Passam as sacadas de pão e de febras, as travessas com as sardinhas. Os aromas do carvão que já arde nas grelhas e do caldo verde acabado de fazer invadem o espaço, misturam-se no ar, convidam. Pouco passa das 19.30, está tudo a postos para o arraial e Rui Silva, o vice-presidente da Academia de Santo Amaro, em Alcântara, faz questão num brinde, de agradecer à equipa de voluntários que trabalhou ali toda a tarde. "Isto está a bombar no face [Facebook], temos milhares de participações, vamos fazer um grande arraial. Viva Alcântara, viva a Academia", grita ele, de copo no ar. Toda a gente o imita, a sorrir, há aplausos. Depois bebe-se e, nisto, a música arranca, "Lisboa, varina, de chinela no pé...", e começam a sair as febras e as sardinhas, as sangrias e as imperiais, o caldo verde, o arroz-doce. Nas mesas, de pé, em grupos, já se come. E conversa-se..O arraial da Academia de Santo Amaro (ASA) - "é o único oficial da EGEAC [organismo da câmara que organiza as Festas de Lisboa e dá apoio aos arraiais] em Alcântara", sublinha João Braga, presidente da ASA - é um dos grandes acontecimentos do ano para a Academia. Mas é-o também para o bairro de Alcântara, que, à semelhança de todos os outros na capital, se engalana nesta altura com fitas e balões, põe a música a tocar alto ou chama as bandas para tocar ao vivo e vem para a rua comer e beber, dançar e conviver. É o tempo dos santos populares e há um espírito diferente no ar. Lisboa, em junho, não para. E, em vésperas de sábados e domingos, as festas na rua vão até às tantas..A que decorre no espaço da ASA, a toda a volta do belo edifício inaugurado em 1952, ajuda a garantir o orçamento da academia e da sua principal atividade: os espetáculos de teatro, que nestes 70 anos têm sido escola de atores e de encenadores e, sobretudo, um motivo de convívio e de encontro de gerações.."Somos todos amadores, ninguém recebe dinheiro, isto é como uma família", explica João Braga. Mas dali já saíram atores para os palcos profissionais, como Miguel Dias ou Carlos Areias, e a bela sala de espetáculos que é o orgulho da ASA também já viu atuar nomes grandes, como Vasco Santana.."Fazemos o arraial aqui desde sempre", lembra João Braga, 50 anos, que foi pela primeira vez à ASA quando tinha 14, para participar num concurso, e já não saiu mais. Ali, tal como muitos outros, fez teatro e trabalho de secretaria, ajudou a construir e a pintar cenários, organizou bailes e fez gestão de caixa, pertenceu aos corpos dirigentes - é o atual presidente da direção - e todos os anos está na primeira fila para pôr de pé o arraial. Uma montanha de trabalho, e todo voluntário, mas essencial para que tudo corra sobre rodas..Diversidade e muita escadaria.É assim, afinal, por todo o lado, na cidade. Para tudo estar a postos no início de junho e as festas arrancarem na hora certa, é preciso começar a trabalhar em janeiro. São as licenças e as burocracias, a programação, os convites para os músicos, os contratos com os fornecedores, os cálculos da quantidade de pão, dos quilos de febras, das toneladas de sardinhas, os telefonemas, as papeladas..É assim também na Mouraria, bairro entre todos os do país que concentra o maior número de nacionalidades: meia centena. Por isso, o arraial no Beco do Rosendo, organizado pela Associação Renovar a Mouraria, é dedicado à diversidade. "Todos os anos temos um tema diferente. Neste ano escolhemos o de Arraial sem Fronteiras", conta Inês Andrade, responsável pela organização da festa..Inês é funcionária da Renovar a Mouraria e contou com o apoio dos outros 12 colegas, também trabalhadores da associação, mas o arraial não seria uma realidade sem a ajuda dos muitos voluntários que fazem da Renovar a Mouraria o que ela é: uma associação do bairro, para as pessoas do bairro. O programa do arraial, com a participação dos músicos imigrantes que residem ali, algumas portas adiante, como o angolano Chalo Correia - "já é um filho do bairro", resume Inês -, ou os fadistas locais que participam na noite de fado, no feriado de Santo António, reflete essa natureza diversa, e ao mesmo tempo familiar, que é marca da Mouraria..Mas no programa não há só artistas locais. A dimensão universalista deste pedaço de Lisboa também se cumpre na participação de músicos de fora, como os Graveola e o Lixo Polifônico, que vêm do Brasil para encerrar ali as festas no dia 30. No pequeno Beco do Rosendo, nestas noites chegam a estar mais de uma centena de pessoas e, claro, não faltam as tradicionais sardinhas no pão, as imperiais e o caldo verde, mas também há oferta de muitas outras gastronomias. Afinal, ali é a Mouraria..Escada abaixo, escada acima, é o arraial todo castiço que o Marítimo Lisboa Clube organiza na Bica, e que abrange o Beco dos Aciprestes, onde as grelhas assam febras e sardinhas toda a noite, a Travessa do Cabral e a Calçada da Bica Grande, onde estão as bancas das imperiais. Um palco levantado à altura do primeiro andar num dos patamares da escadaria acolhe a banda, e os bailes improvisam-se naquela geografia particular. Em noites de arraial passam por lá "milhares de pessoas", garante Fernando Duarte, da direção da coletividade, e a alma do arraial. "Isto é uma paixão", confessa. Morador da Bica quase desde sempre, Fernando Duarte mal dorme nesta altura, e passa o dia agarrado ao telemóvel - há sempre tanto que fazer. Mas a alegria que por lá se vive nestes dias acaba por compensar o esforço.