Se tivesse de escolher três grandes desilusões na vida de Vasco Pulido Valente após a maratona de 43 entrevistas que lhe fiz durante 15 meses (15.10.2018 a 20.01.2020), diria que a primeira seria uma grande frustração por não se ter tornado o ideólogo de uma direita portuguesa a partir da Revolução de Abril. Desejava-o e a sua presença intermitente na vida partidária nos primeiros anos de democracia confirma essa intenção após ter regressado definitivamente a Portugal depois do fim do salazarismo e ter-se envolvido na construção por uma nova sociedade em que o Partido Social Democrata (ex-PPD) teria um peso importante e definidor..Acreditou que Sá Carneiro daria corpo a essa ideologia, mas a morte do líder do PSD a 4 de dezembro de 1980 num acidente aéreo fez cair por terra qualquer esperança, mesmo que depois se tenha aproximado politicamente e como conselheiro de Mário Soares e do Partido Socialista por via da sua convicção antimilitarista - contra a manutenção do Movimento das Forças Armadas na vida política em vez de regressarem aos quartéis após o golpe e da eternização do Conselho da Revolução - e numa posição anticomunista que logo previu ser necessária após assistir à chegada de Álvaro Cunhal a Lisboa, poucos dias após a queda do regime..Apesar de ser um partidário e admirador de Sá Carneiro, Vasco Pulido Valente não o poupou quando fez o seu balanço - nos últimos 15 meses numa série de 43 entrevistas por publicar - sobre o dirigente do PSD. Considerou a sua morte um "acidente idiota" e culpa Sá Carneiro pela "teimosia" em meter-se numa avioneta que sabia não estar em condições de voar para um comício no Porto, nas vésperas das eleições presidenciais que opunham dois militares, Ramalho Eanes e Soares Carneiro. Não hesitou em considerar que Sá Carneiro foi responsável pela própria morte e o fim de um projeto político que não teve seguidores à altura: Pinto Balsemão era "medroso" e deixou cair todas as bandeiras do PSD, como a saúde e a educação, bem como a lista de dirigentes que lideraram o partido até à morte do historiador no passado dia 21 e que nunca estiveram à altura da missão política, designadamente Rui Rio, de que dizia ser incapaz para ser oposição e ter ideias mobilizadoras..Segunda desilusão.Se o fim de uma carreira política se desmorona com o acidente aéreo de Sá Carneiro, Vasco Pulido Valente irá dedicar-se posteriormente a duas atividades principais: a de historiador e a de cronista político. Morrerá insatisfeito com qualquer uma delas, ao confessar que deveria ter-se empenhado apenas na investigação histórica e esquecido o comentário na imprensa. A sua paixão pela história do século XIX à I República, dizia, deveria ter acontecido a tempo inteiro em vez de se distrair com a análise da sociedade portuguesa, mesmo que se tenha tornado o cronista político mais influente da democracia. Não foi por acaso que todos os obituários o referiram nos minutos após ser pública a sua morte. Ao fim de várias décadas de exercício de uma coluna política muito influente, numa longevidade que poucos conseguiram manter nos últimos 45 anos, Vasco Pulido Valente considerava que a imprensa escrita estava a perder terreno para o comentário televisivo e essa situação provocava-lhe uma terceira desilusão..A marca do seu comentário político impõe-se com força nacional em muito através da coluna no jornal O Independente. Onde coexiste com uma redação de jovens como Miguel Esteves Cardoso e Paulo Portas. Sobre esse período disse nas entrevistas inéditas: "O Miguel dava àquele jornal uma graça, um picante e um inesperado que os outros jornais não tinham. Eu era o mais velho mas não me sentia mal porque eles tratavam-me como um igual. Até me sentia bem entre eles. Foi um grande