões recentes, a um penoso apartheid que as obriga, por exemplo, a ter um tutor masculino se pretenderem viajar ou estudar.

Talvez por isso, Jair Bolsonaro tenha dito sentir "muita afinidade" com MBS, com quem se encontrou na tarde de terça-feira.

Antes da reunião, entretanto, deixou dois recados às jornalistas brasileiras em Riade. O primeiro: "todo o mundo gostaria de passar a tarde com um príncipe, principalmente vocês, mulheres, né?". O segundo: "vocês estão muito mais bonitas assim", ao vê-las de corpo coberto por véus em respeito à sharia.

Classificado, à esquerda, como "um show de misoginia", o momento é pretexto para fazer um ponto de situação da relação, pública, de Bolsonaro com as mulheres.

Em 2003, ainda o atual presidente era um insignificante deputado de Brasília, com zero projetos de lei aprovados em 12 anos de parlamento (aprovaria dois nos 15 anos seguintes), fez-se notar por dizer a uma deputada, Maria do Rosário, do PT, que só não a estuprava porque ela era feia. Só em junho deste ano o episódio chegou ao fim quando, por decisão judicial, Bolsonaro pagou cerca de 2,5 mil euros à deputada e publicou desculpas nas redes sociais.

Em 2016, o hoje chefe de estado, então a militar no oitavo dos nove partidos a que aderiu, já era habitué em programas populares de entretenimento por causa da bizarria das suas opiniões. Num deles, a propósito de no Brasil as mulheres ganharem menos 25% do que os homens, admitiu que "não empregaria mulheres pelo mesmo salário de homens... mas tem muita mulher que é competente".

Ainda naquele ano, apresentando-se aos milhões que acompanhavam ao vivo a votação do impeachment, o então amigo íntimo de Fabrício Queiroz, assessor que ameaça hoje revelar esquema de desvio de dinheiro público milionário do clã Bolsonaro, dedicou o seu voto "a Brilhante Ustra, o terror de Dilma Rousseff". Ustra, um dos chefes do DOI-CODI, a PIDE brasileira, costumava, no seu vasto repertório de torturas, colocar ratos e baratas nas vaginas das mulheres.

Já em campanha eleitoral, o candidato a presidente de extrema direita, então em vias de assinar pelo PSL, partido entretanto envolvido numa troca fratricida de acusações de corrupção e outros podres, usou uma conferência no Clube Hebraica, no Rio de Janeiro, para começar por comparar negros a animais - "fui a um quilombo [refúgios de descendentes de africanos] e o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas, nem para procriar servem mais". E acabar - não resistiu - a ironizar as mulheres: "Eu tenho cinco filhos, os primeiros quatro são homens, na quinta eu dei uma fraquejada e veio uma mulher".

Uma vez eleito - com o voto de milhões de brasileiras provavelmente diagnosticáveis com o Complexo de Estocolmo - cometeu gafes em série, deu tiros no pé dia sim, dia não e ainda enfrentou crises internacionais como o das queimadas na Amazônia. Não atacaria, no entanto, o principal adversário na controvérsia, o presidente francês Emmanuel Macron, de homem para homem. Preferiu desferir golpes na primeira-dama francesa, Brigitte Macron, cuja idade e aparência ironizou.

Por causa da política medieval do "bandido bom é bandido morto" defendida pelo seu governo, ouviu, entretanto, críticas da alta comissária dos direitos humanos da ONU, a chilena Michelle Bachelet. Respondeu à senhora atacando a memória do seu pai, Alberto Bachelet, torturado e morto pelo regime de Augusto Pinochet, uma das referências políticas do presidente do Brasil. A ilustrar o ataque usou uma foto de Bachelet entre Dilma, uma mulher, e Cristina Kirchner, outra mulher.

Já aqui se escrevera sobre a obsessão de Bolsonaro pelo órgão sexual masculino https://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/joao-almeida-moreira/a-estranha-obsessao-de-bolsonaro-10985852.html. Agora escreve-se sobre a mania de ofender, diminuir e humilhar as mulheres.

É somar dois mais dois e deixar Freud explicar - mas não deve ser tão difícil assim.

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