Dois jovens atores sem nada em comum estreiam-se como protagonistas em dois filmes sem nada em comum que chegam às salas no mesmo dia. André Cabral é o fogoso instrutor de bombeiros em Fogo-Fátuo, fantasia musical de João Pedro Rodrigues, Bernardo Lobo Faria, é um jovem deprimido de Lisboa em Nunca Nada Aconteceu, de Gonçalo Galvão Teles. Tudo isto numa semana em que há mais dois filmes portugueses a chegar: 1618, de Luís Ismael e Nheengatu, de José Barahona..André, 32 anos e Bernardo, 26, não se conheciam mas aceitaram entusiasmados este desafio para uma conversa cruzada e juram a pés juntos que a partir de amanhã vão ver a estreia de cada um em cinema. André tem um registo mais minimal, é um corpo filmado com um erotismo queer explícito num papel que aborda uma certa iconografia do colonialismo português mal resolvido, não faltando um momento de comédia ao som de Amália e um tema chamado Mané Chiné, uma espécie de trad-folk fado de tendências racistas...Quanto a Bernardo, trata-se do típico papel da passagem de idade. O ator entrega-se a um papelão com uma garra e uma sofisticação de delicadeza brutais. Ambos estão mais do que lançados: André vai ser visto em 2023 no excelente Nação Valente, de Carlos Conceição, enquanto que Bernardo está em Posso Olhar por Ti , realizado pelo irmão Francisco. São talentos emergentes dos quais se sente uma vibração sensível..Estão curiosos com o filme um do outro....Bernardo Lobo Faria- Sim, estou com muita vontade de ver o Fogo-Fátuo e todas essas controvérsias ainda deixam as pessoas com mais curiosidade. Os temas desse filme também me dizem respeito..Não acham incrível que em 2022 um filme com uma temática queer ainda possa causar polémica de preconceito?.André Cabral- Em Portugal a classificação é Maiores de 16, enquanto que em França não há limite. Isso dá que pensar....BLF- Mas eu ponho em causa se a razão da controvérsia é a homofobia. Pelo que percebi, tem a ver com orgulho ferido. Estou curioso por brincar com essa questão da monarquia. Aliás, não tenho sentido homofobia..AC- Deve-se dar uma hipótese ao filme! As pessoas que primeiro vejam o filme antes de discutir. Fogo-Fátuo tem temáticas que valem a pena ser refletidas e agora, com a morte da rainha de Inglaterra, até parece que foi de propósito. Foi um timing perfeito. Isso de ofender supostamente os bombeiros apetece-me dizer que a quem servir a carapuça pode sempre enfiá-la! O João Pedro Rodrigues quis fazer uma fantasia musical. Isto é uma fantasia!.BLF- Mas lá está: não sinto que esta onda de comentários polémicos seja homofobia. Aliás, não sinto homofobia e sempre vivi em Portugal. Sou homossexual e claro que sei que estou num meio artístico..AC- Eu igual...Comecei nas danças urbanas e hip-hop num meio bastante heteronormativo e assumi-me gay muito jovem. Também não tive problemas nenhuns, vivo igualmente numa bolha. Acho que a nova geração já não tem essa coisa, a não ser se sairmos das grandes urbes..BFL- Antes tinha de haver uma outra coragem para te assumires. No meu caso, assumi-me na Madeira, onde nasci, e numa situação muito standard no liceu. O meu caso de coming out pode servir de exemplo. Quis normalizar essa questão sem levantar grandes ondas. Basta haver confiança e perceberes que não estás virado ao contrário e ninguém vai colocar-te em causa. Esse sempre foi o meu foco. Se alguém vier a ser homofóbico comigo vou ter coragem para lhes mostrar que estão a pensar com os pés e não com a cabeça...Muitos estão de acordo em condenar o mercado por deixar estrear quatro filmes portugueses ao mesmo tempo esta semana, mas não acham que isto até pode ter um lado positivo? Ser um pouco um movimento?.BLF- Podemos olhar para isto como um festival. Se calhar até desperta mais a curiosidade das pessoas! Esta avalancha pode levar a que quem não estivesse a pensar ver nenhum agora queira ver todos....AC- Pode ser uma boa onda!.Como espetadores, gostam de cinema português?.AC- Não sou muito assíduo...Confesso, vejo mais cinema americano..BLF- Não tenho também uma opinião bonita do cinema português. Os filmes são belos, têm uma imagem que capta mas não são feitos para chegar ao público. Isso incomoda-me. Muitas vezes, vejo cinema português e sinto que os filmes estão a chegar a mim e aos artistas mas não chegam às massas..AC- Concordo..DestaquedestaqueAndré, 32 anos e Bernardo, 26, não se conheciam mas aceitaram entusiasmados este desafio para uma conversa cruzada e juram a pés juntos que a partir de amanhã vão ver a estreia de cada um em cinema..Quer Fogo-Fátuo quer Nunca Nada Aconteceu são exemplos de uma imensa diversidade....AC- Sim, é verdade. Sei pouco do Nunca Nada Aconteceu mas estou curioso..BLF- São dois filmes que fogem um pouco à regra que referia. São exceções, o Nunca Nada Aconteceu é um filme duro mas consegue agarrar e é feito para puxar o interesse ao público que não gosta de cinema português..André, como vai convencer os jovens para aderirem a Fogo-Fátuo?.AC- Um filme chamado Fogo-Fátuo já diz muito...Garanto que ao longo dos 67 minutos de duração as pessoas vão estar sempre a rir. Além do mais, é um filme incrivelmente sexy!.E como o Bernardo convence os jovens para o seu Nunca nada Aconteceu?.BLF- É um filme onde acontece muita coisa. Coisas que o mundo não dá por elas...