Histórias de quem sai para trabalhar. "Até os colegas mais valentões, machos, estão com receio"
Há uma canção dos Doors assim: "Strange days have found us / Strange days have tracked us down (Dias estranhos encontraram-nos / Dias estranhos seguiram o nosso rasto)."
Madalena foi apanhada por eles, como todos nós. "Moro ao lado da prisão de Beja e oiço os reclusos aos gritos a gozar com as pessoas cá fora. Eles passam o dia a jogar à bola no pátio, podem estar juntos. De alguma forma têm neste momento mais liberdade que nós. A maioria da população está mesmo fechada e a polícia, e bem, anda atenta a mandar tudo para casa."
É uma das muitas ironias destes dias que sabem a metáfora grosseira de ficcionistas preguiçosos. Em casa de Madalena, ainda assim, ninguém está em clausura: ela, o marido e um dos filhos saem para trabalhar todos os dias. O marido é informático na autarquia e não pode fazer o que faz em casa; o filho é funcionário da Worten - "que está aberta e vende todos os dias, a única diferença é que não se pode entrar e passear, tem de se saber o que se vai comprar e só entram três pessoas de cada vez" -, ela está à frente de uma associação de apoio social, a Estar.
E se ali no meio do Alentejo o número de infetados é ainda muito baixo (esta quarta-feira contavam-se 12 e nenhuma morte), a emergência é outra: "A toda a hora estão a chegar pedidos de ajuda, e começam a aparecer pedidos de ajuda para comer. Temos muita comunidade estrangeira que veio para trabalhar na agricultura e de um dia para o outro ficou sem trabalho, meteram-nos na rua. São centenas neste concelho. Vou tentando apagar os fogos à medida que me chegam."
De modo que Madalena, de apelido Palma, 43 anos, sai todos os dias. "Tento fazê-lo só uma vez e fazer tudo o que há a fazer. Ou é ir ao armazém buscar coisas para entregar a quem precisa ou ir buscar dádivas e pôr no armazém. Tenho frascos de álcool em tudo quanto é sitio, tenho as mãos em chaga de tanto álcool. E usamos - somos duas - máscara e luvas."
A Estar, que fundou em abril passado, trabalha em coordenação com outras organizações - Banco Alimentar, Caritas, etc - e tem uma série de bens, de eletrodomésticos a móveis ("Se tenho uma recolha de um fogão ou frigorífico peço ajuda ao Banco Alimentar, que tem uma carrinha grande"), de panelas e tachos a pratos, para acorrer às necessidades. "Se me telefonam às duas da manha porque têm uma família desalojada que precisa de coisas, eu tenho ou arranjo."
Em casa criaram "uma zona verde e uma zona vermelha", a limpa e a suja." Só uma pessoa da família está em confinamento total, o filho que estava em Erasmus na República Checa e pelo qual tiveram de mover "céu e terra para o trazer de volta": estava em Zlin, onde começou o surto naquele país. "Foi mesmo a universidade que fez um apelo aos estudantes para se virem embora. Lá consegui um voo, caríssimo, e teve de fazer quatro horas de comboio para o apanhar. Fui buscá-lo a Lisboa toda protegida e agora está em quarentena, sozinho num outro apartamento que temos na cidade, a estudar porque vai quer acabar o ano."
"Estamos um bocadinho a descobrir o desenrolar dos acontecimentos. A aprender todos os dias." Quem o diz é Daniel, 29 anos, que pede para não se usar o apelido, e que sabe bem o que é viver em planos de contingência. Está a sair do mar a primeira vez que fala com o DN, na terça ao fim da tarde. Ainda vai descarregar o peixe, pede que a conversa seja uma hora mais tarde. Filho e irmão de pescadores, aprendeu a arte "desde pequeno" e voltou a ela agora, depois de uma incursão no ramo imobiliário chocar de frente com a pandemia. "Não consegui fazer negócio nos primeiros três meses, que é quando a agência paga 500 euros por mês para ajudas de custo. Ainda prolongaram mais um mês o pagamento mas resolvi sair porque não se estava a vender nada. Fiz bem, porque logo a seguir pararam todos."
