Até ver, é possível que seja o mais belo filme português a chegar este ano às salas. Um trabalho delicado que parte do "ofício da saudade" mas não cai no saudosismo. Um baú aberto com recordações da vida no mar e em terra que remete para a infância em qualquer tempo, ou, em particular, para os tempos da colonização (ouve-se falar, a certa altura, de Cabo Verde, Angola, Moçambique). Os elementos da natureza cruzam-se aqui com objetos, as palavras em off impregnam planos estudados ao milímetro dentro de uma segura consciência formal, e o cinema, esse cresce como erva daninha por entre toda esta amálgama que é, no fundo, a narração de um ADN. Bem-vindos a A Metamorfose dos Pássaros, primeira longa-metragem de Catarina Vasconcelos..O filme que começou em Berlim o seu percurso venturoso nos festivais internacionais, centra-se num íntimo diálogo geracional. A realizadora, que nunca conheceu a sua avó Beatriz, recua a essa forte referência na família para deambular por um passado também ele não vivido, quando o avô, oficial da marinha, amava a mulher e os filhos à distância de um oceano. Tempos de ditadura captados por uma linguagem afetiva que procura não assustar os pássaros, enquanto trabalha as texturas e a natureza morta em imagens que sugerem um olho artístico ao estilo de Agnès Varda - a cineasta, por excelência, da criatividade com biografia dentro..Catarina Vasconcelos, cuja mãe morreu quando ela tinha 17 anos, partilha com o pai, filho de Beatriz, um sentimento de perda que puxa todo um imaginário epistolar, despedindo-se com "beijinhos ao papá", que ecoam "beijinhos à mamã". E no risco desta intimidade - porque o cinema que assenta no domínio pessoal assume sempre um risco no modo de se comunicar ao espetador - está a concretização de um olhar afinadíssimo, que deslumbra sem deixar de se manter recatado no universo de detalhes da realizadora..CitaçãocitacaoDa literatura ao cinema, a figura materna é uma narrativa feita de muitas narrativas..Há filmes que nos fazem querer escrever na primeira pessoa do singular, mesmo que a história não seja um reflexo da nossa. A Metamorfose dos Pássaros é um desses filmes. Um lugar que define, com precisão plástica e poética, uma sensação de passado no sentido mais abstrato da palavra. Como se as metáforas e, enfim, toda a beleza do texto que acompanha aqui o jogo das imagens, tivessem elasticidade suficiente para nos incluir. Não é um filme fechado sobre si mesmo, sobre a memorabilia e a lógica interna de uma família, mas um filme que dialoga com a nossa melancolia natural e reage suavemente a ela. Um pouco como aquela frase que Bach escreveu no seu diário quando, de regresso a casa depois de uma viagem, foi informado de que a mulher e dois dos filhos morreram na sua ausência: "Deus meu, faz com que eu não perca a alegria que há em mim." E dedicou-se à escrita de partitas para violino solo..Da literatura ao cinema, a figura materna é uma narrativa feita de muitas narrativas. Georges Simenon escreveu um pequeno livro, Carta Para Minha Mãe, Roland Barthes fez um Diário de Luto a partir do desaparecimento da sua, Chantal Akerman filmou a mãe em No Home Movie, e Catarina Vasconcelos construiu um puzzle de memórias, com a "alegria" da inspiração, para falar de todas as mães através da sua. Começando pela mãe da sua mãe..dnot@dn.pt