Quando a arte em cinema ganha valor subversivo o que pode acontecer? No caso de Barbie, Greta Gerwig cria um paradoxo: está do lado certo do discurso, mas não deixa de sofrer com os contratempos da mistura. A saber, musical e comédia estilizada, leveza e profundidade. Ao fazer um conto sobre o lugar de uma boneca no mundo de hoje, onde toda a cultura do novo feminismo e do "woke" se tornam bandeira de posição política, está também a ser ativista dentro do sistema. A realizadora tem essa consciência de estar numa situação privilegiada: poder fazer um blockbuster da Warner com o financiamento da Mattel (a detentora dos direitos do mundo Barbie) e subverter as lógicas do capitalismo e lucro sem que se perca a hipótese da entrega do que é previsivelmente espetacular..Em boa verdade, a lógica de um filme com todo este "hype" passa por querer experimentar esse desejo de semente de ativismo cívico de igualdade de género. O tal conceito de ativismo pela socapa dentro do aparelho dos grandes estúdios de Hollywood. Mérito, claro, sobretudo pela ousadia de diálogos que gozam com os predicados do vírus das sociedades de consumo patriarcais e com os equívocos que a mensagem que esta boneca passa, mas também impasse pela maneira como o argumento excede-se em recados e recadinhos desse traumático "politicamente correto". De certa maneira, é também um filme cujo excesso de conceito mata piadas e situações, coisas que no papel e no gesto de boa intenção ficavam bem melhor. A tal autoconsciência algo vaidosa que é contraproducente..E esta Barbie, a boneca que tem vida, vive em Barbieland ao lado de várias outras Barbies e Kens. A sua vida parece sofrer uma crise existencial quando começa a sofrer sintomas de celulite e uma inesperada crise existencial. Chega o momento de procurar soluções no mundo real, uma viagem com o seu Ken, também um homem à procura de uma certa afirmação. Chegados a Los Angeles, Ken e Barbie encontram uma verdade mais chocante que o rosa-choque de Barbieland: o mundo é dominado pelo machismo. Não tarda muito que o CEO da Mattel a queira colocar numa caixa....Com o tal humor inteligente, mas que é quase sempre repetitivo, Barbie não surpreende tanto como as amostras da espantosa campanha de marketing da Warner. Vale sobretudo como gesto de se assumir como um objeto único no atual sistema americano: um divertimento milionário a colocar questões de género e a satirizar noções instituídas, quase em jeito de camuflada sabotagem do seu ideal. Seja feminismo para as massas ou diversão com neurónios, Barbie sofre com alguns problemas de ritmo, mesmo com um sentido estético que faz do artifício um festim para os olhos. Olhos esses que ficam paralisados pelo talento subtil de Margot Robbie, a maior estrela de Hollywood a fazer do "slapstick" um arrojo de elegância, e a perturbante petulância do histrionismo de Ryan Gosling, ator que merecerá recompensas na temporada dos prémios. É mesmo na sua extravagância plástica que Barbie marca mais pontos..dnot@dn.pt