Com um filho a fazer um ano em abril e a mulher, que trabalha num infantário, em casa por este ter fechado e sem saber quanto vai receber - "Não sabemos ainda se o ordenado total se uma parte" - Daniel não pode parar. Decidiu então começar a sair para a pesca, na zona de Oeiras, com o barco do irmão. "Ele agora sai menos porque tem de ficar em casa a tomar conta da companheira que teve um AVC. No barco somos só dois, eu e a pessoa que normalmente trabalha com o meu irmão. O que apanhamos mais é polvo. Também há sargo, robalo, corvina, mas não compensam tanto para a pesca profissional. Normalmente, com um investimento de 20 euros em gasóleo e entre três a seis horas de trabalho, dá para tirar uma média de 40 euros por pessoa por dia, não é mau."
Mas, frisa, ganha-se dia a dia. "É muito inconstante: dependemos do estado do tempo, das marés... E de ter quem compre. E agora com os restaurantes quase todos fechados é muito difícil. Tentamos vender a particulares. A vida está super difícil com uma incerteza brutal - amanhã não sei se consigo vender o polvo. Não temos como escoar o stock."
Acresce que, sem contrato de trabalho nem descontos, Daniel teme que os controlos apertem devido ao estado de emergência e o impeçam de ir para o mar. A voz calma antecipa o embate, se vier: "Se não deixarem é legítimo." Está compenetrado da gravidade da situação, que até o separou da mulher por uns tempos - tinham alugado uma casa, não fizeram a mudança completa e agora com isto, com Daniel a sair todos os dias, acharam melhor ela ficar em casa dos pais com o bebé, enquanto ele foi buscar a sua mãe, que vive só, para esta não ter de andar na rua a correr riscos.
"Acredito que não voltaremos à normalidade até ao final de maio, que as coisas vão piorar muito, se não cá pelo menos noutros sítios. Isto é um problema global, nunca ficará resolvido cá enquanto não estiver resolvido no resto do mundo. O principal risco é a população mais idosa e acho que não vão ter paz este ano e talvez no próximo. Mesmo que a maior parte da população possa voltar à vida normal, teremos de ter muito cuidado com os idosos."
A informação, diz, retira-a de assistir a muitas notícias e comentários de opinião de médicos, economistas. E fá-lo acreditar que "a crise económica vai ser muito grande." Como vai lidar com isso não sabe - não saberá ninguém, na verdade.
Pela parte que lhe toca, Pedro Rodrigues Costa está a tentar obviar a isso, a essa crise avassaladora que se adivinha. Os seus dias aliás não mudaram quase nada: acorda todas as manhãs bem cedo e vai para os pomares de pera rocha da família, porque "estamos na altura mais crítica do ano, é preciso sulfatar e podar, ou perde-se a produção."
São nove pessoas agora, ele e mais oito trabalhadores, para os cerca de 60 hectares. O avó, de 79 anos, costumava andar com eles mas agora "está mais resguardado em casa", e o pai, na casa dos cinquenta, como é asmático, "tem evitado vir".
Para os que continuam no labor a grande diferença, para além de "cada um ter o seu gel desinfetante e luvas" - Pedro preocupa-se porque está difícil arranjar o gel e o álcool; chegou mesmo a haver falta de sabão azul e branco nas lojas da zona - tentarem lavar as mãos muitas vezes e trabalharem "mais afastados", é que não vão tomar café juntos nem podem almoçar fora de casa. "Está tudo fechado, aberto só ficou o supermercado e a loja de químicos."
Foi isso, acha Pedro, de 23 anos, a levar finalmente as pessoas da sua aldeia, Painho, no concelho do Cadaval, a "começarem a perceber o que se passa. Nas aldeias é complicado, porque acho que só percebem mesmo quando houver um caso de infeção ou morrer alguém conhecido."
Ele os pais vivem na mesma casa, perto da dos avós, com quem tentam não se misturar. Mas têm com eles a tia-avó de Pedro, com 85 anos: "Ela estava a morar sozinha e magoou-se, fomos buscá-la e agora quando isto começou não conseguimos pô-la em lado nenhum. Ainda pensámos num lar, mas já percebemos que é pior. Assim está connosco e praticamente não sai." Como precaução, no fim do dia de trabalho Pedro despe a roupa à entrada - "Sempre tive esse hábito, mesmo antes disto, porque vimos todos sujos do campo" - e vai logo tomar banho. "Já me aconteceu até tomar banho quando vou a casa almoçar."
