Primeiro ponto: a seleção oficial na Mostra Internacional da Bienal de Veneza em competição é a vitória de um novo tipo de cinema francês em contraponto com um certo cinema de autor banalizado e de fato e gravata. Segundo ponto: Romain Gravas tem contra si uma evidente campanha de discriminação de certos setores de uma crítica obediente e cheia de lugares-comuns, aquela que ainda insiste que um filme, por ter planos-sequência elaborados ou um cuidado visual e meios, é herdeiro de um olhar de publicidade e videoclipe. Enfim, mesmo não sendo uma obra de cerrar fileiras, Athena é um bom caso para se discutir um novo caminho de cinema de entretenimento com mensagens políticas e sociais, aliás, um pouco como Os Miseráveis, de Ladj Ly já o fazia. Como não há coincidências, este é também um projeto de Ladj Ly, aqui responsável pelo argumento em parceria com Romain Gravas e Elias Belkeddar..Athena é uma história de uma revolta num bairro periférico da capital francesa. Um grupo de jovens dos subúrbios alia-se e ataca uma esquadra, roubando material de fogo. Em causa estão os protestos face à morte de uma criança do bairro supostamente às mãos de oficiais da polícia..Três irmãos de origem magrebina acabam por se confrontar nesse violento cerco: um polícia, um dealer e um instigador. Um cerco que ganha uma dimensão grande, atraindo um circo mediático e ameaçando a ordem pública. A França fica em Estado de Sítio e os media cobrem a violência em Athena como se de um espetáculo se tratasse..Do lado da polícia, acompanhamos a missão de confronto de um jovem polícia, ainda com a cabeça no recém-estado de paternidade. Um jovem que no meio dos confrontos nas arcadas dos prédios de habitação social é apanhado pelo gangue e cedo se torna refém neste confronto de grande escala..Romain Gravas, tal como em O Dia Chegará, encena cada sequência com um estado de crispação e tensão total. Trata-se de uma pulsão que é tão interior como física, muitas vezes sustentada por um trabalho de close-ups nos rostos dos atores. E é aí que se sente que este "rodeo" de raiva e fúria tem um ódio que na França branca passa ao lado. O espetador desinformado fica à toa com a selvajaria desta violência que, aos olhos não-contextualizados ,tem demasiado ruído e - que horror! - quase só negros e árabes irados..A bomba-relógio de Gravas, cineasta sem medo de ter estética no meio disto, é ir ao fundo deste problema, desta ameaça a uma escalada quase de guerra civil. E não se trata de recortar com fotogenia este sentimento de revolta de quem quer fazer uma revolução com sangue. Gravas vai por um outro caminho: escancara um flagelo com novelo de tragédia e uma narrativa de irmandade e fatalidade. Coisa de família, coisa do destino cruel..Cinema antifascista puro e duro, Athena é um tour-de-force sobre a violência civil numa sociedade de descontentamento constante. A tal distopia ultra-violenta de uma ideia de fim da França, explícito prolongamento daquilo que era abordado por Matthieu Kassovitz há quase trinta anos, em O Ódio, obra-prima que o Festival de Cannes imortalizou e cravava um momento do cinema francês contemporâneo..E é de contemporaneidade que o cinema de Romain Gravas é feito, um clique deste sinal dos tempos, capaz de expressar ideias sobre os movimentos de extrema-direita à segregação do governo, não faltando a repressão policial..E quem se queixar perante o uso do plano-sequência religiosamente coreografado no meio do caos, esquece a sua utilidade como lança de desconforto. Não importa se a exibição de sequências com gruas a fazerem uma marcação de espaço estão a mais ou não. Fazem parte de uma apoteose assumida de uma imersão num objeto visual singularíssimo, sem medos de um formalismo steady-camera. Na verdade, são os utensílios deste cineasta para uma atitude de subvenção de uma proposta de saldar contacto físico em cinema..Pena é que o público não possa ver isto em grande ecrã. Ironia cruel: a Netflix em França apostou um orçamento faustoso para ter um objeto que pedia o grande ecrã..Se acreditarmos que não é ético que um plano-sequência possa ser espetacular num filme com petardo político de choque, então Athena encerra em si um problema de perceção. Em boa verdade, a sua amplitude de fulgor emotivo pedia algo assim, o resto é preconceito e já em O Mundo é Teu este cineasta quebrava algumas barreiras visuais..A claque de Romain Gravas evoca até o termo de esteta e não vem mal ao mundo por isso, mesmo quando se esteja a narrar com choque uma tragédia grega com a barbárie desta França de hoje. Se quisermos, Athena é o que temos de mais próximo de uma ideia de filme novo de choque, um arrepio na espinha que nos obriga a estar dentro dos banlieu, a sentir o cheiro da pólvora e a vertigem do medo numa batalha campal para agitar os sentidos. O pesadelo de uma ideia de fissura de uma ordem francesa civilizacional é empolado com imagens de vertigem sensorial..Se a questão da disputa trágica entre os irmãos de origem árabe não tivesse alguns clichés de guião, Athena pulava para o panteão dos objetos que marcam uma época e um tempo....dnot@dn.pt