É ainda um filme que nos dá vontade de ficar inspirados e pensativos. Nunca nada Aconteceu faz-nos questionar para onde estamos a ir. E tem imagens muito belas, todos os frames deixam-me babado! Para além do mais, trata-se de uma história que me faz fazer as coisas de maneira diferente..Façam uma pergunta final um ao outro por favor..BLF- O que vais levar da memória do teu filme?.AC- Ainda sinto que estou a viver esta experiência. Estive em Cannes...sinto que tudo está a acontecer rápido, estou assoberbado com tudo isto! Acima de tudo estou feliz e levo na memória a cena final. Foi uma rodagem tão feliz, deixei-me levar! Agora roubo-te a pergunta e acrescento: alguma cena particularmente difícil para ti?.BLF- Roubo-te um pouco da tua resposta. Tive muita confiança, se me escolheram foi sinal que poderia fazer o que eu faria naquela situação. Fui para o plateau sem medo, embora as cenas mais complicadas talvez tenham sido aquelas com nudez e intimidade. Ainda assim, a cena mais desafiante foi com a Beatriz Batarda, pois jogava-se com improvisação..Depois de muitos adiamentos, estreia-se finalmente Nunca Nada Aconteceu, a estreia a solo de Gonçalo Galvão Teles nas longas. Um filme cuja câmara faz um pacto secreto de movimento. Uma Lisboa escura, claustrofóbica, urbano-depressiva. Num prédio que parece de subúrbio há uma família a desfazer-se: um casal em crise, um adolescente a entrar num pacto com os amigos íntimos e um avô a voltar da terra depois de sentir um fim de uma era. Tudo isto é triste, mas não é fado. Gonçalo Galvão Teles em Nunca Nada Aconteceu apodera-se da música de Noiserv e da luz do diretor de fotografia João Ribeiro e faz uma crónica dos dias tristes de uma certa forma de ser português..Filme de pequenos silêncios, da doença da cidade, Nunca Nada Aconteceu é também um olhar sobre um fosso entre gerações. Fala de pais, filhos e avós e tem uma raiva silenciosa, subtilmente captada por diálogos precisos do argumento que Tiago R. Santos escreveu a partir de uma ideia de Luís Filipe Rocha. É tudo menos um "caso da vida", tem uma outra inquietação, uma angústia tão portuguesa..Tem falhas de ritmo? Claro que tem, na montagem algo se terá perdido, mas é sobretudo uma peça de câmara para atores em estado superlativo, em especial Filipe Duarte no seu último papel para o cinema, mas também Rui Morisson, aqui em pose Clint Eastwood triste. Depois, claro, o trio dos adolescentes problemáticos: Alba Baptista, Bernardo Lobo Faria e Miguel Amorim, todos eles perto de uma resolução interior tão exuberante como pudica. Algo que fica bem a um filme sonhado dentro de um pesadelo. Um filme primo da curta-metragem de 2007 do mesmo cineasta, Antes de Amanhã, outra sonata de infelicidade..por Rui Pedro Tendinha. Da Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes para as salas: Fogo-Fátuo, de João Pedro Rodrigues, é o divertimento de que precisamos para renovar a ideia de cinema português..Há qualquer coisa de profundamente refrescante num filme que, para além de se apresentar no genérico como uma fantasia musical, anula a fronteira entre a inocência mais límpida e o erotismo mais ostensivo. Assim descobrimos o jovem protagonista de Fogo-Fátuo, Alfredo (Mauro Costa), um cândido descendente da monarquia que anuncia aos pais a sua vontade de se tornar bombeiro - para desagrado dos progenitores, não com o intuito de assumir a máxima posição hierárquica (o cargo de comandante), mas sim voluntariar-se, nas suas palavras, como "soldado da paz". Alguém prestes a perder-se nas republicanices deste mundo, à boleia de Greta Thunberg, quadros vivos de alta voltagem sexual, fado e uma mata queimada. Algures, também se ouve falar da covid-19... Seja como for, João Pedro Rodrigues não se prendeu ao discurso puro e simples da contemporaneidade; antes baralhou o esquema de um imaginário nacional. No jogo de encenação deste fabuloso filme cabe ainda o design da ficção científica e a representação do desejo como prolongamento do natural. Não é por acaso que no seu culminante ato erótico na mata, nesse apelo sexual da natureza literalmente morta, Fogo-Fátuo nos recorda a relação deste cinema com uma ideia de fantasia florestal, aquela que já se reclamava em Morrer Como um Homem (2009), desde a cena de abertura até à caça aos gambozinos, ou a que se traduz em todo O Ornitólogo (2016). Assumindo um delicado tom cómico, Fogo-Fátuo traz à paisagem do cinema português uma verdadeira lufada de ar fresco, com a combustão interna perfeita..por Inês N. Lourenço