Não sabe se as outras pessoas têm os mesmos cuidados em casa, mas na rua nota grande diferença no movimento de pessoas e de carros: "No outro dia fui às Caldas e cruzei-me com três. Normalmente seria impensável. Acho que apesar de tudo as pessoas estão a seguir as orientações do governo." Até a fábrica do famoso pão-de-ló do Painho, propriedade de um parente afastado de Pedro, está a funcionar apenas quando há encomendas; as funcionárias estão em casa e vão trabalhar apenas quando são chamadas. Na região, a laborar em pleno sabe pelo menos da central fruteira. "Estão a embalar a fruta para ir para os supermercados e exportar, há mil e tal toneladas para mandar para fora nesta altura. Trabalham lá umas 80 funcionárias. Medem a temperatura à entrada, andam com máscaras, desinfetam as mãos, não trabalham ao pé umas das outras e evitam ir à casa de banho."
Muito mais a sul, numa fábrica na zona de Sines, é a António, na portaria, que cabe a tarefa de medir a febre à entrada. "Começámos desde a semana passada. Temos um termómetro que é só encostar à testa e um acrílico a proteger o balcão, com um buraco por onde metemos o termómetro." Ninguém é excecionado: "O maior responsável da fábrica chega aqui, sai do carrinho e vem medir a temperatura. E fazemos também um questionário, com perguntas sobre se a pessoa esteve fora, se foram investigadas em relação a terem Covid-19. Se responderem sim pode ser recusada a entrada."
As fábricas da zona adotaram medidas idênticas, garante, e "ninguém reclama nem resiste. Creio que as pessoas têm noção." Nesta há de momento cerca de 50 trabalhadores. O pessoal administrativo está em rotação, ou seja, trabalham uns enquanto outros ficam em casa, e tudo o que era pessoal externo deixou de poder entrar.
Além do desinfetante , de máscaras e luvas disponíveis para quem quiser (António não usa máscara nem luvas, viu a diretora-geral da Saúde dizer que não é necessário, só passa a vida a lavar as mãos), a fábrica tem "uma caixa de isolamento" para se alguém tiver sintomas ser lá colocado, à espera de que os serviços de saúde venham buscar. E apesar de as encomendas terem descido continuam a vir umas duas dezenas de camiões todos dias buscar carga.
António foi um dos muitos que respondeu "presente" à pergunta do DN no Twitter sobre quem continua a trabalhar fora de casa após declarado o estado de emergência. Também a mulher continua a sair: trabalha num lar e agora vai até passar lá semanas inteiras. "Acabou de me ligar a dizer que vai lá haver uma reunião porque a ideia é ficarem sete de turno durante oito dias seguidos sem sair, depois vão para casa e vêm as outras. Estou muito contente." Ri. "Claro que estou a brincar. Vou ficar sem a minha mulher, estou chateado. Mas tem de ser, é o plano de contingência."
O mesmo plano aplicou a rede de supermercados Pingo Doce, na qual trabalha Alexandre, 29 anos. "Temos uma rotação: 50% estão a trabalhar 10 dias, enquanto 50% estão em casa, em isolamento. Depois trocamos." Há ano e meio neste trabalho, viu o contrato recentemente renovado. "Não é um bom período para despedir porque sim. O negócio aumentou neste ramo e com metade das pessoas em casa até falam em contratar mais."
Alexandre é repositor mas também trabalha na caixa quando é preciso. Agora está em casa, na rotação de quarentena, voltando daqui a uns dias ao trabalho. Confessa ter medo. "Acho que é muito comum, até os colegas mais valentões, machos, estão com receio. E eu vivo com uma tia que tem mais de 70 anos e bronquite, temo poder infetá-la. É certo que há menos gente e menos movimento nas lojas porque deixam entrar menos gente de cada vez, nesse aspeto não está mal. Mas moro longe - trabalho numa loja em Lisboa e a minha casa é em Sintra - e tenho de apanhar comboio e metro, demoro mais de uma hora para cada lado. Tento não agarrar nada, não pôr a mão nos corrimãos, mas é difícil evitar tocar em coisas." Ainda assim, não planeia usar luvas nem máscara no percurso. "Ouvi dizer que não adianta muito. E as recomendações que temos do Pingo Doce vão no sentido de não se usar luvas nem máscaras."
