"As minhas primeiras BD eram adaptações de Júlio Verne que fazia fechado no sótão"

Na edição passada Francisco Sousa Lobo venceu o Prémio Melhor Álbum Português no Amadora BD com <em>Deserto/Nuvem</em>, sobre a vida dos monges da Cartuxa de Évora. Neste ano é o autor em destaque, com uma exposição retrospetiva.
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É o autor em destaque nesta edição do Amadora BD, que começou na sexta-feira e pode ser visitada até 11 de novembro. Encontramos Francisco Sousa Lobo quando a sua exposição retrospetiva ainda está em montagem. Lá estão nas paredes pranchas de Deserto/Nuvem, livros onde procurou a vida na Cartuxa de Évora, chamada Scala Coeli (escada do céu), e com que venceu no ano passado o Prémio Melhor Álbum Português no Amadora BD. Em Deserto conta uma semana passada com os monges. Já Nuvem é composto de cartas endereçadas a um monge cartuxo.

Francisco Sousa Lobo nasceu em 1973. Trabalhou como arquiteto até 2005, ano em que partiu para Londres para estudar no Royal College of Art. Passaria depois pelo Goldsmiths College, também em Londres, onde fez o doutoramento e ainda vive. Hoje, além de desenhar e escrever, é professor na universidade de Falmouth.

Senão fosse um esgotamento que resultou num surto psicológico, Francisco Sousa Lobo não chegaria aqui, aos livros que já fez e aos que está a fazer. Ainda que essa história comece já na infância. Acaba de publicar Pequenos Problemas.

Gostava de começar pela sua relação com a palavra e com a imagem. Começou a fazer BD aos 6 anos. Que BD era essa?

Elas vão estar aqui expostas. Eram adaptações do Júlio Verne que eu fazia fechado no sótão durante o verão, e coisas inspiradas pelo Tolkien. Depois comecei a fazer coisas mais de terror, ficção científica, horror, quando tinha 12 anos.

Era um miúdo introvertido?

Sim, mas contente. Tinha uma relação saudável com o desenho, com a família, mas introvertido, sim. O desenho era uma espécie de pilar, de escape, e de proteção quase em relação ao mundo. E era uma coisa que eu sabia que podia fazer bem e que tinha uma recompensa: poder mostrar aquilo. Ainda tenho isso, é um misto de vergonha e orgulho, mas a vergonha está sempre lá.

Nessa BD que fazia em criança o Francisco já aparecia como personagem?

Não. Só na primeira que eu fiz, que já perdi. Era um relato de um sonho.

E quando começa a relação com a palavra escrita?

Sempre tive uma relação muito densa com os diários. Ainda hoje escrevo bastante. A leitura teve altos e baixos, foi evoluindo muito por solavancos. Acho que as aulas de Português assassinaram um certo prazer que eu teria em ler e em escrever.

O excesso de preocupação com a forma?

Sim. A separação entre vida e trabalho também. Às vezes apetecia-me só contar as férias ou coisas da minha vida e os professores não se interessavam minimamente, queriam era que eu dissecasse o Camões e tivesse essas armas técnicas que eu nunca percebi para que é que serviam.

Quando passaram esses danos?

Quando fui estudar Arquitetura passei a ler muito. Descobri autores que me marcaram profundamente: o Dostoievski principalmente. A minha avó dizia sempre que eu só lia livros deprimentes russos. Como é que é aquela música do Chet Baker? I've found more clouds of gray/Than any Russian play could guarantee? [But Not for Me]. A minha avó criticava-me pelas leituras mas Dostoievski era o mundo psicológico que me interessa, mais do que as descrições de Tolstoi.

Dostoievski é da sua família nesse sentido de afinidades?

Sim. E Simone Weil, como pessoa e como escritora. Saul Bellow também. A Adília Lopes marcou-me imenso, Vergílio Ferreira também, Ruben Andresen [Ruben A.]. Esses todos que escrevem muito sobre a sua própria vida e a vida real.

Quando é que a vida lhe apareceu como tema a tratar?

Foi muito mais tarde. Comecei a fazer BD quando estava ainda a trabalhar como arquiteto. Era autoficção mas eu não sabia. Mas foi com O Desenhador Defunto que a coisa se manifestou mais a sério. Tive de ter um momento de crise e de ressurgimento para perceber aquilo que queria fazer da vida.

