Juntos têm quase três séculos de vida. Joaquim Granger (ginástica), José Quina (vela) e Gentil Martins (tiro) são história viva do desporto português, três dos atletas olímpicos mais antigos de Portugal, ontem homenageados pela Associação dos Atletas Olímpicos de Portugal, quando se assinalam 110 anos da primeira participação de Portugal (Estocolmo 1912). Uma vez olímpicos, olímpicos para sempre, é o lema. Garantem que não estão presos ao passado, mesmo que discordem do rumo que o Olimpismo levou: o profissionalismo, o desafiar o corpo ao limite ou o recurso ao doping..Joaquim tem 93 anos. É totalmente independente e tão "vivaço" que engana quem não souber que nasceu em 1928. Foi numa ida a um sarau do Lisboa Ginásio, durante os anos de 1940, que ficou "fascinado" com a ginástica. Era hiperativo e parecia-lhe uma boa maneira de gastar energia. Tinha na altura 18 anos (idade avançada para a prática atual) quando começou a treinar. Só queria saber da ginástica e por isso "chumbava ano sim, ano não"..Nunca pensou ir aos Jogos Olímpicos. Não havia competição de ginástica artística em Portugal e só se faziam dois dos seis exercícios, a barra fixa e as paralelas. "Cavalo com arções e argolas? Nem sabia o que isso era. Em 1949, a direção do Lisboa Ginásio convidou a equipa suíça que tinha sido campeã olímpica em 1948 para uma demonstração em Lisboa e foi aí que se comprou o cavalo com arções e montaram as argolas. Tivemos de aprender a usar esses aparelhos", contou ao DN o antigo ginasta, que seria eleito para os Jogos Olímpicos depois da criação da federação..Integrou a Missão Portuguesa em Helsínquia 1952, a primeira com mulheres, e por sinal três ginastas - Dália Cunha, Natália Cunha e Laura Amorim. A viagem para a Finlândia fez-se a bordo do navio Serpa Pinto. Treinava no porão, juntamente com o outro ginasta, Raul Caldeira. Esperava pela cava da onda para fazer o pino e outras manobras. "Ficava sempre alguém junto à borda do navio a segurar uma lona para não ir borda fora. É o pioneirismo no seu melhor", lembrou, ele que nos Jogos ficou "cá para trás (162 no all around)"..Joaquim assistiu de perto a um dos momentos altos do Olimpismo, quando o checo Emil Zátopek venceu a maratona, depois de ter ganho os 5000 e os 10 000 metros (uma tripla medalha de ouro inédita). "É preciso amar aquilo que se faz. A mim não me daria gozo algum estar seis horas por dia a treinar num ambiente de sofrimento. Não quero tirar mérito aos profissionais, temos uma das melhoras escolas de ginástica acrobática de mundo, como se viu há semanas. Aquelas miúdas são espetaculares, mas saber que são pesadas semanalmente e cada grama conta é de uma violência...", atirou..Oito anos depois, em Roma 1960, foi a vez dos primos Gentil defenderem as cores de Portugal e dois deles (os irmãos José e Mário Quina) conquistarem uma medalha de prata. José Quina começou aos sete anos e fez regatas até aos 77. Hoje com 87 anos já se deixou disso e fica-se pelas recordações do tempo em que não se usavam luvas e as mãos ficavam em ferida de tanto puxar as velas. E do tempo em que ganhou uma medalha num barco que o irmão tinha comprado a prestações. Tinham ficado em 5.º lugar no Campeonato do Mundo e quando começaram a treinar em Roma perceberam que tinham "velocidade" para lutar de igual para igual com os outros. "Eu nunca fui para uma competição com a ideia que ia perder. Ia para ganhar. A coisa correu bem", confessou ao DN, recordando que Straulino, o histórico velejador italiano que viria a ser campeão olímpico, ficou em 4.