Banhada com banho de ouro

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Cada autor tem uma cena predilecta: uma disposição específica de elementos (cénicos, verbais) com uma função catadrióptica, que simultaneamente reflecte e refracta o modo como vê o mundo. A predilecção pode ser inconsciente, mas tende a repetir-se de obra para obra como uma marca de água, independentemente da posição que o artista ocupa no espectro entre o genial e o medíocre. Cada história de Kafka inclui um homem sentado numa cadeira à porta de uma sala, à espera de ser chamado, tal como cada peça de Edward Albee inclui uma pessoa a encher um copo com álcool de costas para outra pessoa que está a gritar com ele, ou cada livro de Stephen King inclui um ataque de riso inesperado que funda uma amizade instantânea entre duas pessoas que acabaram de se conhecer, ou cada filme de Christopher Nolan inclui uma cena em que um sociopata com dicção invulgar informa um qualquer deuteragonista que tem três minutos para resolver um cubo de Rubik ou a sua tia preferida vai ter o crânio esmigalhado por um piano gigante.

Julian Kitchener-Fellowes - barão de West Stafford, membro da Câmara dos Edgelords no parlamento britânico, e criador de Downton Abbey e outra meia dúzia de séries que também são todas Downton Abbey excepto no nome - tem uma cena predilecta. A cena é tão, mas tão predilecta que qualquer observador atento da sua obra já a terá visto umas quinze vezes. É uma cena em que alguém (pertencente a uma aristocracia ameaçada) olha pela janela (do palácio, da mansão) e vê os sinais inequívocos da chegada de uma nova Ordem (bagagens volumosas de arrivistas a serem transportadas para o antigo palacete de Sir Cecil Rimjob-Wolfingbottom), enquanto arqueia uma sobrancelha e suspira uma qualquer versão do mesmo comentário ("os tempos estão a mudar", "as coisas já não são o que eram", "isto é que vai aqui uma açorda" etc). A cena já está tão integrada no código de programação do barão de West Stafford que mesmo quando as necessidades estruturais do guião o obrigam, certamente contrariado, a colocar as suas personagens noutros sítios (o quarto, a cozinha, o meio da rua) elas continuam a falar como se estivessem à janela a comentar a inexorável passagem do tempo.

A nova Downton Abbey chama-se The Gilded Age. O primeiro episódio estreou esta semana e a cena da janela - no que talvez seja um novo recorde - ocorre logo ao segundo minuto. A precocidade não é um falso indicador: o resto do universo Fellowes permanece invejavelmente estável, um universo auto-contido dedicado a tentar convencer os espectadores - após séculos de provas em contrário - que a principal característica da aristocracia inglesa não é serem extraordinariamente absurdos, mas serem extraordinariamente interessantes.

O facto de The Gilded Age não ser, tecnicamente, sobre a aristocracia inglesa, mas sim sobre a aristocracia nova-iorquina nas últimas décadas do séc. XIX é quase irrelevante. A diferença mais substancial para as Downton Abbeys anteriores é que os actores são um pouco piores, têm melhor dentição, e não fazem a mínima ideia do que fazer aos sotaques.

O tempo, esse, continua a mudar. Os velhos bairros estão a ser invadidos por magnatas das ferrovias e as famílias que ocupam os mesmos códigos postais desde o século anterior sentem a sua hegemonia em perigo. O que passa por enredo é um vasto dispositivo concebido para explorar o mais antigo dos mistérios: o que é que acontece quando o dinheiro muito antigo é convidado para jantar pelo dinheiro relativamente recente. Será que o dinheiro muito antigo vai aceitar? Ou o dinheiro relativamente recente vai ficar pendurado, com meia tonelada de ostras a apodrecer à sua volta?

