Os nomes.Nasce José Manuel Rodrigues Berardo, na freguesia de Santa Luzia, no Funchal, a 4 de julho de 1944, "numa Madeira conservadora e onde a pobreza era lugar-comum", como descreve uma biografia de Berardo, no site da Coleção Berardo. José Manuel nasce quando os pais não esperavam, o sétimo filho de uma mãe com 46 anos: "Fui o restinho." Filho de Manuel Berardo Gomes e Ana Rodrigues Gomes, José Manuel ganha o nome de família que só o irmão Jorge tem. Todos os irmãos mais velhos são Gomes de apelido. A família perdeu as suas economias em 1931 com a falência do Banco Henrique Figueira..Recuperada desse "contratempo financeiro", a família muda-se para uma nova casa em Santa Luzia e recupera um nome de família que não tinha usado para os dois rapazes que aí nascem - Berardo. José Manuel faz a 4.ª classe no Externato São Luís, na freguesia onde morava. Antes de deixar os estudos aos 12 anos (preferia as brincadeiras na rua), o rapaz Berardo frequenta um curso de Contabilidade, durante um ano e meio, na Rua da Carreira, no centro do Funchal..Os empregos.Aos 12 anos começa a trabalhar na Madeira Wine Company, a mesma em que trabalhava o pai, como loteador. José Manuel era paquete, rotulava garrafas, servia cafés e chás nas reuniões da administração da empresa ainda hoje associada a uma das históricas famílias do vinho da Madeira, os Blandy. Diz a biografia já citada que é "através de conhecimentos, que travou nessa altura, com pessoal dos navios, [que] começa a comercializar artigos vindos de fora, junto aos quadros superiores da empresa, e pouco tempo depois ganhava já mais do que seu pai. No entanto, isso não era suficiente, para a sua ambição"..Para José Manuel, o pai tem de ser contrariado: sonha em emigrar, ao ver como estavam bem na vida os que emigravam para o Brasil, a Venezuela e a África do Sul e que vinham de visita à ilha; e escolhe este país como destino, contra a vontade progenitora. Na África do Sul, não tinha familiares e ele queria começar "uma vida completamente nova e à sua maneira". Em 1963, embarca no navio Moçambique, com mais 40 rapazes. A bordo seguem centenas de mulheres expulsas pelo regime de Salazar, depois da proibição das "casas de lazer". A viagem até Lourenço Marques, hoje Maputo, torna-se "assim memorável". Tem 18 anos..Os negócios.Acaba por só chegar em novembro de 1963 a Joanesburgo, sem falar inglês, depois de ter ficado retido meio ano em Moçambique (os documentos tinham sido cancelados). Recusa-se a dar o salto sem papéis e, durante a espera, ganha prémios como dançarino e trabalha na loja de um italiano, onde, "rapidamente", começa "a ganhar dinheiro vendendo eletrodomésticos aos indianos". De Joanesburgo parte para uma quinta a 400 quilómetros, num "camião sem condições"..A biografia segue no registo do homem que sobe a pulso: leva quatro anos a aprender as línguas nativas, o afrikaans e o inglês, e não tem tempo de calejar as mãos. Dos campos passa para as lojas e "num pulo" chega a gerente. Regressa à "cidade grande, Joanesburgo, graças ao contacto com um comerciante português de legumes, Manuel Teixeira. Em pouco tempo, torna-se sócio do patrão e vende ele próprio aos mineiros os legumes da sua loja. "Quando fui para a África do Sul disseram-me que José Manuel não dava. So, call me Joe. I know who I am.".As coleções.A ligação aos trabalhadores das minas traça o futuro de José Manuel. Tinha o dinheiro, cheira o ouro. "Quando ia fornecer as cozinhas, com batatas, tomate, verduras, eu via aquelas minas abandonadas", conta a Anabela Mota Ribeiro em 2007. Dedica-se à reciclagem dos desperdícios de minas e reativa-as. Alarga os negócios ao mercado bancário e bolsista. No início dos anos 1980 começa a comprar arte, ele que já juntava selos, postais de navios transatlânticos e caixas de fósforo, desde miúdo..A primeira obra que compra é, antes de se casar, numa loja de móveis, uma litografia de Mona Lisa, achando que era um original, como relata a Anabela Mota Ribeiro. "Fui comprar a mobília e tinha lá muitos quadros. Mandaram as mobílias para casa e quando passei a mão pelo quadro vi que não era original, que era um print. "Porra, o primeiro quadro que comprei e já me enganaram!" E a minha mulher, que era auditora, que tinha outro nível que eu não tinha, respondeu: 'Se quisesses comprar o original, tinhas de ir ao Louvre.' O Louvre? 'É um museu na França. Isso é a Mona Lisa.'".As raízes.Em 1969 casa-se com Carolina Gonçalves, filha de madeirenses emigrados em Joanesburgo, "uma paixão que dura até hoje" e que o tira de "uma assumida vida de boémia", ele que teve "uma juventude extraordinariamente noctívaga". Na África do Sul amealha uma fortuna, metendo-se em negócios que ajudam a engordar a sua conta bancária: diamantes, petróleo, mármores e granitos, telecomunicações, material informático (chips), papel e cinema, empregando mais de dez mil trabalhadores..Ensaia a política, onde passa pelo Partido Nacional, que governava o apartheid sul-africano. Diz que combate o regime por dentro, mas a violência leva-o a voltar a Portugal, entusiasmado com uma viagem do então presidente do Governo da Madeira, Alberto João Jardim. Diversifica os países onde faz negócio: Portugal (compra uma tabaqueira com o amigo Horácio Roque), Canadá (gás natural e vinho) e Austrália (minas). Para trás deixa o país que o acolheu por mais de duas décadas..Os milhões.Chega a Portugal, com a aura do self-made man de sucesso, uma imagem que colava bem num cavaquismo que procurava exemplos para o país, uma aura que vai alimentando com os negócios em que se mete: arte, vinhos, património, museus (há dois anos que anda para abrir um em Alcântara), cria a fundação com o seu nome, compra a Quinta do Monte, no Funchal. Anos mais tarde a Quinta da Bacalhôa, em Azeitão, Setúbal, é sua - e hoje a sua empresa (lê-se no site) está "presente em sete regiões vitícolas portuguesas, com 1200 hectares de vinhas, 40 quintas, 40 castas diferentes e quatro centros vínicos (adegas)"..A comunicação social descobre um homem que mistura o inglês e o português numa mesma frase, o país político condecora-o (depois de Ramalho Eanes lhe ter dado em 1979 a comenda da Ordem do Infante D. Henrique, Jorge Sampaio atribui-lhe o grande colar dessa ordem em 2005), a banca empresta-lhe dinheiro, estabelece a Coleção Berardo, que mais tarde vai morar para o Centro Cultural de Belém..Os buracos.Em 1997 perde dinheiro na bolsa. Dez anos depois manifesta um desprendimento quase acintoso para os quase dez milhões de portugueses (a crédito é mais fácil): "Como é que podia perder dinheiro se tinha tanto? No fim do apartheid, quando cheguei ao meu objectivo, perdi o tesão da África do Sul. Parti para outra. E dei instruções aos meus advogados to sell at the best price. Quando decido vender tudo, sabia que não queria continuar na África do Sul. Parto do princípio de que nada nos pertence. Nós viemos naked e com vida, e quando se vai, vai-se vestido, mas sem vida.".Verdade seja dita: o desprendimento é possível a quem, nos estatutos da sua fundação, definia que esta tinha de prover "habitação, sustento, despesas com saúde, com educação, com alimentos, demais despesas e encargos do fundador, do seu cônjuge e dos seus dependentes", como contava O Jornal em 1989. "Pessoalmente, não tenho dívidas", disse no Parlamento a 10 de maio de 2019, na comissão de parlamentar de inquérito à Caixa, onde se riu muito do país, nas respostas aos deputados. Estava escrito, não é de agora..Processo disciplinar ao empresário.O Conselho das Ordens Nacionais (CON) abriu esta sexta-feira um processo disciplinar a Joe Berardo para analisar eventuais infrações do empresário aos deveres de titular da Ordem do Infante D. Henrique. A existirem, isso poderá levar à retirada das suas condecorações. Na reunião que decorreu no Palácio de Belém, o CON "emitiu parecer favorável à instauração de um processo disciplinar" a Joe Berardo devido às declarações que prestou perante a comissão parlamentar de inquérito à gestão e recapitalização da Caixa Geral de Depósitos - e "tendo em conta a posição daquele órgão de soberania". O Parlamento concluiu que "a conduta e a natureza das declarações" feitas por José Berardo "podem ser consideradas matéria relevante para avaliação do cumprimento dos deveres legais dos membros das ordens".