No mesmo setor que Alexandre trabalha Ana Paula Antunes, 48 anos, igualmente receosa mas determinada a não deixar esta peculiar frente de batalha.
Dona da mercearia O Cantinho, no Montijo, conta os últimos 15 dias como dos mais intensos em 31 anos de negócio. Do dia para a noite, viu-se procurada por um volume anormal de clientes, que tentavam abastecer-se de todo o tipo de bens para os dias de isolamento. "Logo na semana em que se soube que as escolas iam fechar, parecia que o mundo ia acabar. As pessoas queriam comprar tudo e mais alguma coisa. Papel higiénico, álcool, detergentes, sabão azul e branco, muita fruta, pão, leite. Até o vinagre de cidra teve uma procura doida, porque há quem diga que também serve com desinfetante. Tive clientes que nunca tinha visto. Houve um aumento de 60 a 70%". Muitos queriam também saber se a mercearia ia continuar aberta e a resposta foi sempre a mesma. "Se me deixarem, sim".
Não esconde, no entanto, que face ao aumento de casos de infeção cá e às notícias terríveis que chegam de Itália e Espanha, houve um momento em que colocou nos pratos da balança acautelar a sua saúde ou manter a porta aberta. Sentir que este era um momento em que fazia falta aos clientes, especialmente aos mais idosos, acabou por tornar mais fácil a decisão. "Tenho consideração por todos os clientes, sem exceção, mas sei que há pessoas com mais idade que precisam deste apoio mais próximo. Esses clientes mais velhos podem fazer a sua encomenda e trato dela ainda antes de abrir portas. Depois a minha filha leva-lhes tudo a casa. São pessoas com quem lido há muitos anos e, nesta altura, temos de ter respeito uns pelos outros e ajudarmos no que estiver ao nosso alcance".
Por outro lado, manter as portas abertas é também a única forma de garantir o seu rendimento: "Não tenho empregado e não pago renda porque a loja é minha, o que até é uma mais-valia, mas tenho todas as outras despesas do meu dia a dia como a segurança social, a renda de casa, água, luz e outras. Se a loja fechasse ficava sem rendimento, sendo que o meu marido, que é agricultor, também viu fechar portas muitos dos locais que fornecia como restaurantes e infantários".
Na passada quinta-feira, dia em que foi aprovado na Assembleia da República o decreto do estado de emergência, teve a certeza de que o seu espaço comercial poderia mesmo continuar a funcionar, tendo, no entanto, optado por abrir apenas no período da manhã, das 7.30 às 13. "O que estava acontecer é que, com o aumento da procura, ficava sem tempo para ir ao armazém e fazer a reposição dos produtos. Tinha de ser pela noite dentro. É também uma forma de não estar tão exposta a tanta gente durante o dia."
Nessa altura já tinha em vigor medidas de contingência próprias: só deixava entrar na loja um cliente de cada vez. "A esmagadora maioria das pessoas aceitou isso bem, mas há sempre uma meia dúzia que reage mal. Houve quem dissesse que estava bêbeda ou que não estava boa da cabeça por só deixar entrar uma pessoa de cada vez na loja." Houve também quem valorizasse o que está a fazer. "Atendi um cliente, agradeci e ele respondeu: 'Obrigado eu Paula, porque você está aqui exposta, tal e qual como os profissionais de saúde também estão, para nos ajudar'".
Até agora, não sentiu qualquer dificuldade no fornecimento, mas, por outro lado, tem assistido à subida do preço de alguns produtos, entre eles a fruta. Nessa subida de preços há um item que se destaca: "O pouco álcool que se arranja é a um preço exorbitante. Anteriormente, vendia cada frasco a 80 cêntimos e agora já não consigo vender por menos de três euros. No máximo consigo receber uma caixa por semana (24 frascos), que dividido pelos clientes".