Diz que teve aquilo a que antigamente se chamava um esgotamento nervoso.

Sim. Tive um surto psicológico que só me aconteceu uma vez na vida. É uma depressão que chega a um ponto tão extremo que parece que não pode haver nada mais baixo do que aquilo, mas depois há um abismo onde se cai. Esse é o surto psicológico, é começar a alucinar, a ter um mundo paralelo. Só me aconteceu por falta de sono e por stress de não estar a conseguir pagar as contas numa altura em que também tinha uma criança a caminho. Marcou-me imenso na reconstrução, fiquei mais lúcido em relação àquilo que quero fazer.

A sua obra nasce dessa reconstrução?

Sim. Só agora é que estou a conseguir começar a pensar em ficção mais pura, mas mesmo assim acho que não tenho jeito para mascarar. Quando é ficção as pessoas depois vêm-me dizer que me reconhecem em certas coisas, mesmo que eu escolha um tema estapafúrdio, que foi o que eu fiz n' O Cuidado dos Pássaros.

Como é que chega a um tema desses, como a pedofilia, para tratar?

Gosto de problemas difíceis. Como é que se conta a história de um pedófilo sem cair em nenhum dos extremos que tornam a coisa não digerível: o humor, que não pertence, e o dramático, [porque] também não posso cair em mostrar nada gráfico. Era um desafio de andar no fio da navalha sem resvalar para o humor nem para ser duro de mais. Fiz um livro que tinha um final cor-de-rosa e em aberto, o personagem era ambíguo até ao fim. O editor [da Chilli com Carne] não gostou. Eu revi e fiz um final que demorou um ano a pensar, e é duríssimo. Não sei porque é que escolhi o tema. Se calhar por ter gostado de livros que falam desse tema. Gosto imenso da Lolita [de Vladimir Nabokov] e de Morte em Veneza [de Thomas Mann].

Essa vontade de resolver problemas vem da arquitetura, que está permanentemente a resolver problemas?

Não sei bem. Acho que da arquitetura vem mais uma certa disciplina de trabalho. Mais do que isso é a relação com o espaço, e a BD como uma sequência de espaços, em que eu penso cada vez mais. Cada vez vejo mais cada edifício como uma história que se percorre. Problemas difíceis no design, na arquitetura são um bocado impossíveis. Eu estava entalado. Não podia ter autonomia criativa, porque não tinha o meu próprio ateliê, e não podia fazer só o que me mandavam, porque não é essa a condição do arquiteto. Às vezes vejo certas situações em que o arquiteto se põe como se tivesse sido treinado para ser um cirurgião e pedem-me para ser talhante no dia-a-dia. É duro prescindir de certos ideais.

No caso de Deserto/Nuvem não teve problemas em deixar passar o tempo que fosse preciso para aquilo ficar como achava que devia ficar, quando percebeu que isso não estava a acontecer com as cartas que escrevia aos monges e que compõem Nuvem?

Não. É um baque que se apanha quando há uma coisa do mundo real que nos interpela no nosso ateliezinho, onde estamos a fazer bonequinhos, e às vezes bate muito forte no ponto de chegada. Foi o caso. Eu depois googlei cartas abertas, para saber a história da coisa e [vi que] o Oscar Wilde dizia que eram o último recurso dos sacanas. Percebi porque é que os monges não tinham gostado das cartas. Para já porque eram muito pessoalizadas, tinham o nome dos monges. Ficou agora um livro muito melhor, mais universal. E eles estão muito contentes com o resultado.

O que mudou?

Demorei um ano a perceber que era quase só preciso mudar para "Caro monge cartuxo" em vez de "Caro monge sicrano". Depois perguntas que eu fazia e a que eles não podem responder publicamente. Eu acabava o livro com uma série de questões esperando poder ilustrar uma carta deles de volta. Mas não. Fazer perguntas ao prior sobre os vários monges que estão lá era um mau entendimento do que é ser cartuxo.

Por causa da individualidade?

Eles são muito individuais. Por alguma razão aquilo se chama Ordem dos Cartuxos. São muito democráticos, não têm propriamente uma cabeça. Têm um prior mas é a pessoa que fala com o exterior. Têm vidas muito privadas e gostam muito de privacidade. Então acham que só Deus tem direito a ver qual é o carisma de cada um. Havia coisas que eu perguntava que não faziam sentido para eles, e eles ficavam zangados com essa interpelação. Era um bocado curiosidade mórbida.

