A caixa de correio da vivenda em Coimbra onde Miguel Torga morava chegavam muitas cartas de admiradores da sua obra e de colegas escritores. Entre essa correspondência, que agora foi reunida num volume de 350 páginas, está uma de Agustina Bessa-Luís escrita no ano de 1949. A autora, ainda muito jovem, tinha acabado de publicar um livro e enviara-o para Torga dar uma opinião; este ignorara-a e Agustina não está com meias-medidas nos insultos escritos que lhe envia: "Os seus livros não são bons, mas a sua capacidade de sentimento, o génio de perceção sentimental e a individualidade no pensamento fazem de si um grande escritor em potência." Vai mais longe: "O homem de pensamento é em geral mau romancista, pobre ou irreal na efabulação. Mas o que estraga os seus livros, senhor, é o desejo de simplicidade, de naturalidade. Dá a impressão que prefere o homem ao artista, o corpo em desfavor do espírito. Então não faça versos - cante-os. Não escreva livros - leia os dos outros." E confessa o motivo da sua irritação: "O meu [livro] por exemplo.".A carta de Agustina Bessa-Luís é das mais amargas deste Cartas para Miguel Torga, com organização e uma importante introdução de Carlos Mendes de Sousa, e em pouco reflete o espírito desta compilação. Que tem mais um tom de admiração pelo poeta e de interesse em ser seu amigo na maioria das cartas que o acerto de contas de uma Agustina em início de carreira, até porque dez anos depois a carta que lhe enviará é no tom mais afável e submisso possível..A quantidade de correspondência que Miguel Torga recebia era uma situação que nem sempre lhe agradava, principalmente devido à natural exigência de ter de dar resposta. Na introdução deste livro, o responsável pela seleção vai buscar a passagem do Diário XIV do escritor para justificar essa realidade: "Cartas e mais cartas. Vou deixando acumular o correio e, quando me resolvo a responder, é de enfiada e em duas penadas." Acrescenta uma definição para o seu perfil de epistológrafo: "Pareço um telegrafista." Carlos Mendes de Sousa garante que "o autor cuidou sempre das cartas que escreveu ao longo da vida, tendo inclusivamente guardado cópias de muitas delas". Nada que ao escritor não o fizesse sentir-se como que a dirigir-se a "fantasmas em muitos casos nem sequer figuráveis". O único óbice para o organizador é a inexistência das respostas de Torga, mesmo que essa unilateralidade não seja um problema..Muitas das cartas reunidas resultam do envio de livros por Torga a personalidades que lhe respondem com "breves comentários ou demoradas recensões". É o caso do bilhete enviado por António Sérgio a comentar A Terceira Voz, momento em que o poeta "busca ainda o seu caminho", segundo o organizador. É a literatura o tema dominante da correspondência, material que fornece um "contributo importante para a reconstituição do itinerário pessoal e literário do escritor"..Segundo Mendes de Sousa, a correspondência coloca o tema da autobiografia na obra, designadamente ao fornecer reflexões e elementos biográficos sobre a atividade profissional como médico (Adolfo Rocha), a paixão pela caça, a prisão e a apreensão de livros, as viagens, ou o relacionamento com os oposicionistas ao regime, que surgem tanto em muita da ação dos seis livros de A Criação do Mundo e das entradas do longo Diário..Entre estas cartas existem remetentes de várias áreas da cultura e de países. A Península Ibérica está bem representada, do Brasil é grande também e, principalmente, de importantes nomes da sua literatura, bem como do ministro da Cultura francês Jack Lang a exigir a sua presença em Paris e de várias figuras da cultura desse país que muito admirava Torga. Alves Redol é um dos que escrevem a Torga a pedir para enviar poemas que tenham por tema a resistência: "Os seus Não Passarão e Torquemada, além de outros Poemas Ibéricos terão um merecido sucesso em França." David Mourão-Ferreira quer comemorar os 80 anos de Torga com dignidade e aproveita o pedido de originais para comentar o "belíssimo XIV volume do seu Diário", que "só pigmeus atrevidos e tolos (que vão para o diabo!) poderão não entender a grandeza humana, o alto rigor e a perfeição estética daquelas páginas exemplares." De destacar também o capítulo com a única carta de Maria Ondina Braga, escrita desde Macau, onde mostra como Torga era idolatrado pelos autores menos conhecidos, que até lhe escrevem apesar de nem saberem o seu endereço..Fernando Pessoa escreve a 30 de junho de 1930 para agradecer o livro Rampa: "Recebi-o já há alguns dias. Li-o, porém, logo que o recebi. Li-o e gostei dele. A sua sensibilidade é de tipo igual à do José Régio. O que em si é ainda por aperfeiçoar é o modo de fazer uso dessa sensibilidade." Hernâni Cidade, impressionado pelo livro Vindima, escreve "creio não ser possível dar com mais viva realidade aquele tríptico rural" e "com a verdade dos traços que surpreendem a realidade objetiva, a finura dos que penetram a intimidade das almas"..Entre outras cartas, estão as de João Bigotte Chorão a felicitar pelo Prémio Camões; Jorge Amado que recebe duas traduções, Lapidaires e Poèmes Ibériques, que "honram e orgulham todos aqueles que escrevemos em língua portuguesa"; Natália Correia a afirmar que é Torga "quem mais idoneamente pode falar desse povo que os batoteiros de fórmulas que o subjugam querem anestesiar"; a de Paulo Quintela a combinar uma visita à prisão do Aljube em 1939, onde o poeta estava detido por causa de um livro; a de João Villaret que chega (1950) de uma digressão por Angola com 22 recitais de poesia e que testemunhou o "entusiasmo que a sua poesia provoca neste público tão puro e tão honesto", ou de Ruben A. a dar novidades sobre a encenação em Londres da peça Mar..Entre as maiores trocas de correspondência está a com Vitorino Nemésio e Sophia de Mello Breyner Andresen. Com o primeiro é o debate religioso que está na primeira linha, situação sempre presente na vida de Torga, bem como os problemas de se ser escritor em Portugal devido a questões de política e de censura. A segunda, escreve duro sobre as duas personagens inicialmente referidas, Torga e Agustina: "Foi a maçonaria dos medíocres que em Florença intrigou contra a Agustina, a mesma maçonaria que na questão do prémio Nobel intrigou contra si.".Cartas para Miguel Torga reúne a correspondência enviada ao autor. Organização e prefácio de Carlos Mendes de Sousa, editado pela D. Quixote.