Também Guilherme Lopes, 42 anos, trabalha num setor essencial, o do abastecimento de águas, fazendo manutenção preventiva e reparações nos equipamento eletromecânicos - as bombas que garantem a pressão da água nas nossas torneiras. "Temos de trabalhar todos os dias. A parte mais crítica é deslocarmo-nos dois colegas num carro, porque temos de usar o carro da empresa. Temos o cuidado não falar um para o outro e não tossir. Requer que os colegas tenham confiança um no outro."
Já nas instalações propriamente ditas - tanto fazem manutenção em Cascais como no Alentejo - não comunicam com ninguém: "Entramos, fazemos o nosso trabalho e vamos embora." Leva cada um a sua marmita para almoçar e passam o dia a desinfetar as mãos. À chegada a casa, onde "somos todos saudáveis, eu, a minha mulher e os dois filhos, o fato de trabalho é despido à porta".
O mesmo faz José Carlos Magalhães: "Tiro a roupa toda à porta, os sapatos ficam ali e vou logo para o banho." A grande preocupação são os filhos bebés, dois gémeos de oito meses que nasceram prematuros. A mãe, advogada, está em teletrabalho; o pai, 39 anos, trabalha numa tabacaria em Gondomar. Puseram o balcão à porta desde quinta-feira 19, mas aguardam a chegada de uma divisória de acrílico. "A empresa que fabrica, que é de Santo Tirso, está com muitos pedidos, deve chegar ainda esta semana." Enquanto não chega, usam luvas e máscaras, que a gerência renova diariamente para os três funcionários que continuam a trabalhar, apesar de se estar "a vender tudo muito menos, à exceção dos jornais, porque as pessoas costumavam ir ler os disponibilizados nos cafés e agora não podem. O jogo preferido dos velhinhos, que é a raspadinha, tem um rombo incrível."
Ainda assim, no horário mais curto que agora pratica, a tabacaria continua a ter como clientes vários idosos, "10 ou 15, os mais antigos que antes vinham sempre e continuam a vir, saem à rua todos os dias." Um deles tem 92 anos e contou que quando um polícia na rua o quis mandar para casa lhe respondeu "porque não vai você?" José Carlos tem riso na voz. "Sabemos que não devem sair, mas que se diz a uma pessoa desta idade? Ainda por cima está ótimo de cabeça."
Não é fácil estar fechado em casa; sê-lo-á menos ainda para quem não sabe quanto mais tempo poderá viver. O cliente abrantino de Diana Tomás é exemplo: com 88 anos e problemas cardíacos, continua a sair todos os dias. É o marido da senhora acamada devido a um AVC a quem Diana, 35 anos, presta diariamente, incluindo ao fim de semana, cuidados não médicos - higiene, colocação de fralda - depois de ele ter deixado de conseguir fazê-lo. "Ela tem também bronquite. Vou sempre de máscara, claro - tenho de ter todos os cuidados - e disse ao senhor que quando anda por aí não cumprimente nem fale com ninguém. Mas vai todos os dias à padaria e de dois em dois a um restaurante com quem tem avença para ir buscar as refeições. Ofereci-me para fazer as compras mas ele quer sair. Até percebo, com esta idade estar fechado em casa não se sabe até quando é muito difícil."
Formada em Antropologia, Diana fez investigação académica até há muito pouco tempo, quando o último contrato com uma instituição universitária acabou. Numa dessas investigações tinha ido a lares fazer entrevistas a idosas e essa experiência mais a de ter de cuidar da avó, acometida de cancro, fê-la perceber a necessidade e importância de cuidados não médicos: "Dei-me conta de que tempo passado em família é melhor quando há uma pessoa externa que vai lá cuidar, porque as pessoas não ficam tão sobrecarregadas. Que é um serviço muito importante."
Resolveu então mudar radicalmente de vida, no final de 2019. Tinha encontrado os primeiros clientes - o casal em causa - quando a pandemia lhe caiu em cima. "Estava a fazer divulgação em cafés, cabeleireiros, etc, e agora está tudo fechado. Também dava explicações a duas crianças que com as escolas fechadas foram para casa dos avós." Sorri: "Não deviam, mas há muitos casos destes, de crianças entregues a idosos, algo que é tão desaconselhado pelas autoridades de saúde."