º nesses Jogos Olímpicos..A medalha, hoje na posse de um filho, não mudou nada. Ele e o irmão chegaram de Roma no mesmo anonimato com que partiram de Portugal: "Nem sei se alguém nos recebeu, mas lembro-me que a orquestra dos Bombeiros do Estoril foi a nossa casa tocar o hino.".José Quina também participou no México 1968 e em Munique 1972, este marcado pelo sequestro de atletas judeus, que terminou no massacre de onze atletas (num total de 17 vítimas mortais). Não estava na Aldeia Olímpica na altura do ataque, porque a prova de vela era em Quiel, no mar báltico, a quase 900 km de distância..Nessa altura a organização já disponibilizava barcos iguais para todos, mas os velejadores precisavam na mesma de barcos de treino: "Comprámos uma carrinha em terceira ou quarta mão [risos] para os levar até Quiel, mas a carrinha quando entrou na Alemanha incendiou-se. O Patacas, o amigo que conduzia a carrinha, ligou aflito. Disse-lhe para ter calma e liguei para a minha mulher, que trabalhava numa empresa de aluguer de carros, e ela tratou de arranjar transporte. Horas depois, já em Quiel, ouvimos as sirenes da polícia e saímos todos para ver o que se passava. Eram os nossos barcos a chegar com os batedores da polícia", contou ao DN o velejador medalhado..Nesse tempo, quem fosse profissional não podia ir aos Jogos. Chegou a ser representante de umas velas austríacas em Portugal e meteu o logotipo da marca no carro e um dia ligaram-lhe da Áustria a dizer para o tirar, que era sinal de profissionalismo e podia ser desqualificado dos JO. "Outros tempos", desabafou José, dizendo que nunca entendeu como se paga a alguém para praticar desporto. E tinha essa discussão várias vezes com o amigo Jesus Correia (um dos cinco violinos) que na altura ganhava seis escudos a jogar no Sporting..Ser olímpico também não mudou grande coisa na vida do primo, Gentil Martins, hoje com 91 anos. Foi pelo "prazer de ser olímpico" e não pela medalha que foi a Roma 1960 - tiro com pistola automática a 25 metros (foi 50.º). "Eu sabia que não ia ganhar a medalha. Para ir ao pódio era preciso trabalhar muitíssimo e eu fazia aquilo por diversão e por gosto", contou ao DN, aquele que viria a ser um dos mais conceituados médicos cirurgiões portugueses..Tinha estado três anos em Inglaterra a especializar-se (Medicina) e só começou a treinar depois disso, incentivado pela herança desportiva do pai (António Martins, um dos primeiros grande atletas de Portugal). "Queria ser como o meu pai, mas nunca lhe cheguei aos calcanhares. Fui para o tiro. Queria ter um resultado que me permitisse ser olímpico. Essa ideia já era por si excecional. Para mim, como dizia Cobertain, o importante era participar. Até 1932, os JO tinham uma agenda cultural que decorria paralelamente à competição desportiva. Não era só físico, era a parte intelectual também. Reduzir os JO só à parte física é uma pena", desabafou o médico, recordando que foi um atirador olímpico amigo do pai que lhe emprestou as armas e deu as munições para treinar..Roma 1960 ficou na história pela vitória do etíope Abebe Bikila na maratona... a correr descalço. E também pelo sexto ouro consecutivo do esgrimista húngaro Aladar Gerevich e do canoísta sueco Gert Fredriksson. Mas o que mais marcou Gentil Martins "foi estar ao pé de pessoas que admirava, alguns génios do desporto como se fosse igual a eles, que não era." Um desses heróis era o campeão olímpico do triplo salto brasileiro, Adhemar Ferreira da Silva, que tinha sido um dos protagonistas do filme "O Orféu Negro" - desempenhou o papel da Morte -, uma adaptação ao cinema da peça teatral de Vinicius de Moraes, Orfeu da Conceição, da autoria de Marcel Camus, que ganhou o Óscar para melhor filme estrangeiro, o primeiro filme falado em português premiado desde sempre.."O Adhemar tocava lindamente violão para as comitivas de Portugal e do Brasil, passámos noites maravilhosas na Aldeia Olímpica a ouvi-lo", recordou Gentil Martins, que chegou a presidir à Associação dos Atletas Olímpicos de Portugal (numa votação ganha ao campeão Carlos Lopes), hoje liderada pelo também Olímpico Luís Monteiro (Los Angeles 1984)..isaura.almeida@dn.pt