"As pessoas ouvem falar em citar a Bíblia numa decisão judicial e parece que é um crime de lesa-majestade. Mas claro que se pode citar a Bíblia, como pode citar-se o Corão, Saramago, um poema, Ary dos Santos, Eça de Queirós. Pode-se citar tudo o que venha a propósito para contextualizar o que se quer dizer, para reforçar o argumento e para o fazer mais compreensível. Não são as citações que tornam os argumentos melhores ou piores.".Edgar Lopes, juiz desembargador e coordenador de formação na escola de magistrados, o Centro de Estudos Judiciários, vem assim reforçar as afirmações do conselheiro João Silva Miguel, diretor do CEJ. Este, se disse à TSF que crê que "os acórdãos devem ser o mais secos possível, no sentido da ausência de considerações que não sejam relevantes para a fundamentação", não afasta a possibilidade de um juiz poder citar a Bíblia na respetiva fundamentação: "Tudo depende dos contextos em que as coisas ocorrem. Não creio que se possa afastar a Bíblia ou qualquer outro livro de uma referência num documento que está a ser preparado.".A pergunta da TSF ao diretor do CEJ veio, claro, a propósito de Joaquim Neto de Moura, o juiz do Tribunal da Relação do Porto que ficou famoso graças ao "acórdão da mulher adúltera", de outubro de 2017. No qual se reduzia a pena a dois homens que sequestraram e agrediram com uma moca de pregos uma mulher que fora casada com um e mantivera um relacionamento extraconjugal com o outro, imputando à "imoralidade sexual" da vítima o "estado depressivo" do marido, que o teria levado a cometer o crime; eram citados a Bíblia e o Código Penal de 1886 e respetivos preceitos sobre adultério feminino -- a pena de lapidação no primeiro caso, a licença para matar concedida ao marido "enganado" no segundo, para "contextualizar" o repúdio social pela infidelidade feminina. Mas quer João Silva Miguel quer Edgar Lopes escusam-se da referência a casos concretos..Ainda assim, o desembargador frisa: "Não se pode tratar jamais de considerar a Bíblia como "fonte de Direito". Como, e exemplifica, a Banda Desenhada também o não é. "Mas já citei uma tirinha do Asterix numa decisão. Foi numa ação que a Catarina Furtado pôs ao Tal & Qual. Na capa dizia "Catarina desanca Herman José"; o título dizia "Catarina critica Herman' - e o texto dizia só: "Ele não diz as falas". Sabe aquela cena do Astérix em que o druida dá uma poção ao centurião fingir que é a da força mas em vez disso lhe vai fazer crescer o cabelo? Ele toma aquilo e tenta levantar um rochedo. Não consegue e vai para uma pedra mais pequena. E como não consegue a seguir levanta uma pedrinha. Pus mesmo a tirinha na sentença." Ri.."Uma decisão não é um artigo de opinião".Mas, claro, há uma diferença, prossegue Edgar Lopes, entre uma decisão judicial refletir a mundividência do juiz -- "porque não há ninguém que seja bacteriologicamente puro" --, "as suas perceções e a sua visão profissional, de acordo com as leis", e fazer de uma sentença "um artigo de opinião". "Os juízes têm a obrigação de saber que uma sentença, um arquivamento, não é, nas palavras da ministra da Justiça numa sessão no CEJ, um diário pessoal, mas um documento da República.".A penalista Inês Ferreira Leite, professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e dirigente da associação feminista Capazes, a qual em 2017 participou do juiz Neto de Moura ao Conselho Superior de Magistratura, não discorda de Edgar Lopes.."É simples", diz Ferreira Leite. "Não há uma proibição de citar a Bíblia ou qualquer outra obra literária de referência numa decisão judicial. Tem que estar no contexto da matéria e ser citada de modo compatível com o quadro de valores constitucionais e ético-jurídicos de Portugal. Não se pode invocar a Bíblia para censurar uma mulher adúltera (ou responsabilizá-la por uma agressão de que foi vítima), do mesmo modo que não se pode citar o Mein Kampf [A Minha Luta, livro de Hitler escrito nos anos 1920 no qual este expõe o seu antissemitismo] para responsabilizar um judeu por uma agressão de que foi vítima.".E, claro, continua a jurista, "nem a Bíblia, nem qualquer obra literária podem ser o fundamento de uma decisão em matéria penal. Em matéria penal, os fundamentos da decisão só podem ser a Constituição e a lei, por causa do princípio da legalidade penal. Em bom rigor, os fundamentos de uma decisão judicial deveriam ser sempre (e só) a Constituição e a lei. Citações literárias devem servir apenas, em casos em que se justifique, para dar contexto a aplicação da lei ao caso concreto ou tornar a decisão mais compreensível (mais próxima) do cidadão leigo em direito.".Há países, aponta Edgar Lopes, em que é proibido fazer citações. "Em Itália foi durante algum tempo, não sei se ainda é. Mas sabe o que acontecia? Tiravam as aspas e citavam na mesma." Talvez os juízes precisem de colorir um pouco as decisões para lhes amenizar a aridez -- na leitura e na escrita --; talvez gostem de evidenciar erudição (daí por vezes as palavras rebuscadas, daquelas que ninguém usa). Talvez, como Edgar Lopes, gostem de uma boa gargalhada e de partilhar o sentido de humor. O ponto, para o desembargador, é que "a decisão tem de passar de convencida a convincente". E para se convencer, frisa, "é preciso argumentar, e há muitas maneiras de fazer isso. O relevante é que a decisão tem de ser o mais clara possível.".Porque, recorde-se, se a justiça é administrada em nome do povo, convém que o povo a possa perceber. E que, conclui Edgar Lopes, "aceite que é humana, e isso vale até ao fim, ou..." Valer essa humanidade até ao fim, ou seja, para todos os efeitos, implicará também reconhecer a sua falibilidade -- é que se é dos erros humanos que a justiça trata, será igualmente humano que erre. A questão é quem lhe julga os erros, à justiça. E que remédio para eles, se algum..No caso do juiz Neto de Moura, o "acórdão da mulher adúltera" e outro semelhante também de 2017 valeram-lhe um processo disciplinar do Conselho Superior de Magistratura, que terminou em fevereiro, com uma pena de advertência registada, da qual o magistrado vai recorrer para o Supremo Tribunal. Foram identificadas várias outras decisões semelhantes do mesmo juiz, mas o prazo de procedimento disciplinar já tinha prescrito.