Pedro Mendes certificou que tal não sucede com os seus filhos: vai para duas semanas que cortou o contacto físico dos pais com o resto da família. "Eles estão na casa dos 70 e vivem numa zona de campo. Vamos lá de carro e eles veem-nos e aos netos - tenho dois gémeos de três anos - ao longe, a sete ou oito metros de distância. Também lhes tratamos das compras."
Para mais Pedro, de 34 anos, gestor comercial de uma empresa de componentes para calçado, movimenta-se exatamente na zona onde a epidemia entrou em Portugal, o eixo Felgueiras/São João da Madeira, e escapou por um triz à infeção em Itália. "O meu trabalho é no epicentro da desgraça e estive em Milão numa feira de calçado, entre 17 e 20 de fevereiro, cheguei numa quinta-feira e nesse fim de semana apareceram os primeiros casos lá. Apanhei um susto."
Procurou, dentro do que eram as indicações na altura, diminuir os contactos, mas não pode interrompê-los totalmente. "Deixei de cumprimentar as pessoas com um passou bem, e se antes fazia umas 20 reuniões por dia, agora só tenho quatro ou cinco, que são mesmo urgentes. Trabalhamos bastante com o mercado alemão e holandês e estamos a fazer desenvolvimento da coleção de inverno. É preciso levar as maquetes aos clientes, tem de ser presencial porque obriga à discussão de pormenores. Quando envolve maquete desinfetamos a maquete e o cliente fica com ela, só passa uma vez de mão." Corre riscos, claro. Mas empresa para que trabalha está "a meio gás" e na rua só anda ele, a ver se consegue que não pare mesmo tudo: "É um trabalho solitário."
Entre as muitas pessoas a trabalhar fora de casa que o DN ouviu estão também condutores de reboque que passam o dia sentados no reboque sem nada que fazer mas a quem os patrões não mandam para casa, funcionários de empresas que fabricam etiquetas - para medicamentos, por exemplo - e de acessórios de caixilharia, do Instituto de Registos e Notariado. Dependem de ordens superiores para parar ou continuar e mesmo contrariados continuam a fazer o que lhes mandam. Não é o caso de Celeste Pita, proprietária de um cartório em Sor, distrito de Coimbra. "Não podemos fechar, porque temos uma vertente de serviço público. Somos os únicos a fazer testamentos e somos obrigados a assegurar. E até tem havido algumas escrituras, sobretudo de prédios rústicos - fi-las todos os dias na semana passada."
Ser hipertensa e fumadora coloca-a em grupo de risco e tem um filho diabético a viver consigo, "fechado em casa", mas Celeste, de 53 anos, começou a tomar as suas precauções há três semanas: "Deixei de cumprimentar as pessoas com aperto de mão ou beijo. E há duas semanas comecei a carregar nos cuidados de higiene: usamos muito desinfetante e álcool e lavamos muito as mãos." Não usa máscara, porém. "O que fazemos é ler os documentos em voz alta, toda a gente tem de ouvir, e com a máscara posta não dá." Também não dá para não pegar nos cartões de cidadão, mas começou a pedir às pessoas que tragam as suas próprias esferográficas, para que não passem de mão em mão, e tenta tratar dos documentos necessários via mail.
Quanto aos pais, que têm mais de 75 anos, estão a seu cargo. "Tenho uma senhora a tomar conta deles e a filha é que está a fazer-lhes as compras. Eu não me aproximo - passo por lá ao longe, fico à porta. É estranho, muito estranho. Sinto-me num daqueles filmes apocalípticos e não gosto, quero sair do filme." Dá uma gargalhada. "Mas tento não ser vencida pelo medo. Tenho uma prima que trabalha num hospital como auxiliar e diz que todos os dias tem todos os sintomas, acha que está infetada, mas quando faz o teste não está. A mim também me acontecia chegar ao cartório e começar com tosse. É psicológico, acho. Mas vejo a febre todos os dias." Dias estranhos apanharam-nos, diz a canção. "Vão destruir as nossas alegrias / Teremos de continuar a jogar ou encontrar uma nova cidade."