Até quem não pode combater ajuda à defesa
Vasyl tem uns olhos eslavos de um azul difícil de descrever. Não são claros, como os da maioria. Nem escuros. São luminosos, de um azul que parece mudar de cor conforme ele sorri, ou não. Mas olhar é calmo, irrequieto, curioso e, por agora, preocupado. Vasyl diz sempre que está "ok". Nunca reclama, tenta sempre ajudar, quer tanto aprender inglês que passou uma noite a ler o dicionário. À procura de significados, a estudar novas palavras, a esforçar-se por se fazer entender.
Mas o olhar de Vasyl anda preocupado. "Que se passa", pergunto. Ele volta a dizer que está tudo "ok". Não está. Insisto. Ele confessa. "Passei o dia a ver notícias na televisão". Digo-lhe que não veja, que isso não ajudará muito. "Tenho que ver", diz ele. Porque "está em causa o meu país, a minha terra, o lugar de onde sou". Onde quer que paremos, Vasyl tenta ajudar. A quem fabrica cocktails molotov, levou gasolina. No centro de recolha de alimentos, deixou ficar mercearias. E andou dois dias com a mala do carro cheia de roupas de bebé para entregar num posto de recolha.
No palco do Cineteatro de Lviv, dois veteranos de guerra estão cada um diante de sua mesa. Cada mesa tem duas kalashnikov. Do outro lado, homens comuns aprendem à pressa como montar e desmontar a arma, como travá-la, como disparar. Depois, repetem o procedimento, vezes sem conta, até conseguirem faze-lo depressa, bem e com agilidade. Os instrutores não gritam não se enervam, não exigem. Dão indicações precisas e com voz calma, mesmo quando os "alunos", apesar da boa vontade, revelam pouca apetência manual para a tarefa. E repetem. E mandam repetir. Até afinar. Em "tempo normais", esta "formação" poderia levar semanas, mas "agora" não há tempo. Há muito a fazer e todos os minutos contam.
Pavlo Gladysh combateu na guerra de 2014, quando estava no exército ucraniano. Nas horas vagas é instrutor de Kung-Fu, durante o dia está na barra dos tribunais. É um advogado conhecido em Lviv. No perfil das redes sociais, é classificado como "figura pública". Continua, aos 41 anos, com porte e figura militar. E, como não se esqueceu dos ensinamentos do exército, veste a pela de instrutor. "O ideal seria que os militares estivessem a ensinar os civis. Mas neste momento estão muito ocupados e nós, que ainda sabemos fazer isto, podemos ajudar."
Os "civis" querem aprender. Não farão parte do exército, mas estarão nos comités de defesa civil, a patrulhar rua a rua, aldeia a aldeia, estrada a estrada. Na plateia do Cineteatro de Lviv, quase 50 homens, entre os 18 e os 60, escutam as indicações. Todos estão ali pelas mesmas razões. Serem parte, sentirem-se úteis, combaterem pelo seu país. Como os militares. Os alunos do veterano-instrutor-advogado-figura pública Pavlo não são repreendidos. Nunca. "O que importa é o motivo que os trouxe aqui."
O estudante, de 22 anos, Valentyn Steh, diz "estar pronto". No que depender dele, vai "defender a família, a casa e o país", sem medo, sem reservas e sem contemplações.
Vasyl, que como sempre observa e absorve tudo o que vê e ouve, pergunta a Pavlo se pode também aprender a montar e desmontar a kalashnikov. Pode. Experimenta. tem jeito com as mãos. Na fábrica de cabos onde trabalha, não utiliza muito as mãos, mas passou as duas últimas noites a fazer, em casa, extensões elétricas. Dão muito jeito para levar para os bunkers e conseguir energia para carregar telemóveis e ligar aquecedores. Ou chaleiras. Deixou-as num dos muitos locais onde se recolhem bens para o esforço de guerra.
O olhar preocupado de Vasyl também tem que ver com outra realidade. "Não tenho condição física para ir combater. E isso deixa-me triste, não posso contribuir." Na verdade, os 145 quilos de Vasyl podem ser um impedimento para quem quer estar na linha da frente. Mas, diz ele, ainda assim, se for preciso, "sou capaz de disparar uma arma". Depois de dizê-lo em voz alta, o olhar volta a ganhar o brilho de quase sempre. Afinal, para disparar não é preciso correr. E, quem sabe, um dia destes, os 145 quilos de Vasyl possam ser "úteis" na defesa do território ucraniano. Ou talvez seja porque ouviu Pavlo dizer que não importa o jeito, a idade ou a condição, o que realmente faz a diferença é "a boa vontade". E nesse capítulo, Vasyl está bem acima do seu peso.