"Máquina de propaganda chinesa tornou esta crise numa oportunidade"

Entrevista a Luís Tomé, Diretor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa. Participa esta quinta-feira às 18.00 no webinar Espaço Euroasiático em tempos de Covid-19 com Licínia Simão (Feuc) e Vasco Rato (IDN). A moderação é de Cátia Miriam Costa, do CEI-ISCTE. O evento faz parte de um ciclo organizado pelo ISCTE e IDN com o apoio do DN. Aberto ao público (inscrições <a href="http://cei@iscte-iul.pt" target="_blank">aqui</a>).
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A China mostrou o seu pior e o seu melhor nesta pandemia? Ou seja, errou quando tentou controlar a informação sobre vírus e acertou quando pôs a máquina do Estado a combater a doença?
Sim, o regime chinês mostrou as suas habituais facetas. Desde logo, a repressão e a vigilância exacerbada sobre a população chinesa, o estrito controlo da informação e a falta de transparência sobre o novo coronavírus, a sua propagação e os dados reais de infetados e mortos na República Popular da China. Por outro lado, a eficácia na imposição das medidas restritivas e confinamento anti-Covid-19 e em reerguer a China como "fábrica do mundo" (rapidamente retomando a produção em larga escala de materiais de proteção sanitária e ventiladores fornecidos para todas as regiões do mundo), mas também a eficácia da sua máquina de propaganda e a habilidade em converter esta situação de crise global que começou na China numa nova oportunidade para a afirmação internacional da China.


Há hipótese de a China sair mais forte em termos de imagem no contexto mundial, tendo em conta as debilidades mostradas por várias potências europeias e pelos Estados Unidos?
Ainda é cedo para tirarmos conclusões definitivas sobre ganhadores e perdedores desta crise. Mas parece claro que, depois de uma fase inicial em que o Covid-19 prejudicou severamente a imagem internacional da China e colocou em causa o próprio regime chinês, a expansão da pandemia, com números de infetados e mortos particularmente elevados na Europa e nos EUA, expondo a negligência e impreparação de muitos governos e líderes políticos, parece ter favorecido Pequim. Paralelamente, a falta de solidariedade entre países europeus e entre estes e norte-americanos, e a completa ausência de liderança global dos EUA, foi habilmente aproveitada por Pequim para tentar posicionar a China como referência e líder na resposta à pandemia. No entanto, penso que para alguns países e líderes políticos, esta crise também tende a mudar um pouco a perspetiva acerca da China, de "gigante benigno" de cujo crescimento todos podem beneficiar para os diversos desafios que a ressurgente e omnipresente China igualmente representa. Dito de outro modo, esta crise pode contribuir para afirmar a China enquanto superpotência, mas também trazer-lhe os custos inerentes a essa condição.

A questão de Taiwan e a OMS é simples arma de arremesso entre Estados Unidos e China ou há consciência na comunidade internacional de que a ilha tem de ter algum tipo de participação na organização, até pelo excelente desempenho no combate ao vírus?
A questão de Taiwan tem sido gerida com muito cuidado por Pequim, Washington e Taipé, pois é grande o risco de se tornar no detonador que pode levar ao conflito militar entre a China e os EUA. Acresce que as tensões entre Pequim e Taipé aumentam sempre que a coligação dos taiwaneses do DPP está no poder em Taiwan, como vem acontecendo nos últimos anos sob a Presidência de Tsai Ing-Wen - ao contrário do KMT/Partido Nacionalista chinês, os taiwaneses do DPP não se revêm nem na identidade chinesa nem no ideal da unificação da China, procurando simplesmente a independência de Taiwan. Por seu lado, as instituições internacionais, desde o universo das Nações Unidas à Organização Mundial do Comércio (OMC), têm sido crescentemente palco de articulação mas também da disputa de influência político-diplomática entre os EUA e a China, com a agravante das posições e retraimento da Administração Trump favorecerem a expansão da influência chinesa nos organismos multilaterais. As críticas e ameaças da Administração Trump relativamente à OMS nos últimos dois meses são um bom exemplo disso, o que é contraproducente também porque limita o papel que a OMS poderia e deveria ter na coordenação de esforços coletivos para conter esta pandemia global. Quanto à possibilidade de Taiwan aderir à OMS, todos sabemos que Pequim prossegue o "bloqueio diplomático" de um País que considera parte inalienável da China, incluindo a adesão ou participação de Taiwan na ONU e suas agências, como a OMS. Porém, havendo habilidade diplomática, não vejo impossível que Taiwan possa vir a participar na OMS como acontece já, por exemplo, na APEC (Asia Pacific Economic Cooperation) ou na OMC, sob a designação de "Chinese Taipei". Porém, isso nunca acontecerá se a questão surgir como vitória/derrota de EUA/China e será mais difícil com os independentistas do DPP no poder em Taiwan.


