Há dias, a embaixada da Rússia no Reino Unido chamou a atenção para uma reportagem da BBC - cujo site de notícias está bloqueado por Moscovo -, datada de 2018, sobre a Milícia Nacional. A mensagem no Twitter alertava para esta organização paramilitar de extrema-direita e a "crescente visibilidade" destes grupos, "incluindo o batalhão Azov". Um dos objetivos declarados pelo líder russo Vladimir Putin para a "operação militar especial" é a "desnazificação" da Ucrânia, meta mais tarde reafirmada pelo Kremlin quando começaram as negociações entre Kiev e Moscovo..Twittertwitter1506974286174732300.Em entrevista ao DN, a embaixadora ucraniana em Portugal, Inna Ohnivets, recusou terminantemente a existência de nazis ou fascistas no seu país e afirmou que foram os "propagandistas russos" quem inventou tal para "lançar esta guerra bárbara"..A afirmação da diplomata, porém, é contrariada por reportagens antigas de diversos meios onde membros do batalhão Azov reconhecem a adesão a ideologias nacionalistas e extremistas. Em 2015, ao USA Today, o porta-voz do regimento Andriy Diachenko calculava que o número de nazis se situava entre os 10% e os 20%. No entanto destrinçava a ideologia de cada membro em relação ao grupo. "Não tem qualquer relação com a ideologia oficial do Azov", disse então..Se é difícil de compreender como é que pode haver uma unidade militar com simpatias nazis num país presidido por um judeu com antepassados mortos pelas tropas do III Reich, mais fica ao saber-se que o principal patrocinador do Azov (e de Zelensky, já agora) é um oligarca judeu, Ihor Kolomoysky..A história da Ucrânia não é linear: Stepan Bandera, o ideólogo de extrema-direita que proclamou uma Ucrânia independente mas colaboracionista com o regime de Adolf Hitler (embora a ousadia lhe tenha custado a prisão num campo de concentração) é visto como um herói nacional por uma parte da população. Mais tarde o braço armado da sua organização, UPA, começou uma guerra de guerrilha contra os alemães e contra os soviéticos, e pelo meio exterminou polacos. Prova de que este antissemita assassinado pelo KGB é uma figura controversa no país, recebeu em 2006 o título póstumo de "herói da Ucrânia", para cinco anos depois o mesmo ser retirado..Há um ano, o secretário de Estado norte-americano Antony Blinken anunciou que Ihor Kolomoysky e a sua família ficaram impedidos de viajar para os Estados Unidos porque o bilionário esteve envolvido em "corrupção considerável" quando exerceu o cargo de governador de Dnipropetrovsk, entre 2014 e 2015. Foi nesse período que, em resposta à anexação da Crimeia e aos movimentos separatistas pró-russos no leste e no sul, o oligarca foi o principal financiador do batalhão Azov, chegando a dar recompensas equivalentes a dez mil dólares pela captura de alguns separatistas. Diga-se ainda que este homem, que fez fortuna com a tomada de empresas pela força e pela corrupção, está a ser investigado pelo FBI pelo desvio de milhares de milhões do banco ucraniano PrivatBank e consequente lavagem de dinheiro nos EUA..Considerado o primeiro oligarca e senhor da guerra em simultâneo, Kolomoysky limitou-se a aproveitar os recursos humanos existentes. O batalhão Azov nasceu em maio de 2014 das fileiras de grupos de extrema-direita e fascistas como a Assembleia Nacional Ucraniana, o Setor da Direita e os Patriotas da Ucrânia depois da experiência da luta nas ruas em que se transformou a revolta popular, meses antes, contra o presidente Yanukovich. O grupo de voluntários, reunidos sob uma bandeira inspirada em simbologia nazi, acudiu a Berdyansk vindo maioritariamente do leste do país e teve um papel determinante em retomar Mariupol, que no mês anterior caíra nas mãos de um grupo separatista pró-russo, como acontecera em Lugansk e Donetsk.."Estes são os nossos melhores guerreiros", disse em novembro de 2014 o presidente Petro Poroshenko, quando o batalhão foi integrado na guarda nacional. Até então os seus membros eram