Quais são as grandes mudanças na Argentina nos últimos meses, o que mudou com o novo presidente, Alberto Fernández? A primeira grande mudança é que a Argentina tem um novo governo e enfrenta uma situação de default, que não foi provocado pelo governo de Alberto Fernández mas que vinha do famoso "reperfilamento" criado por Mauricio Macri na corrida contra o dólar a três ou quatro meses do fim do seu mandato. Aí começa todo o processo de default que, graças a Deus, acaba de terminar há dias..A negociação com os credores internacionais correu bem? Sim, sim. Creio que vai haver uma adesão superior a 80% ou 85% da parte dos credores pela qual se invalidam as últimas imposições dos últimos anos acerca da possibilidade dos holdouts, ou seja, no fundo ficam fora do acordo de recorrer aos tribunais. Antes, quando foi a grande negociação de 2005, essa disposição não existia. Hoje, todos os títulos da dívida soberana que se emitem trazem incluída uma cláusula que diz que se alcançar uma certa majoração num hipotético processo de refinanciamento ou de renegociação da dívida, ficam fechados todos os caminhos judiciais..Isso fecha o caminho para os chamados fundos-abutres? Exatamente. Fundos a que, elegantemente, o setor financeiro chama holdouts..Qual é a importância deste acordo para a recuperação da economia argentina? Bom, nos próximos três anos alivia muitíssimo os juros. A conta ainda não está terminada na sua totalidade, mas o alívio da dívida oscila entre os 35 mil e os 42 mil milhões de dólares. Eu creio que vai ser entre os 38 mil e os 39 mil milhões de dólares, o que não é pouco. É uma poupança de mais de 40%..Este acordo, que é uma boa notícia para a Argentina, coincide também com a crise global provocada pela covid-19. Qual é o impacto da pandemia na Argentina? Tem sido duríssimo, duríssimo. Nós calculamos que a queda do PIB neste ano irá ser, por baixo, de 10%. Uma economia que já vinha de dez anos de estagnação - seis anos de Cristina [Kirchner], mais quatro anos de Macri, sendo certo que os últimos três anos de Macri já não foram de estagnação, mas de recessão. A economia já estava muito frágil, muito frágil. Nos últimos tempos do governo anterior procedeu-se a um endividamento realmente grande. Agora, sim, agora o país tem as ferramentas para começar..Como é possível, para um país como a Argentina, com sérios problemas de desigualdades, combater com 10% de recessão a pobreza? Há medidas específicas? Até agora, o governo tem tentado, dado que havia uma quarentena muito dura, a economia passou quase três meses quase totalmente parada, salvo os setores da alimentação, saúde, educação à distância, etc. Houve muito teletrabalho. Agora há um programa, graças a Deus, mas creio que um programa económico é essencialmente uma confiança dos atores económicos fundamentais. A Argentina não vai ter acesso ao crédito internacional durante algum tempo; ainda que a memória dos mercados seja frágil, eles têm sempre uma visão muito curta. Nós tivemos o último grande default em 2005, e agora, 15 anos depois, estamos lá novamente porquê? Porque foi-nos permitido que nos sobre-endividássemos, como aconteceu com a dívida anterior. Os mercados não têm uma visão a longo prazo, têm a visão muito curta da cultura financeira. Importa quanto se ganha na semana que vem ou, antes, quanto se ganha "ontem". Ao contrário daquilo que é uma cultura produtiva, na qual é necessário um programa de longa duração, um trabalho solidário entre o capital e o trabalho. Portanto, não acredito que a Argentina possa ir ao mercado no curto prazo. Assim, tem de financiar-se fundamentalmente no aforro interno. Se a taxa de poupança interna do país é baixa em comparação com outros países - não vou comparar com a China que tem uma taxa de 40% -, vamos ter de incentivar a confiança do setor financeiro..Mas há uma outra dificuldade, que é o facto de a Argentina ser um país que precisa de exportar muito, sobretudo no setor agroalimentar, e, hoje, o mundo está em crise. Como é que se estão a comportar as exportações? Bom, há a possibilidade de que se tenham modificado. Por exemplo, em vez de exportar grãos de soja para alimentar os porcos chineses, a Argentina está a discutir com o governo chinês sermos nós a produzir os porcos. Portanto, em vez de alimentarmos os porcos chineses, alimentarmos os nossos porcos para os exportarmos para a China. Sinceramente, a base para a recuperação económica está no encontro do setor agroalimentar com o setor do petróleo. A Argentina é também o segundo país com a reserva mais importante de lítio, que é um mineral estratégico. Esses três setores podem ser os que vão encabeçar a recuperação económica. