"As pessoas não conhecem a face oculta de Ingmar Bergman"
A escritora Cristina Carvalho lançou há dias o seu mais recente romance. Um "Romance Biográfico", está escrito na capa, onde o rosto do realizador Ingmar Bergman indicia ser o tema de O Caminho Contra o Vento. E basta dar início à leitura para se perceber que é mesmo sobre o sueco de filmes mágicos e intemporais, conforme esta entrevista prova.
Um livro onde acontecem diálogos entre escritora e realizador, porque aquela não resiste a conversar com Bergman, pois só assim poderia escrever o romance. Explica: "Quando gostamos uns dos outros, conversamos. Eu tinha de o interrogar e ele tinha de me responder. E respondeu sempre. Eu falo sempre com as minhas pessoas ou vivas, ou mortas, ou ficcionadas. Tenho de as compreender. Ponho-me sempre ao lado delas e, como não posso tocar-lhes nos corpos, toco nas coisas que foram seus pertences. E a partir dessa sensação, materializo uma data de situações, umas mais agradáveis do que outras. Conversei muito com Ingmar Bergman, todos os dias e parte das noites durante mais de um ano. O resto não vale a pena estar a descrever porque já pertence ao reino do exagero e não tem interesse nenhum. São coisas nossas. Mas sim, claro, só assim podia escrever o romance."
Para que a ambiência fosse real, Cristina Carvalho deslocou-se ao último lugar que Ingmar Bergman escolheu para viver. "Quando desembarquei na ilha Fårö - Gotland Län, depois de um dia inteiro de viagem e ainda sem ter visto nada, nunca imaginei o que ia encontrar. Cheguei no fim de um dia quente com o Sol ainda alto e a primeira paisagem que vi foi uma pequena enseada do Báltico, rodeada de árvores, uma pequena e densa floresta e muitos cisnes no cascalho da praia, uns a entrar no mar, outros a bambolearem-se por ali naquele redondo natural. Paz. Era a paz", resume, antes de acrescentar: "Não posso continuar aqui a descrever o que vi e o que senti senão daqui a pouco estou a escrever outro livro sobre a ilha de Ingmar..."
Era necessário viajar até à ilha de Farö para conhecer melhor Bergman?
Nos dias de hoje é possível viajar sem sair do lugar. Posso percorrer o planeta em poucos dias, demorar-me mais aqui ou ali, visitar museus, bibliotecas, jardins, quase que posso saborear refeições de todas as qualidades - lá chegaremos e já não deve faltar muito para cheirar, tocar, comer, enfim... Claro que podia ter escrito muito e muito pormenorizadamente sobre Ingmar Bergman sem ter ido à ilha, mas e como diz o anúncio, não era a mesma coisa. Por enquanto e não sendo ainda uma espécie de robô, tendo a possibilidade de ir, vou. Costumo ir aos sítios das pessoas sobre quem estou a escrever ou sobre qualquer ficção mesmo sem ser romance biográfico. Fui e ainda bem que fui. Tudo o que se pode sentir, estremecer, respirar no local é completamente diferente do que estar a navegar na internet. Assim, procurei conhecê-lo melhor a caminhar pelos seus caminhos, a entrar em sua casa, a fechar a porta, sentar-me na cadeira da cozinha ou na cadeira do escritório ou ainda deitar-me nas almofadas de lã perto da lareira da sala, tal como ele fez vezes sem conta. Olhar pelas janelas para aquele horizonte tão estranho, longínquo, solitário. Visitar o "celeiro-cinema", sentar-me no seu cadeirão e estender as pernas na banqueta, enfim, durante uns dias tentar recolher sensações que podem até tomar um aspeto um tanto religioso. E como a palavra - religioso - indica, tentei, na verdade, religar-me com essa pessoa que existiu e que está e estará tão próxima de mim, de nós.
A Ilha de Farö é um não paraíso. Porque esta escolha do realizador para viver?
Eu não sei se é um não paraíso. Depende do que se espera do paraíso. A escolha dele é profundamente interiorizada, é assunto físico, psicológico, está para além da compreensão imediata. São decisões incríveis, difíceis, é um desligamento do mundo ainda que não definitivamente pois deslocou-se muitas vezes, no decorrer da vida, para o estrangeiro ou apenas ao continente. Mas essa escolha de isolamento, naquela altura, naquela época, para um sítio sem recursos quase nenhuns foi, aparentemente, estranha. Fez amizades sólidas e desinteressadas com alguns dos seus habitantes, gente simples, e essa atitude transformou-o tão intensamente! A ilha, de facto, para quem aparecia ali pela primeira vez, não seria um paraíso. Não tem águas cálidas, nem palmeiras, nem areia dourada. E, no entanto, é bela! As longas praias são de cascalho e a solidão é a perder de vista. Depois, explodem do mar as gigantescas pedras como estranhas esculturas. E existe um certo cheiro no ar que talvez nasça na primavera e permanece todo o ano. Deve ser o cheiro dos blaed, essa florzinha rasteira que cobre algum chão, esse que se pisa todos os dias. Mas o que ele sentiu quando ali chegou naquele dia de abril, em 1960, o que sentiu por alguma razão que ninguém, nem ele próprio sabe, soube, foi segurança. Ele sentiu segurança e uma antiquíssima e primitiva atitude de vida. Sentiu e desejou. E esse sentimento nunca o tinha experimentado antes. Podia ter decidido partir, descobrir um outro local para filmar o que pretendia. Decidiu ficar. Para sempre.
Considera que Bergman teve uma "existência artística" e escreve "perguntam-me se consegui livrar-me do peso inconcebível da minha existência". Existência é a palavra-chave deste livro?
Sim, existência é a chave deste livro. Tentei, com muita vontade compreender o seu discurso e a sua atitude perante a vida. Os filmes que vi não chegam. Pelo contrário, ver alguns desses filmes fez sempre com que tivesse uma imensa curiosidade em tentar compreender e aceitar uma personalidade como esta. Gostaria muito, muito mesmo de o ter conhecido. Percebi que teve uma vida errante, uma infância extremamente difícil. Comecei a percebê-lo mais um pouco - foi como uma janela que começa a abrir-se devagar e deixa entrar a luminosidade - quando cheguei à ilha de Fårö. Lá está! Não dá para imaginar, é mesmo importante pisar aquela terra.
"Todos os mais próximos morreram, a começar pelas minhas próprias personagens." Que Bergman é este?
Este único Ingmar Bergman - porque nunca houve, nem há, nem haverá mais nenhum, as células não esvoaçam pelo ar para penetrarem em outros corpos, é uma pessoa angustiada com a existência, a incompreensão da existência, a eterna interrogação «quem somos, de onde viemos, para onde vamos». Acho que, como todos nós temos uma interrogação inata, natural, angustiante sobre a morte, ele também a teve. Um artista, alguém que traz a "arte" consigo poderá, deverá entender as situações de outra maneira. O que quero dizer com isto? Que as pessoas todas diferentes podem, perante a mesma situação, ter comportamentos e sentimentos diferentes. No caso do artista Ingmar Bergman, a convivência com a morte que um dia ocorreria esteve sempre presente e foi uma convivência de algum modo, avassaladora, inevitável. Sempre presente em todos os seus filmes, umas vezes mais subtilmente do que outras, mas sempre presente. Ele dizia que não tinha medo de morrer e acreditava que até podia ser uma experiência "engraçada" que um dia estaria pronto a enfrentar. Ingmar Bergman, na sua solidão, fez-me compreender e aceitar uma quantidade enorme de mecanismos de defesa, de luta e de recusa contra o fenómeno do nosso "aparente" (?) desaparecimento físico. Para onde vai o meu corpo, os meus ossos, o meu cérebro que me faz pensar? Responde-me, Ingmar, responde-me com essas tuas certezas apaziguadoras. Bastava-te olhar para as rochas e pressentir as correrias dos coelhos selvagens sob as tuas janelas.
"Dou dinheiro aos aldeões para que expulsem das minhas redondezas visitantes curiosos." Foi uma história que lhe contaram?
Sim, contaram-me. Um velho Fåröbor (habitante de Fårö) contou-me com conhecimento de causa. Mas, muito para além disso, está escrito nos seus papéis. Era assim: quando alguém chegava à ilha na intenção de o procurar para diversos fins, ou satisfazer uma curiosidade particular ou para entrevistar ou para bisbilhotar, os Fåröbor que eram muito seus amigos e o respeitavam totalmente, se o visitante perguntava se Ingmar morava para norte, eles respondiam que morava para sul e se perguntavam se morava para sul, diziam morar para norte. Trocavam as voltas muito bem trocadas. Na verdade, é extremamente difícil dar com a sua casa, Hammars. Os caminhos de terra batida pelo interior da ilha são todos parecidos, levam todos ao mar. Há um, contudo, que leva a sua casa. Mas é preciso descobri-lo. Quando eu fui, não estava sozinha. Altos responsáveis culturais em Estocolmo, com quem eu tinha tido contactos prévios, compreenderam a razão da minha viagem e facultaram tudo o que foi possível para me facilitar a visita. Tinha sido deslocada para me acompanhar uma senhora que fez a visita guiada a sua casa e a todo o Bergman Estate. Nos dias de hoje existe na ilha a Bergman Week no final do mês de junho que recompensa todos os amantes e admiradores de Bergman com exposições, concertos, filmes, enfim, assuntos relacionados com a sua vida.