liderados por Andriy Biletsky, licenciado em História, com ligações aos hooligans do Metalist de Carcóvia (Karkhiv), e que tem no currículo dizer que o propósito da Ucrânia é "liderar as raças brancas do mundo para uma cruzada final contra as raças inferiores lideradas pelos semitas" (embora a tenha negado anos depois). Ainda em 2014, Biletsky foi eleito deputado como independente. Dois anos depois saiu do batalhão de Azov e transformou os Patriotas da Ucrânia no partido Corpo Nacional. A mudança foi recebida com indiferença nas urnas: com 2,15%, ficou bastante abaixo da barreira de 5% para eleger qualquer representante. Os eleitores ucranianos esvaziaram a narrativa do perigo do neonazismo nos órgãos de soberania, como Moscovo apontava..O que se passou, explica Andreas Umland, do Centro de Estudos da Europa de Leste, em Estocolmo, é que a guerra levou ao surgimento e à transformação de grupos marginais de extrema-direita num movimento político. "Por norma vemos o extremismo da direita como algo perigoso que pode levar à guerra", disse à Deutsche Welle..O batalhão Azov deu nas vistas pelo violento processo de recruta - envolvendo lutas corpo a corpo - e foi sobretudo visado internacionalmente pelos seus métodos no campo de batalha. Em 2015, tanto o Canadá como os Estados Unidos anunciaram que as suas forças não iriam apoiar ou treinar o batalhão Azov. Um relatório de 2016 do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA, na sigla em inglês) acusou o Azov de violar o direito humanitário internacional, em particular ao destacar as suas forças para edifícios civis, retirando os seus residentes, bem como violar e torturar detidos na região de Donbass..Em 2019, 40 congressistas norte-americanos apelaram para que o Departamento de Estado designasse Azov como uma "organização terrorista estrangeira", sem sucesso. Já a Milícia Nacional, criada em 2018 como um braço armado do Corpo Nacional, andou a patrulhar Kiev recorrendo a táticas criminosas, não tendo sido bem recebido pelos cidadãos nem pelo governo..Rita Katz, analista de terrorismo, mostra-se preocupada com o recrutamento de militantes estrangeiros a convite do batalhão Azov. "O seu objetivo não é defender a Ucrânia como a conhecemos, uma sociedade multiétnica de espírito democrático dirigida por um presidente judeu. Alguns neonazis simplesmente encaram esta nova guerra como um lugar para realizarem as suas fantasias violentas. Para outros, porém, a força que os move para o conflito é uma visão partilhada para um etno-estado ultranacionalista. Eles veem a Ucrânia como uma oportunidade de ouro para perseguir este objetivo e transformá-la num modelo para exportar para todo o mundo", escreveu a diretora do SITE Intelligence Group no Washington Post..O argumento por parte de um estado autocrático de que vai fazer uma "operação militar especial" a um vizinho que é uma "democracia eleitoral" - designação do Instituto V-Dem onde Portugal está incluído, abaixo da "democracia liberal" - para "desnazificá-lo" já era obtuso per se. Mas fica ainda mais insustentável quando se olha para a Rússia pós-soviética e se vê a ascensão de movimentos ultranacionalistas e neonazis, como a Liga Eslava (SS) ou a sucessora NSO, cujos membros foram condenados a prisão perpétua por assassínios..Outros bandos foram criados, como o Ryno ou o DPNI, num ódio cada vez mais orientado para os não eslavos. Em 2008 foram contabilizados 116 homicídios atribuídos a extremistas de direita. Prova da tolerância do regime, a banda neonazi Kolovrat tocou perto do Kremlin em 2009, mas a partir dessa época a justiça russa começou a investigar e a punir alguns dos grupos. Os extremistas voltaram a ser notícia com a guerra no Donbass, mas também na Líbia e na Síria, para onde os paramilitares da Legião Imperial, braço armado do Movimento Imperial Russo, foram como voluntários ou mercenários. Este movimento ultranacionalista foi designado terrorista pelos EUA e pelo Canadá.. cesar.avo@dn.pt