O elenco é uma colecção de Tipos, como no teatro vicentino. A função destes tipos, no entanto, não é tanto sintetizar as características positivas ou negativas da classe a que pertencem ou da profissão que exercem (salvo seja), mas apenas remeter para tipos iguais, anteriormente indexados na obra de Fellowes. Temos, portanto, a Jovem-Inexperiente-Acabada-de-Chegar-da-Província-e-Que-Nunca-Tinha-Visitado-a-Cidade-Grande (facilmente identificável pela forma como explica a várias pessoas que chegou agora da província e nunca tinha visitado a cidade grande). Temos a Jovem-Étnica-Mais-Perspicaz-Que-As-Pessoas-Preconceituosas-Que-A-Rodeiam-e-Que-Reage-Às-Trivialidades-Delas-Com-Um-Sorriso-Mordaz (facilmente identificável pela forma como reage às trivialidades das pessoas preconceituosas que a rodeiam com um sorriso mordaz). E temos também um dos mais populares tipos de Fellows, o Mordomo-Com-Algo-A-Esconder (facilmente identificado pela forma como, a propósito de nada, diz em voz alta a frase "eu não tenho nada a esconder").

25% do diálogo consiste em personagens a explicar umas às outras o subtexto do guião ("nesta casa só recebemos as pessoas antigas, nunca as novas", ou "Porque é que eu tenho de ser a inimiga delas?" "Essa é fácil: porque você é o futuro. E se você é o futuro, elas têm de ser o passado"). O resto sugere alguma energia em declínio, ou pelo menos um conjunto de fórmulas em piloto automático. Fellowes tinha um talento (menor, mas genuíno) para o diálogo epigramático superficial - o tipo de diálogo em que uma personagem está sempre pronta a preparar a deixa certa que permita a um qualquer Olof Palme erguer uma sobrancelha irónica e responder "curioso, nós queremos é acabar com os pobres". Em The Gilded Age, as versões disto são penosamente homeopáticas. A dada altura, o magnata da ferrovia (interpretado por Morgan Spector, que é ele próprio uma versão homeopática de Oscar Isaac) interage com outro magnata que o apelida de "canalha". A sua resposta ("Talvez seja. Mas você é um tolo. E entre ser tolo ou canalha, eu sei qual prefiro ser") parece o esforço de uma pessoa com Alzheimer para reproduzir o que leu uma vez, há muito tempo, num compêndio de citações de Churchill.

A única cena típica que faltou no primeiro episódio foi a tensa e meticulosa reorganização de talheres, mas é 100% garantido que, algures num episódio posterior, vai haver uma sequência em que uma qualquer infracção à disposição correcta de copos de cristal ou colheres de sobremesa será merecedora de uns bons três minutos de diálogo. (Se isto não se concretizar, os leitores deste texto devem contactar a direcção do DN e pedir uma indemnização).

Convites para jantar e logística de faqueiros. A irrelevância do que está em jogo é parte integrante do apelo da fórmula. As pequenas coreografias de protocolos são rituais, e qualquer ritual é uma metáfora. Neste caso, o que está a ser dramatizado é a imunidade das personagens a quaisquer consequências importantes. Quem vem ou não sentar-se à mesa notar a quantos centímetros está o garfo do guardanapo: o único sítio onde estes são os maiores problemas é uma pastoral, magicamente blindada de todas as fricções da vida por uma armadura invisível - uma armadura capaz de despromover a realidade a uma condição permanentemente subalterna.

É fútil ansiar pela reorientação de um autor tão inteiramente constituído por maneirismos, mas cada nova série de Fellowes deixa uma vontade secreta de o ver a depurar o seu processo: um desejo que deixasse de se limitar a transferir a sua Downton Abbey de um código postal para outro (ou de um continente para outro), e seguisse um afunilamento minimalista que lhe permitisse chegar à versão sublimada da sua série televisiva ideal. Imagine-se um cenário depauperado, como num palco de Beckett, com uma única aristocrata a olhar fixamente por uma janela suspensa do vazio, imóvel, durante quinze horas consecutivas, protegida de qualquer factor de mudança por todas as forças elementares da inércia: dinheiro, estatuto, poder, e má televisão.

Escreve de acordo com a antiga ortografia

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