Foi mais benévola do que pretendia para com Bergman nesta escrita?
Não fui benévola. Fui, na minha opinião, absolutamente justa. Estou convencida de que o compreendi e isso é o bastante para não fazer julgamentos precipitados. Detesto julgamentos infundados, esses baseados nos "diz que disse". Normalmente são erróneos e injustos. E cria-se a chamada "má fama", quando é o caso de ser má. Não se pode nem se deve dizer nada sobre ninguém e seja sobre o que seja sem averiguar primeiro ou tentar saber o que se passa, o que se passou. Foi o que eu fiz em relação ao julgamento que muitas pessoas fizeram sobre Ingmar. Averiguei e tirei as minhas próprias conclusões. Não fui benévola. Fui justa. E fui justa com ele e com a minha consciência. Foi uma fase difícil, devo dizer.
Os filmes de Bergman ainda são sedutores ou o tempo deixou-lhes uma marca?
Na verdade, acho que as mais maravilhosas obras da humanidade, sejam estas obras pinturas, esculturas, música, fotografia, literatura, cinema, etc, são sedutoras ad aeternum, permanecem para a eternidade. O tempo pode ter deixado já a sua marca indelével nas obras de Ingmar Bergman, mas este artista, jamais morrerá, tal como outros cineastas de categoria idêntica embora com outro tipo de observações. São sedutores, sim. São objetos com verdade. Acima de tudo, a verdade, a interrogação, a inquietação, a seriedade, a procura, os sentimentos humanos mais profundos, mais misteriosos estão em toda a sua obra quer como encenador de Teatro, a sua grande paixão, quer como realizador de cinema e escritor dos próprios guiões. A verdade é eterna.
Viu ou reviu a obra dele?
Revi e vi pela primeira vez alguns filmes, sim. Não todos, evidentemente. Ele fez dezenas de filmes...
Percebe-se que o mundo que o envolvia é fundamental para o que passou ao cinema. O que seria de Bergman sem essas memórias?
Ninguém existe sem memórias. São fundamentais para qualquer artista, para um cineasta neste caso. E mesmo que não seja um artista, para qualquer pessoa as memórias fazem parte de um todo da sua existência. Os animais também têm memória. Nós, os racionais, também temos e muito particularizada, muito minuciosa. Essa luz que nos traz a memória varre-nos, por vezes, a testa e inunda-nos o olhar, enche-nos de qualquer esperança, de uma qualquer felicidade que não sei bem descrever. Uma certa memória, ainda que muito indistinta e irreconhecível em certas alturas, num momento, num átomo de momento pode condicionar toda a nossa atuação futura, condicionar o nosso comportamento. Lembramo-nos de acontecimentos longínquos, tão longínquos já perdidos nas brumas da Via Láctea, mas que aconteceram! Enfim, para não me alargar nem entrar por um campo importante, mas descabido nesta conversa, retomo-a dizendo e afirmando que foi por causa de um momento, de um sopro momentâneo de memória que Ingmar Bergman, ao pisar pela primeira vez o chão daquela ilha, pensou que nunca mais iria sair dali. Foi por isso. Eu também sinto isso, às vezes. Todos sentimos, mas não conseguimos explicar com inteligência, conhecimento e coerência. Somos, apenas, humanos cheios de lembranças. Às vezes lembro-me de quando eu estava à boca da minha caverna a roer um osso ensanguentado de um qualquer animal para me alimentar... Não é?
Relata o momento em que Bergman leva uma bofetada da mãe. Não o faz por acaso?
Não escrevi nada por acaso, neste romance. Na minha cabeça, ainda que nada estivesse planeado nem tivesse um rumo traçado, tudo o que fui escrevendo, foi-me aparecendo. Acho que se nota isso. Este romance não tem uma sequência datada, nasceste aqui, depois cresceste, depois aconteceu isto e aquilo, sempre no seguimento da vida. Não, isso não. Chegou o momento em que podia e devia falar da bofetada que a mãe lhe deu lá na entrada do Teatro e ele já tinha quarenta e tal anos. Tinha de falar nisso. Era impossível não mencionar esse gesto que revelaria e ajudaria o leitor a perceber muitos mais coisas da vida dele.
