As jovens que fizeram de Charles Manson o grande assassino
O título é simples: As Raparigas. Até faz lembrar As Mulherzinhas de Louise May Alcott, mas com a salvaguarda de ser uma narrativa mais do nosso tempo, mesmo que a sua contemporaneidade seja a de 1969, o ano em que o líder de uma seita, Charles Manson, cometeu nove assassinatos com a ajuda de algumas jovens em quatro locais diferentes da Califórnia, durante cinco das semanas mais perturbadoras desse verão. A seita ficou conhecida como a Família Manson.
45 anos depois, Emma Cline, a autora de As Raparigas foi a estrela da Feira do Livro de Frankfurt, onde todos os editores faziam lances no leilão dos direitos de autor do romance escrito por uma desconhecida, que tinha o aliciante de ter 24 anos e ter sido uma aposta de um editor da moda nos Estados Unidos, bem como de a mega editora Penguin Random House ter dado dois milhões de dólares de adiantamento à jovem escritora.
O livro estava para ser lançado em 2015 mas houve necessidade de mexer no romance e só este ano, em maio, é que foi editada a versão em língua inglesa. Contrariamente a outros next big thing, Emma Cline sobreviveu à má crítica que se preparava, em muito devido ao negócio de milhões em que estava envolvida logo ao primeiro romance. Porquê? A única resposta é a de As Raparigas ser um romance extraordinário, bem construído, melhor editado, e capaz de seduzir leitores de todas as idades. Por outro lado, também é um romance fora do habitual, daqueles que os editores contemporâneos tanto detestam, porque não exige grande velocidade de leitura, o suspense é relativo e nada facilitador. É esse o caso da narrativa de Emma Cline, que exige atenção e é recheado de pormenores sobre uma adolescência transviada, tão deliciosos como pertinentes quando comparados com a sociedade pós-1969, a de 2016, quando o, livro sai.
Vamos ao romance. Contrariamente à propaganda oficial em torno do livro, este As Raparigas não é uma 'biografia' dos acontecimentos protagonizados pela Família Manson, onde existiam três raparigas que se assemelham às da seita utilizada por Emma Cline para desenvolver a história.
Um trio de jovens verdadeiro que foi condenado por cumplicidade nas mortes, duas das quais chocaram o mundo de então: Sharon Tate e o seu bebé. Principalmente porque estava grávida do realizador Roman Polanski. Na casa onde tudo ocorreu estavam ainda quatro amigos do casal, que não escaparam ao mesmo fim, após terem sido esfaqueados e violentamente espancados até à morte. Um dia depois, entraram noutra casa e mataram outro casal sob a mesma forma. Em ambos os casos deixaram nas paredes, pintadas com sangue das vítimas, as frases porcos ou morte aos porcos e outra mais estranha: Helter Skelter. O título de uma canção do Álbum Branco dos Beatles, onde Paul McCartney cantava uma tema demoníaco e de uma violência musical extraordinária. Nesse mesmo disco existia outro tema, Revolution, sendo que ambos sugeriram a Charles Manson que era o sinal para avançar na sua cruzadas contra os negros e a burguesia consumista, um homem que tinha um historial de abandono do pai e má relação com a mãe, de roubos de uma bicicleta e de vários artigos em lojas e estadas em reformatórios e consequente abusos sexuais. Mesmo assim, teve tempo para escrever algumas canções que pretendia, devido à amizade com o baterista da banda Beach Boys, Dennis Wilson, serem o início de uma carreira enquanto cantor.
Nada se realizou conforme Manson queria e a História registou a via radical que escolheu para inscrever na sua biografia algo que ninguém jamais esqueceria. Entre o ninguém está Emma Cline, que décadas após os acontecimentos que fizeram famosa a Família Manson, decidiu traçar um paralelismo em As Raparigas. Quem ler o romance vai encontrar o sangue pintado nas paredes, a bicicleta da protagonista, a mãe desleixada e uma personagem que quer entrar na cena musical. Cline vai interligar muito do que aconteceu em 1969 para fazer o seu relato.
Bem escrito, inventivo e com uma exposição física e psicológica de uma adolescente como raramente se observa na literatura atual, designadamente nos grandes romances anunciados e dos quais se espera sempre o pior. Não será por acaso que há poucas semanas Salman Rushdie qualificava ao DN a escritora como "inteligente" e o romance "muito bom". Ou que a estrela dos críticos norte-americanos, James Wood, escrevia uma recensão que se tornava o passaporte para atravessar todas as fronteiras literárias sem ser barrada e onde referia As Raparigas como "uma canção de inocência e maturidade". Porque é isso mesmo com que o leitor se confronta neste romance de estreia, quase tão apocalíptico como são os acontecimentos que o inspiraram.
O que Emma Cline faz é uma réplica muito própria daquele verão de 1969, usando a sua protagonista adolescente como um espelho daquelas raparigas da Família Manson, dando também esse papel a um grupo de jovens que vivem num pardieiro devido à influência de um Charles - aqui sob o nome de Russel. Que é um cantor e compositor mediano, mas deseja subir na carreira a todo o custo. Não o conseguindo, encontra um bode expiatório e Emma Cline replica o que aconteceu aos nove assassinados 45 anos antes.
Pode dizer-se que este romance é mais para o leitor americano, pois serão os que têm melhor memória do brutal assassinato de Sharon Tate e restantes. Talvez fosse bom ter no final uma página com o registo daqueles acontecimentos, ou, recomenda-se ao leitor que depois de ler As Raparigas - nunca antes - vá rever aqueles acontecimentos. Então, além do deslumbre quer já terá tido na leitura, perceberá ainda melhor a perfeita técnica da escritora Emma Cline, que transformas as jovens de Manson, Susan Atkins, Patricia Krenwinkel e Leslie Van Houten, nas suas meninas-personagens, mostrando como se forma o ódio por via da utilização tanto de um erotismo adolescente, de exploração sexual e de uma ausência de princípios de convivência social.
Recorde-se que do trio das raparigas de Charles Manson, Susan morreu na prisão em 2009, com 61 anos, após 18 recusas para ser libertada. Era conhecida por Sexy Sadie, outro título das canções do Álbum Branco dos Beatles. Patricia Krenwinkel continua detida aos 68 anos e pode ser libertada em 2018, tendo dito há dois anos "eu não sou a mesma pessoa que era aos 19 anos". Leslie Van Houten, 66 anos, tem sido uma prisioneira modelo e confessou remorsos pelo que fez.
O desconhecimento da História não obsta em nada à leitura de As Raparigas de um dos melhores romances deste ano, pois o modo como Emma Cline constrói a sua narrativa é muito curiosa. Acompanha-se a protagonista Evie Boyd a ser atraída para o olho do furacão, enquanto no cone da tempestade estão todos os ingredientes da tragédia. Passo a passo, a autora vai empurrando o leitor para o local onde será sugado pelo furacão, tal como foram todas as personagens desta história. Que Cline conta através de Evie como se fosse uma espetadora atenta, mas nunca capaz de resistir ao magnetismo do drama em que a querem envolver e, ao mesmo tempo, sente prazer em fazer parte. Uma atração que a autora transmite ao leitor de uma forma tão armadilhada que este aceitará, como todos os que se reuniram à volta de Charles Manson, o que aconteceu noutro tempo.