Foi há 75 anos. A 27 de janeiro de 1945 as tropas soviéticas entraram no campo de Auschwitz-Birkenau, construído pelos nazis perto de Cracóvia, na Polónia ocupada, onde mais de um milhão de pessoas foram mortas. O dia da libertação dos sobreviventes (cerca de sete mil) do campo de extermínio que se tornou no símbolo do Holocausto é hoje evocado um pouco por todo o mundo. E, como se tem ouvido nas cerimónias e nos discursos dos últimos dias, vem a par do alerta para o recrudescimento de extremismos, muitas vezes de ideologia ou inspiração nazi, assumidos sem vergonha nem culpa.."Não são as mesmas palavras, não são os mesmos criminosos. Mas é o mesmo mal", advertiu na passada semana o presidente alemão Frank-Walter Steinmeier, na cerimónia de evocação da libertação de Auschwitz que juntou dezenas de chefes de Estado em Israel..Setenta e cinco anos depois, da Europa aos Estados Unidos, a irrupção de grupos de ideologia nazi continua a ser uma realidade. A forma como cada país lida com esse fenómeno e a sua expressão pública é que chega a ser diametralmente oposta..Ainda na última quinta-feira, o governo alemão anunciou a proibição e a dissolução do movimento neonazi Combat 18, acusado de propagar a ideologia do III Reich. A decisão está longe de ser inédita - este é o décimo oitavo grupo proibido pelas autoridades alemãs..A Alemanha, por óbvias razões históricas, tem o quadro legal mais restritivo da Europa quanto a exibição e publicitação de símbolos associados ao nazismo. A Constituição alemã estabelece que "são proibidas todas as associações cujas finalidades ou cuja atividade sejam contrárias às leis penais ou estejam orientadas contra a ordem constitucional ou os ideais do entendimento entre os povos". Já o Código Penal determina que é proibido "o uso de símbolos de organizações inconstitucionais", sejam eles bandeiras, emblemas, uniformes, insígnias ou modos de saudação. A pena prevista vai até três anos de prisão. A proibição só abre exceções ao uso destes símbolos em contexto académico, artístico, de ensino ou investigação..Mas nem mesmo a restritiva lei alemã tem impedido a exibição pública de símbolos ligados ao nazismo, com os neonazis a adotarem uma simbologia que escapa às malhas da lei, mas que ainda assim é facilmente associável a este tipo de movimentos. O Combat 18 é exemplo disso - o número não é um acaso, é uma forma encapotada de dizer Adolf Hitler, sendo as iniciais dos dois nomes a primeira e a oitava letra do alfabeto. O mesmo é válido para o 88 que, pelo mesmo paralelismo, equivale a Heil Hitler..Em dezembro último o jornal alemão Tagesspiegel revelou os números de um levantamento feito pelo Departamento de Proteção à Constituição - o serviço de informações do Ministério do Interior alemão - que aponta para a existência de 32 200 extremistas de direita no país, um crescimento muito assinalável face aos 24 100 elementos identificados no ano anterior. Outra novidade foi a inclusão nesta lista de cerca de mil membros da juventude do AfD (Alternativa para a Alemanha) e cerca de sete mil membros da Der Flugel, a ala mais radical do partido de extrema-direita que é, atualmente, a terceira força política do Bundestag..Em nome da liberdade de expressão.Os EUA estão no polo oposto da Alemanha. Nos Estados Unidos, o amplo direito à liberdade de expressão consagrado na Constituição - a famosa Primeira Emenda - abre espaço não só ao discurso em defesa do nazismo como à exibição de símbolos ou gestos que apontem para a mesma simbologia. Exibir suásticas, fazer a saudação nazi, exibir cartazes com a imagem de Hitler, são atos legais em território norte-americano. E têm sido visíveis, aliás, em manifestações de grupos de extrema-direita como aquele que, em 2017, ocupou as ruas de Charlottesville, no estado da Virgínia, com inúmeras bandeiras com suásticas, referências explícitas a Hitler e slogans racistas contra negros, judeus e imigrantes..A Southern Poverty Law Center (SPLC), uma ONG americana de defesa dos direitos civis que monitoriza grupos de ódio no