Jornalística no mau sentido?

Exato. Tive de aprender um bocado de jornalismo nesse livro e noutros que tenho estado a fazer. A minha coisa é sempre mostrar o processo às pessoas. É a minha maneira de ter a garantia de que é uma coisa partilhada, não é só a minha visão privada, amarga.

Por onde é que começou a sua entrada?

Eu sou vizinho [do convento]. No livro aparece uma quinta que ainda é da minha família. Como vizinho era mais fácil ter acesso. Comecei a conhecer o prior quando tinha 18 anos. Telefonei e fui fazer uma visita ao convento. É um bocado estranho que seja uma coisa tão fantástica e tão encerrada, mas há tesouros por todo o lado. É a vida deles, é o modo de vida deles, que já vem dos primórdios e tem coisas que nos parecem muito avant garde, como serem vegetarianos desde o principio e chamarem Inferno ao sítio onde os ajudantes do convento comem carne. Acho isso espetacular.

Foi um projeto de muitos anos.

Eram visitas curtas. Foi-me surgindo a ideia de fazer um relato, como alguns autores de BD que fazem relatos jornalísticos, como o Joe Sacco, mas mais íntimo. [Queria] misturar uma certa intimidade de alguns autores canadianos como o Chester Brown com o lado jornalístico e achei que a Cartuxa era um bom tema. Foi por aí que começou.

Era importante que eles gostassem?

Sim. Eles são parte do público que eu imaginei, ou parte dos leitores. O facto de o livro acabar lá dentro daquela biblioteca fantástica que eles têm tem que ver com esse conhecimento a priori de que o livro ia estar lá no meio de outros livros importantes que eu vi lá: muita teologia, muita filosofia, muitos romances muito bons. Eles leem muito. Não têm televisão, rádio, nem internet. Como os jesuítas, estudam filosofia e teologia, mas já estudam dentro do convento.

Qual era a premissa para o livro de entrevistas Os 40 Ladrões, que ainda está a fazer?

Era uma pergunta sobre ladroagem. Uma vez fui acusado de plagiar uma pessoa em Londres. Isso magoou-me brutalmente. Então foi uma premissa para investigar todas estas pessoas que me influenciaram tanto, e esta que me acusou. Cada pessoa tem direito a seis páginas.

A autobiografia também em curso, Livro do Mamute, é baseada nos quatro evangelhos. O Cristianismo está muito presente em quase toda a sua obra. Foi educado na fé cristã?

Sim. E fiz todos os passos além do que era preciso. Ainda hoje em dia tenho amigos que foram para padres, para freiras.

Fez esse percurso de modo automático ou esclarecido?

Esclarecido. Hoje em dia quando leio Kierkegaard ou qualquer coisa assim tenho uma visão muito pessoal e intransmissível se calhar, mas que está e tem de estar sempre infetada pela dúvida. Senão não é fé, é superstição.

Quando é que veio a dúvida?

Sempre tive. Uma pessoa vê o absurdo de certas coisas, a morte, a doença, o sofrimento, os porquês todos e vai questionando quem é que está a mandar nisto.

Na BD sobre o filme A Palavra, de Carl Dreyer, escreve no fim: "Dreyer sabe que o filme acabou e desmonta os andaimes do milagre e vai para casa e passam os créditos."

Marcou-me ver A Palavra porque havia um texto lindíssimo do João Bénard da Costa sobre aquele milagre possível na arte.

Esta questão tem uma presença tão forte na sua obra como problema técnico a resolver ou como assunto da vida a tratar?

Acho que é pelos dois lados. Para mim a fé tem de fazer parte da vida, senão não é nada. E também como assunto da cabeça. Acho que é o Chesterton que diz que um homem quando entra na igreja não tira a cabeça com o chapéu, tira só o chapéu.

Os livros que foi fazendo ajudam-no a ficar mais apto para a vida, algo que a personagem autobiográfica Francisco não parece ser totalmente?

Sim. Ajudaram-me a pensar que é bom encontrar um lugar onde eu possa exprimir-me e ser mais honesto, para mim isso é a BD, o desenho e a escrita. Isso não tem preço. E é um privilégio também poder escrever e ter este equilíbrio de dar aulas e ao final do dia poder trabalhar nas minhas coisas.

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