O mais significativo festival de cinema árabe termina hoje e sente-se no ar uma nova força, uma outra afirmação. O Festival de Cinema do Cairo já vai na 44.ª edição e é de lista A, um evento fundamental para divulgar o cinema do Médio Oriente mas também para trazer a estas partes do planeta o novo cinema do mundo. "Cinema do mundo" muitas vezes associa-se ao cinema vindo dos países mais remotos, mas na programação deste festival há uma curadoria que faz da mistura um trunfo. Um festival que é também um ponto de encontro para fundos e agentes da indústria discutirem possibilidades de financiamentos. De alguma forma, sente-se o meso do mercado com centenas de convidados europeus e uma escala de fazer inveja aos maiores festivais europeus..Sem a obsessão de mostrar antestreias mundiais, cada vez mais são importantes algumas das estreias como, por exemplo, L'Astronaut, um pequeno filme francês de Nicolas Giraud, com Matthieu Kassovitz. Pequeno mas com ambições de ser grande: é um projeto de ficção-científica sobre um astronauta frustrado que decide ele próprio construir num foguete e viajar até ao espaço. Trata-se de uma história que recupera a tradição do cinema de Hollywood dos anos 1980 na sua mais fecunda ingenuidade. Cinema de entretenimento francês que parece contra-corrente nestes dias. Na sessão de gala na belíssima Ópera do Cairo teve uma fulminante receção e Giraud foi aclamado com histeria, embora, sejamos francos, é um filme com problemas de ritmo e uma falta de empatia com a própria mecânica do "sonho impossível". Em França estreia-se em fevereiro e pode ser que possa surpreender e até alvo de uma possível abordagem americana para remake..Das boas surpresas na secção mais panorâmica uma pérola escondida da Mostra de Veneza, Les Miens, de e com Rochsdy Zem, história sobre uma cisão familiar entre uma numerosa família de parisienses oriundos do Magrebe. Zem filma a proximidade (e as suas distâncias) de irmãos com uma força escrupulosa. Um filme que nos faz sentir a experiência cultural de pais, filhos e irmãos numa França de hoje onde os valores fraternais precisam de ser revistos. É também um conto de um homem que se apaga: um dos irmãos tem uma concussão que o faz mudar de personalidade, tornando-se num misantropo que deixa de sorrir. Um grande filme à atenção dos distribuidores nacionais..E num cinema ao lado do Nilo uma obra sobre o Nilo: Le Barrage, de Ali Cherri, artista libanês conceituado que se estreia aqui nas longas, neste caso numa balada sobre um trabalhador sudanês possuído pelo desejo de construir uma obra de lama ao lado de uma barragem no Nilo do Sudão. Uma impactante vontade de filmar o misterioso e o invisível num filme que quer ter um espectro de Jacques Torneur mas que na maiorias das vezes parece decalque escusado dos filmes de selva de Apichatpong Weerasethakul..Andrew Moshen, o diretor artístico do festival, conta ao DN, algo envergonhado que não há nenhum filme português no vasto catálogo mas que houve uma curta que esteve quase: "não calhou este ano. Quisemos um programa rico mas antes da seleção não procurámos nenhum tema ou tópico. A verdade é que olhamos agora para os filmes e percebemos que há algo que une de alguma maneira muitos cineastas, este ano aquilo que a pandemia deixou. São filmes que abordam o fim dos tempos e o que pode ainda sair disso, enfim, uma tendência do pós-apocalíptico e dos novos começos". Para o programador o festival é vital mostrar também o que de novo sai do Egito: "o facto de muitos cineastas locais apostarem no nosso festival para rampa de lançamento dos seus filmes revela o bom trabalho que estamos a fazer - ano após ano temos mais impacto. Diria que o Festival do Cairo é importante para os filmes feitos nesta zona"..Entrevista a Béla Tarr.Foi a presença maior do festival. Deu uma masterclasse, falou de cinema e orientou um workshop com jovens estudantes de cinema do Cairo. Com um sorriso rabugento e a sua bengala que o ampara, este nome lendário do cinema húngaro, autor de obras aclamadas como Sántángó e O Cavalo de Turim, disse estar cansado..Está a ajudar um grupo de jovens a filmar uma curta. O que está a sentir desta juventude do Cairo? Se eu ainda não acreditasse nos jovens não estava aqui e acredite que é cansativo. Este festival é duro: ainda não vi cinema, não fui a uma festa. Não paramos! Há que acreditar nesta juventude para ainda acreditar no futuro do cinema..Curioso, não é como alguns pessimistas que diziam que o cinema já está a morrer. Quem? O Godard?! Não sei se era pessimista, era um pouco cínico e muito duro consigo próprio. Conheci-o uma vez em Roterdão, em 1984 e eu era jovem ainda - queria perguntar ao mestre como ele tinha filmado um certo plano. A resposta dele foi só: "saiu-me assim"...Senti que estava a ser aldrabado, caraças! Mas agora a situação passa-se comigo: os jovens fazem-me o mesmo tipo de perguntas. E sou obrigado a responder com honestidade: "saiu-me assim"....Não é um fardo insustentável ter todos olhar para si como um mestre, uma lenda? Não posso fazer nada quanto a isso. Às vezes, fico perturbado, noutras não há problema. Quando vejo que o jovem que me aborda tem olhar honesto claro que é uma grande honra mas se vir que me abordam por ser uma espécie de moda, fico triste: não quero servir para alguém se achar cool, não sou uma marca, sobretudo quando ando de um lado para o outro a trabalhar..Perguntava isso porque só o termo "mestre" remete para algo académico. Mas não se pode dizer mais essa palavra, estamos no século XVI e todos podem fazer cinema com o telemóvel. O academismo no cinema pressuponha hierarquia, agora isso já não existe! A porcaria da net tornou o cinema mais democrático....A internet que possibilita que os seus filmes possam estar sempre a ser vistos por novas gerações e é aí que se percebe que são intemporais... Mas nunca deixarei que os meus filmes fiquem nas plataformas. Sempre quis fazer um cinema intemporal: difícil descobrirem nos meus filmes marcas de cada época, como por exemplo carros....Chegou a lecionar numa escola de cinema em Sarajevo. Foi lá que saiu André Gil Mata, cineasta português. Costuma recordar-se dos seus alunos? Claro e lembro-me bem do André. Mas não vou dizer se gosto de A Árvore, nunca falo sobre os filmes dos meus amigos. Posso apenas dizer que o estilo é só dele, não se deixou influenciar e nunca falou comigo durante a rodagem. Claro que não é um mau filme....