investimento, meteram lá uns 20 mil contos ao princípio e no fim dos bons tempos aquilo valia dois ou três milhões. De maneira que os meninos eram autorizados a fazer de tudo. Tinham imaginação e queriam afirmar-se, apesar de que aquilo que eu escrevia nada tivesse que ver com o resto, mas como eles gostavam da minha coluna não tive grandes problemas.".O "inimigo" Mário Soares.As polémicas colunas de Vasco Pulido Valente criaram-lhe uma grande lista de inimigos, sem reações na justiça. Quando se lhe perguntou sobre essas inimizades, afirmou: "Criei muitos inimigos com essa coluna. Não me dava prazer, criava-os porque eles estavam ali e não me coibia de escrever o que pensava." Desses inimigos qual foi o maior? "O maior inimigo que criei - vou surpreendê-lo - talvez fosse o [Mário] Soares. Porque era muito sensível ao que se escrevia sobre ele nos jornais. E como os lia, ao contrário das outras pessoas, ficava zangado comigo, mesmo zangado. Zangado entre aspas, pois não deixava de me falar mas quando nos encontrávamos queria discutir as coisas comigo. Não sei quê, não sei que mais", recordou..Questionou-se se o problema de Soares era ficar com a posteridade beliscada? "Não. Não gostava que dissessem mal dele nos jornais, mesmo quando não tinha que ver com grandes problemas. O que não obstava a que escrevesse sobre ele nem às nossas relações", explicou. Telefonava-lhe a reclamar? "Não, nunca faria uma coisa dessas. Quando me encontrava é que falava. Ele gostava de discutir, mas via-se que estava zangado. E fez tudo sempre para impedir o meu reconhecimento, nunca me ajudou. Pior do que isso, impediu-me. Não vou queixar-me agora. Ao ficar zangado, era ao mesmo tempo uma espécie de homenagem que me fazia", esclareceu..O que disse Vasco Pulido Valente sobre a corrupção?.A corrupção que existiu nos últimos dois séculos em Portugal foi um dos assuntos que nunca esqueceu durante a série de entrevistas por publicar, como a que se instalou no país no pós-25 de Abril. Apesar de considerar que a "história política dos últimos anos não foi só de corrupção", o breve resumo em baixo confirma a sua preocupação..Além de Soares, quem ficou zangado consigo? Muitos, principalmente a rapaziada do Cavaco [Silva]. Não sei bem se ficavam muito chateados comigo, eles estavam tão cheios de si e achavam que tinham o mundo no bolso que, creio, ficavam só um pouco chateados. Eu não fiquei zangado com essa gente, pelo contrário, trataram-me depois muito bem. O Miguel Cadilhe e a Leonor Beleza trataram-me sempre bem, até porque eu os defendi nos jornais. Eles foram apanhados a fazer coisas que não tinham consequência nenhuma enquanto os gajos que fizeram as coisas com consequência, como os daquele banco que foi ao ar, o BPN, esses nunca foram apanha dos. Nem os dias loureiros nem o resto dessa gente. E andavam por aí a espanejar-se com ares de mandões..Porque nunca foram apanhados? Porque a sombra do Cavaco ainda era muito forte [no caso BPN] e grande, e eles beneficiaram disso. A justiça não ia tão longe como hoje em dia. Só quando o Partido Socialista pôs lá aquela senhora que apanhou o Sócrates [a procuradora-geral da República Joana Marques Vidal] é que aquilo virou um bocadinho. Era extraordinária. Eu disse ao Cavaco na primeira vez que falei com ele - nas presidenciais que perdeu para o Jorge Sampaio - o seguinte: eu apoio-o de alma e coração mas isto está a saque. Quero um polícia, porque não percebo o que se passa nos bancos e das transferências e o senhor percebe. Eu quero que o senhor apanhe esses gajos. Uma das coisas que eu o avisei foi a respeito dos negócios e da corrupção que havia. Mas ele disse que ia fazer tudo e não fez nada. Que ia fazer isto aquilo e aqueloutro, que iria ser implacável e que faria uma