"Quis torná-lo mais visível no aspeto humano". Satisfeita com o retrato feito ou Bergman escondeu-se sempre que lhe possível?
A ideia, a impressão que tenho - posso estar enganada - é que a maior parte das pessoas conhece Bergman pelos filmes, pela sua atuação no Teatro, por alguns livros. As pessoas não conhecem a face oculta de Ingmar Bergman, tal como eu não conhecia até começar a ler, a investigar, a pesquisar, a conversar, a viajar até ele. Ingmar, para muita gente, é o realizador de cinema, o extraordinário realizador de cinema, o conhecedor implacável da natureza humana. Mas não o conhecem como homem vulnerável e indefeso, como toda a humanidade. Bergman é, foi, realmente uma pessoa complexa, com uma vida atribulada, se quisermos dizer assim e que se deixou ver, que fez a sua catarse, que buscou o perdão da sua própria vida através da sua arte: o teatro e o cinema. Um homem que se apaixonou tantas vezes, como é natural e estranho seria se não fosse assim, que teve tantos filhos, que amou e odiou com tanta intensidade, tinha de ser humano, tinha de ter coisas "lá dentro", situações vulgares, humanas. Tentei descrever a sua humanidade e ele "deixou-me à vontade", nunca se escondeu, revelou-se inteiramente à medida em que me fui aproximando, à medida em que fui reconhecendo os seus caminhos. E tudo se tornava claro na minha cabeça. Pessoa mais simples do que aquela pessoa, com aquela genialidade, sensibilidade, amor à vida, às pessoas, à natureza e depois aquela respeitável solidão... Enfim, nada é fácil, não me foi fácil nem entrar nem depois sair daquele homem! E tenho saudades. Tenho uma enorme saudade dele e isso, só quem escreve biografias deste género, sente. Uma saudade inexplicável da pessoa com a qual vivemos dia e noite, durante tanto tempo. Não foi a primeira vez que esta sensação me aconteceu, mas desta vez foi pior.
A relação com Deus surge amiúde. A biografia não ficaria completa sem esse tormento?
Claro que foi um tormento! Essa relação, é a parte mais difícil pois não há nenhum sinal palpável, visível. Deus é uma sensação que se vai ajustando na nossa maneira de viver. Não há um encontro. Nada. Há imagens que conhecemos desde a infância, imagens terríveis ou sensíveis e apaziguadoras. Há imagens violentas, misteriosas. E é com essas imagens que crescemos. Deus? Onde está? Se pensarmos é, realmente, um tormento sem descanso, pois não há respostas e nós queremos, precisamos de respostas. Para um niilista, por exemplo, não há começos nem finais, nada existe. Portanto, nada começa e se nada começa, nada acaba. É uma posição de grande conforto e mesmo assim complicada. A minha crença é bastante vaga, indefinível e muito menos explicável. Baseia-se sobretudo, na contemplação incrédula - do resquício que me é possível observar - do universo. Vejo um teto azul, quando é azul. Ou seja, vejo nada! Tem princípio? Tem fim? Não há respostas, nunca houve nem nunca haverá. É claro que cada um de nós defenderá, até para sua salvação e proteção, quer psicológica quer afetiva, cada um defenderá a sua fé com aparente objetividade: um Deus antropomórfico. Até porque essa ideia é muito mais comovente e muito mais acolhedora: imaginar um homem divino. Grande, alto, cabelo longo, barba farta, tudo branco, sempre sentado não se sabe bem onde, se em nuvens, se em sofás. Assim deste modo, Deus tem um limite que se assemelha à nossa própria finitude. Teve um começo. O Filho que também é Pai nasceu das entranhas de uma mulher. Com que semente? Esse é o mistério, mas nasceu à nossa semelhança. Por isso terminou um dia como eu ou cada um de vós também terminará. Assim, sim. Vale a pena. E depois, Deus, ou me leva para perto de Si, para o céu sem fim - era assim que as crianças fixavam essa imagem divina: Deus como homem; céu como um espaço arredondado de cor azul tendo como limite as margens da folha onde essa imagem estava impressa; as suas roupas sempre amplas e sempre de sandálias. Deus tem um fim. O fim que a velhice traz consigo. Porque Deus, ora é velho ora é bebé. Ora nasce, ora morre, ora começa, ora acaba...A outra hipótese é Deus ignorar-me e deixar-me cair para o abismo porque não consegui encontrá-Lo. Pus na observação e na interrogação de Ingmar, a minha própria observação e interrogação. Somos todos parecidos e a minha angústia não deve ser muito diferente da angústia dele. Por isso acho que o compreendi. Ingmar sofreu bastante com essas interrogações, essas que todos temos, afinal. Temos de as ter até as não ter ou continuar a ter. Ele encontrou a sua própria resposta e todas as respostas somos nós que as encontramos. Ou queremos ou não queremos procurá-las, às respostas. Ele lutou por isso. E sossegou.
