Após ter publicado a novela gráfica O Diário de Anne Frank, o guionista e cineasta israelita Ari Folman regressa à história da jovem que morreu no campo de concentração alemão de Bergen-Belsen em 1945. O novo álbum já chegou às livrarias e o filme estreia dentro de uma semana nos cinemas, prolongando o legado da jovem numa segunda história que também se passa na atualidade. Além de Anne Frank está a personagem imaginária com que conversava no seu Diário, Kitty, e a história desenhada por Len Guberman situa-se em Amesterdão, quando uma tempestade faz a protagonista deixar as páginas escritas durante os muitos meses em que esteve escondida com a família, durante a II Guerra Mundial, para fugir à deportação e extermínio promovidos por Hitler. Um fenómeno meteorológico fá-la voltar à vida e permite a Anne Frank ter a dimensão do que foi o Holocausto e de como a mensagem inscrita no seu Diário serviu para milhões de pessoas terem conhecimento dos horrores do Terceiro Reich..Ari Folman conversou com o DN sobre este regresso a Anne Frank, que lhe tem ocupado a maior parte da última década de vida, tanto assim que conta o que lhe disse a filha para mostrar a sua dedicação a esta tarefa: "Tem sido uma caminhada longa e posso dar como exemplo o que a minha filha me disse um dia: "Pai, não me lembro de ti antes de Anne Frank." Eu posso dizer o mesmo, não me lembro da minha vida antes de Anne Frank.".Começa-se por perguntar a Ari Folman sobre a impossibilidade de ler este livro sem se fazer uma comparação com a guerra em curso na Ucrânia devido à invasão russa, ao que responde: "É verdade, é impossível, no entanto creio que não se fica por aí quanto a comparações, pois quando o filme foi apresentado no Festival de Cannes, em julho, muitas foram as pessoas que me disseram que fazia lembrar a situação das crianças no Afeganistão. Infelizmente, poucos meses depois voltámos a ver o mesmo sofrimento, agora na Ucrânia. Estamos perante acontecimentos dramáticos que parecem não querer acabar, que percorrem um círculo sem fim perante os olhos da humanidade.".Ao questionar-se se esta "coincidência" entre a Segunda Guerra Mundial e a invasão da Ucrânia é "positiva" ou se retira ao livro e ao filme o foco da verdadeira história que quis retratar, Folman considera que não é um problema: "Pelo contrário, o livro e o filme tornam-se mais relevantes do que nunca, mesmo que não se possam fazer comparações entre o que aconteceu com o Holocausto e a situação atual dos refugiados em todo o mundo. As crianças não têm oportunidade de o serem, pois tornam-se refugiados ainda com pouca idade. Quando se vê o que está a acontecer na Ucrânia, sentimo-nos mais incapazes perante essa realidade, mesmo que os países à volta tenham aberto as fronteiras para os receber. Mas ninguém pode alterar o destino delas, não se pode fazer muito.".Em muitas das páginas deste álbum, Anne Frank é invisível, o que pode originar um paralelo com a situação das crianças nas guerras, quando se tornam elas próprias uma parte quase invisível dos conflitos. Pode fazer-se esta relação? "Creio que as crianças vítimas das guerras sofrem sempre a mesma tragédia e não existe uma diferença por a razão ser devido a várias causas: situações religiosas, situarem-se em continentes diferentes ou terem raças diversas. Tanto faz que as crianças estejam numa ou noutra zona onde surge a guerra, porque elas não escolhem fugir, antes são obrigadas a fazê-lo. É uma história universal e que a Fundação Anne Frank tenta obviar, oferecendo parte dos direitos a crianças em todas as partes do mundo", responde..A dado momento, a protagonista do livro e do filme pergunta como é possível que a maioria da população mundial se esteja a divertir enquanto decorre uma guerra. Esta situação faz lembrar o que se passa agora com a guerra da Ucrânia, o que não surpreende Ari Folman: "É uma situação normal em todas as guerras e com a qual os soldados, ao regressarem da frente de combate, se confrontam: ninguém interrompeu a vida normal nem deixou de viver.".O facto de Anne Frank vir até ao presente não foi uma dificuldade, confessa: "Eu procurei dar uma nova dimensão à história e pensei na solução que existe no Diário. Está tudo lá! Eu já li o Diário umas 50 vezes e tive atenção à parte em que Anne Frank descreve a sua amiga imaginária e vi que poderia ser a resposta." A releitura constante do Diário possibilitou novas interpretações, garante: "Todas as vezes encontro novos pormenores. Afinal, o livro é uma peça de arte espantosa e incrível por parte de uma rapariga de 14 anos que observa o que acontece à sua volta.".No argumento desta nova novela gráfica e no filme o Diário desaparece da Casa-Museu Anne Frank. O mesmo se verificou com certas partes do Diário nas primeiras edições, devido à imposição do seu pai em não publicar o texto sob a forma integral. Terá sido melhor essa versão? "Não, Otto Frank deveria ter respeitado o desejo