lei disto e outra daquilo. Fico sempre desconfiado quando eles começam a dizer estas coisas. Normalmente não fazem nada e foi o que ele fez: nada..Foi melhor primeiro-ministro ou Presidente? Foi melhor primeiro-ministro. Não podia ser de outra forma porque como Presidente ele não tinha nenhuma função executiva a não ser a de assinar os decretos. Ele não era mais nada e não tinha ideia nenhuma do que queria fazer com aquele cargo..Quando começa a grande corrupção? É no governo de Guterres. Começa antes, mas no governo de Guterres é que aquilo explode. Diria que começara com Cavaco, parece-me. Acho que os grandes negócios se tramaram na altura do governo de Cavaco e depois começaram a organizar-se calmamente de forma legal no governo de Guterres. Ao princípio de ser primeiro-ministro, ele dependia um pouco do cunhado para essas decisões fundamentais com os bancos e os organismos estrangeiros. E a seguir aquilo tinha-se tornado uma prática comum. Eles faziam coisas porque se achavam no direito de as fazer e combinavam enquanto estavam a jantar uns com os outros. A corrupção começa nessa época [de Cavaco Silva] e quando veio o Guterres já estava estabelecida..Quem são os principais beneficiários? Os principais beneficiários estão na classe política e nas pessoas que estão pelo meio: os amigos. Nunca percebi porque Guterres deixava fazer aqueles negócios. É uma situação ultracomprometedora e em que nunca tocou..Guterres era ingénuo ou conivente? O Guterres é, sobretudo, incompetente. Faz aqueles discursos muito bonitos sobre a educação, os direitos do homem e sobre o clima, mas é o máximo até onde ele vai porque é um incompetente. Até executivamente era um incompetente no governo dele havia de 15 em 15 dias uma crise porque não se tomavam decisões no governo. Toda a gente dava conselhos sobre como tomar decisões ao primeiro-ministro. E não houve nada, tirando aquele arranque a propósito de educação e das políticas educativas, aliás muito discutíveis. Não houve nada no governo dele! O PS estava há dez anos fora do governo e nada houve de afirmativo no governo dele, nem claro ou mobilizador. Foi um governo fraquíssimo. Ele convidou-me para entrar na campanha e perguntou-me o que deveria fazer. Olha, disse-lhe, "emagrece dez quilos e deixa de deitar os pés para fora". Ele deita os pés para fora quando anda. Assim [faz o gesto]. Ele estava naquelas fases de obeso e disse-lhe: "Estás a perder mais votos porque estás gordo e a deitares os pés para fora." Até arrepiava..E Durão Barroso? Com esse quase nunca estive. Achava que era um governo de meninos bem e de amiguinhos. E a saída de Durão para Bruxelas foi impensável, também em grande parte culpa do Jorge Sampaio porque não disse ao primeiro-ministro dele "esteja quieto porque eu não admito isso"..Vale a pena escrever sobre Sócrates? É uma perda de tempo, já ninguém se interessa pelo Sócrates. É um erro completo, ninguém se interessa pelo Sócrates, ele está morto e arrumado. Ninguém pode andar nas bocas do mundo como ele andou e sobreviver. Ninguém lhe toca, é ainda pior do que estar morto. Deve ser uma coisa horrível. Vê-se o Sócrates e dá-se três pulos para trás. E toda a gente faz isto, desde o chofer de táxi ao Presidente da República, ninguém quer aquele homem por perto sob que pretexto..O que fica destes tempos mais recentes? Não façamos da história política portuguesa destes últimos anos uma história da corrupção, porque não foi assim. Durante o Cavaco foi o tempo de criar e enraizar as grandes instituições do país, desde a bolsa ao Ministério Público, da universidade ao ensino secundário, etc. O problema é que a maior parte das coisas escapavam ao Cavaco, que não tinha opiniões nem tinha opiniões sobre as pessoas que tinham opinião.