Faz três introduções. Insatisfação ou estilo?
Até devia ter feito mais. A vida dele - as nossas vidas - são feitas de introduções permanentes. Se eu quero descrever um pequeno-almoço, por exemplo, ou um dia na vida, tenho de me afastar do que já disse para trás e recomeçar. É uma nova descoberta. Apresento. Introduzo. Termino. Pode chamar estilo, se achar bem. E estilo é uma "qualidade" que os escritores devem ter, digo eu...
Porque não quis fazer uma biografia no sentido clássico do termo?
Porque gosto mais deste género assim chamado - romance biográfico. Estudei a pessoa profundamente, é verdade. Tinha de o conhecer como gosto de conhecer as pessoas e não seguir um cânone, um estilo clássico. Se descrevesse essa vida de um modo clássico, isso obrigar-me-ia a ater-me, a precaver-me, a abrilhantar a "coisa" e eu não gosto nem me sinto à vontade com pruridos e correntezas literárias. Gosto mais e estou convencida de que consigo aproximar-me muito mais dos leitores que vão, pela primeira vez, conhecer alguém que, neste caso, julgavam conhecer através dos filmes. Verificam, ao ler, que afinal esta pessoa «não é nada como eu julgava» ou seja, verificam que a pessoa é humana como outra qualquer que não tenha feito nada de relevante na vida. Já tenho ouvido comentários de pessoas que já leram este meu livro «Ah, como é possível! Ele afinal é tão diferente! Que vida incrível!» Ora, obviamente, que numa biografia dita "clássica" também se fica a saber tudo da pessoa biografada, mas para o meu tipo de sensibilidade, gosto mais assim. Aproximo-me, penso eu, muito mais do biografado e dos leitores.
Compreendeu Bergman na sua totalidade após acabar este romance biográfico?
Posso estar a ser muito pretensiosa ou até exagerada e vaidosa, mas sim! Acho que sim. Na sua totalidade, não direi, porque isso é impossível. Ninguém conhece ninguém em totalidade nenhuma, nunca jamais! Mas apercebi-me da sua idiossincrasia, do seu olhar, da representação dos gestos das mãos, do vagar e dos intervalos nos pensamentos quando respondia a entrevistas, por exemplo, apercebi-me de tiques, de disfarces do quotidiano, de certas atitudes por mim mais do que esperadas ou adivinhadas, certeiras, eu diria. Das raivas, dos incómodos, das fúrias, das "certezas", das resoluções, paixões, abandonos, desilusões, indiferenças, do seu caminhar, das dores que sentia quando comia, dos raios multicores que saltavam dos seus olhos quando ouvia música ou escrevia ou imaginava. Acho que percebi, sim, o suficiente para o tragar com voracidade e querer escrever, doidamente, sobre ele. Repito que a minha estada na ilha Fårö foi, absolutamente, fundamental. Tudo valeu a pena nesta minha deslocação e, só assim, eu tive a coragem suficiente para escrever este livro. De algum modo, senti "poder" sobre o que ia descrever. Tinha controlo sobre o meu descontrolo, que era afinal, total. Sei que é difícil perceber isto que estou a dizer, mas também não sei dizer de outra maneira.
Quem serão os leitores de O Caminho Contra o Vento. Em primeiro lugar os cinéfilos?
Realmente, não sei. Penso que sim, que os cinéfilos que conhecem os seus filmes, mas não fazem a menor ideia de quem é a pessoa tão sentimental que está por detrás, talvez pudessem ser os primeiros a descobrir este livro. Faria sentido. «Gosto muito dos filmes de Ingmar Bergman, ora deixa cá ver como é que ele era...» sim, faria todo o sentido. Mas não sei. Não sei nada. Tudo acontece e nada acontece. Gostava, realmente, de ter sido "útil" de alguma maneira ao público leitor. Este livro está escrito para toda a gente, cinéfilos ou não e já tenho tido, felizmente, comentários muito gratificantes. Tento ser útil - no sentido de conseguir revelar algo de novo que seja interessante -, dediquei-me total e completamente ao livro que escrevi, como acontece com todos os que escrevo, só que uns são mais difíceis e outros mais fáceis. Espero que os leitores gostem.
Ingmar Bergman - O Caminho Contra o Vento
Cristina Carvalho
Editora Relógio D'Água
179 páginas