da sua filha, mas creio que ficou embaraçado com certas passagens, principalmente as que diziam respeito a coisas muito pessoais, como o que respeitava à relação com a mãe. Isso foi-se alterando e ele foi libertando cada vez mais do texto integral", esclarece. No caso do que Anne Frank escrevia sobre a mãe, nem tudo era positivo, acrescenta: "Creio que não escrevia nada que outra adolescente não sentisse. Anne Frank não é especial, é uma pessoa real e com os mesmos sentimentos que as restantes. Ela não é um ícone, portanto observava a forma como o pai e a mãe se davam e descrevia-a. É importante, penso, retratá-la como uma jovem normal e compreendê-la.".Ao referir que Anne Frank não é um ícone, acaba por ser uma afirmação que se opõe àquilo em que ela se transformou: a jovem com uma história inspiradora desde que o Diário foi revelado. Para Ari Folman, essa definição pode ter um reverso, o de ser um ícone também: "É um ícone se a olharmos como um ser humano normal, daí que tanto no livro como no filme a mostre como uma pessoa complexa: inteligente, boa escritora e divertida, mas ao mesmo tempo existe nela uma maldade no que respeita às pessoas de quem não gostava. Essa é a verdadeira Anne Frank, aquela que acabou por se transformar num nome que batizou inúmeros lugares, devido às homenagens que lhe quiseram fazer.".Temos desta vez um livro e um filme. Qual deles foi o mais importante para inspirar o argumento desta nova história? "Desta vez foi diferente, pois a primeira novela gráfica era a adaptação do Diário. Não reproduzi tudo, como uma grande parte, a essência, porque não cabia numa novela gráfica de tão extenso. Desta vez o livro é basicamente o argumento do filme, até no desenho é diferente, pois adapta-se à visão cinematográfica." Esta continuação já estava prevista? "Sim, desde o início que sabia que iria haver um filme e, ao mesmo tempo, uma novela gráfica que sintetizaria a versão feita para o cinema.".O sucesso mundial do Diário tornou a história de Anne Frank conhecida em todo o mundo? "Acredito que a sua história seja das mais conhecidas, afinal, quando se fala da II Guerra Mundial, sabe-se que Anne Frank era a segunda referência mais conhecida após Hitler. Não é por acaso que já se venderam mais de 35 milhões de exemplares em todo o mundo e está traduzida em mais de 80 línguas." Para não haver um contraste entre a tragédia de Anne Frank e a escrita do argumento foi necessário evitar as partes divertidas do Diário? "Não, creio que cabe tudo no filme, até porque a vida dela também teve partes divertidas e não se consegue cativar uma audiência mais jovem se as escondermos", considera..A dado momento, Anne pergunta "porquê os judeus?". Esta pergunta já foi respondida ou as dúvidas continuam, designadamente num tempo em que há tantos negacionistas do Holocausto? Para Ari Folman esta é uma situação esclarecida, até porque na história universal sempre houve perseguição a minorias: "Nada pode ser comparado ao que aconteceu com os judeus, mas há paralelismos com as perseguições aos arménios, aos apaches, o que os belgas fizeram no Congo... Há sempre minorias a serem acusadas. Quanto ao antissemitismo atual, essa é uma situação que fiz questão de eliminar do filme - não há negacionistas. Creio que, se lhes dermos voz, eles têm um palco e lugar ao debate, e não se deve fazer isso. Devem ser cancelados desde o princípio. O crescimento do antissemitismo é um movimento que representa a xenofobia não só contra os judeus, além de que o racismo em geral é uma forma de certos partidos de extrema-direita fomentarem o ódio em relação a minorias por todo o planeta.".Ao mostrar como era feita a seleção nos campos de concentração de quem iria viver um pouco mais e de quem só tinha o direito a morrer rápido, como era o caso de Bergen-Belsen, para onde Anne Frank foi, utiliza a mitologia grega e os procedimentos seletivos de Hades [deus grego do reino dos mortos]. É a melhor maneira de explicar esse horror? "Creio que o maior desafio deste livro e filme era mostrar a situação das crianças nos campos de concentração. E não existe uma forma de a retratar, porque é muito dura. Então, tentei mostrar essa péssima realidade através da mitologia grega, usando paralelismos com a antiguidade que dessem um exemplo do que os nazis faziam a nível da seleção no momento da chegada aos campos. Era a melhor forma de explicar o que se passava nesses casos horríveis", refere..Ao vermos o que o invasor russo faz na Ucrânia, pode dizer-se que histórias como a de Anne Frank não têm um fim? "Infelizmente, é isso mesmo", responde. Coloca uma frase de Anne que diz não ser importante o que escreveu, mas sim a mensagem: "Quis perguntar onde está o legado de Anne Frank perante a estupidez da guerra e de que nada mudou quando, continuadamente, vemos a repetição de conflitos ao longo da história.". À Procura de Anne Frank Ari Folman e Len Guberman Porto Editora 159 páginas