Japão e Coreia do Sul também tiveram sucesso na luta contra a pandemia, e são democracias. Pode-se ver na cultura confucionista (versão xintoísta no Japão) o segredo para a relação Estado-População que permite medidas duras mas eficazes para limitar número de infectados?
Até certo ponto, sim: independentemente dos regimes políticos, há muitos elementos culturais e civilizacionais nas sociedades asiáticas (e não apenas decorrentes do confucionismo) que favorecem o chamado "primado do coletivo" e, em certas condições, a consciência de justaposição do interesse individual com o interesse coletivo e ainda uma certa tendência de obediência coletiva face a determinações que são justificadas em nome do interesse de todos. Sendo verdade que isto é frequentemente aproveitado e instrumentalizado pelos regimes autocráticos que lhe somam os respetivos arsenais repressivos, também é certo que as sociedades democráticas asiáticas mostraram nesta crise grande predisposição para respeitar e cumprir regras pela consciência de urgência e necessidade para benefício de todos e de cada um. Daí que em países como Japão, Coreia do Sul ou Taiwan as medidas anti-Covid-19 tivessem sido implementadas eficazmente sem recurso a certos mecanismos mais repressivos, por exemplo, da China. Porém, essa consciência de confluência de interesse individual e coletivo e esse respeito por medidas restritivas em nome da saúde de todos e de cada um não é um exclusivo das sociedades asiáticas; felizmente, verificamos o mesmo em países e sociedades de outras regiões do globo. Infelizmente, nem todos os dirigentes políticos e grupos sociais têm a mesma consciência e visão.


Com vários países a perceberem agora a dependência da China em matéria tão simples como as máscaras cirúrgicas, pode haver um desvio de importações para outro países asiáticos e assim fragilizar a recuperação da indústria chinesa?
É natural que certos fundamentos da globalização económica e acerca de determinadas cadeias de produção e de fornecimento sejam questionados. Pela maior consciência de que mais interdependência também significa mais dependência que esta crise traz, é bastante provável que muitos países queiram passar a ter "reservas estratégicas" também nas áreas da saúde, do mesmo modo que não querem depender (pelo menos, depender tanto) de fornecimento externo de certos materiais e bens, designadamente da China, procurando garantir um determinado nível de capacidade de produção nacional e também de diversificação de fornecedores - o que, aliás, acontece com outros recursos há muito considerados estratégicos. Se isto conduzir a um regresso ao protecionismo e nacionalismo económico, pode ser negativo para a economia mundial e também para a nossa segurança, dado que o crescimento económico mundial nas últimas décadas muito deve à internacionalização das economias e, por outro lado, as interdependências económicas e comerciais têm atenuado certas rivalidades entre grandes potências, desmotivado para o conflito e facilitado a cooperação e articulação internacional nos mais diversos domínios. Porém, creio que os ajustamentos em termos de capacidade produtiva própria, cadeias de produção transnacionais e origem de fornecimentos não significarão nem o fim da globalização económica nem reduzirão drasticamente o peso da China na produção e exportações mundiais.

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