país, identificava em 2018 um total de 112 grupos neonazis nos Estados Unidos - e é a própria associação a advertir que a lista não é exaustiva. A SPLC identificava ainda oito grupos negacionistas do Holocausto..Já o Brasil determina prisão de dois a cinco anos para quem "fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo". No final do ano passado, a imprensa brasileira divulgou uma pesquisa da Universidade Estadual de Campinas, que mapeou 334 células neonazis em atividade no país..Na Europa, além da Alemanha, também a Áustria, a República Checa, a Eslováquia, a Suíça e a Suécia proíbem o uso de símbolos nazis..Proibir ou não proibir? União Europeia não chegou a acordo.Em 2005 a própria União Europeia discutiu a introdução, nas leis comunitárias, da proibição de símbolos nazis. Mas a discussão nunca chegou a bom porto, por divergências entre os Estados membros: a Alemanha foi a principal impulsionadora da extensão da proibição a todo o espaço comunitário, mas vários países - casos do Reino Unido e de Itália - opuseram-se à medida, em nome da liberdade de expressão..Portugal também se opôs à proibição. Quinze anos depois, Paulo Rangel, então secretário de Estado da Justiça, mantém reservas à proibição dos símbolos associados aos III Reich, apontando-a como uma solução pouco recomendável até por levantar muitas questões quanto à liberdade de expressão - "Não acho que isto passe necessariamente pela proibição dos símbolos". Outra coisa é a existência de organizações de ideologia nazi - "a dissolução das organizações pode ser, em muitos casos, recomendável"..Até porque, diz o atual eurodeputado, é hoje claro que estão a aumentar os grupos organizados que se reclamam da ideologia nazi, muito numa "ótica de ódio ao estrangeiro em geral". E não é por esquecimento da história, "é um discurso consciente"..Numa era em que os extremos ganham terreno, Paulo Rangel rejeita um cenário de normalização do nazismo ou dos seus valores, sublinhando que mesmo a direita radical que, cada vez mais, se senta nos parlamentos nacionais "procura não trazer este tema" para cima da mesa. O que há são "grupos de skinheads, que são bandos, milícias, e que estão a aumentar bastante". Um cenário que permite um paralelismo "um bocadinho assustador" com o início do nazismo (e do fascismo de Mussolini, por exemplo), marcado pelo surgimento de milícias que vieram depois a constituir-se como verdadeiros exércitos alternativos..E é aqui que Paulo Rangel deixa o alerta: "Se olharmos para os princípios do nazismo e do fascismo, para a ascensão destes movimentos, o que é que vemos? É que foi tudo feito passo a passo. Com o nazismo isso foi evidente, as primeiras medidas não se comparam com o que veio depois, cada dia tomavam uma medida pior que a do dia anterior". "O que sabemos, por experiência histórica, é que ao contemporizarmos com pequenos deslizes abrimos a porta a monstros incontroláveis. Há princípios em que não podemos ceder. A História mostra que alguma complacência com alguns dos passos dados foram o caminho para o desastre", conclui Paulo Rangel..Ataques antissemitas em crescendo.Outro sinal que tem vindo a aumentar na Europa, que remete diretamente para a imagem de marca do III Reich, são os ataques antissemitas que se têm multiplicado sobretudo na França (onde reside a maior comunidade judia da Europa) e na Alemanha..Em 2018 houve mais de 50 ataques antissemitas em França, um aumento de 74% por comparação ao ano anterior. A Alemanha registou em 2018 um total de 62 ataques antissemitas violentos, em comparação com os 37 reportados em 2017. No Reino Unido, a organização não governamental Community Security Trust elencou no mesmo ano 1652 incidentes antissemitas, 123 dos quais envolvendo violência física. Nos primeiros seis meses de 2019 (os últimos números disponíveis), a ONG rastreou 892 atos antissemitas - o valor mais alto de sempre para o primeiro semestre do ano, representando um aumento de 10% relativamente ao período homólogo do ano anterior, que já tinha batido valores recorde.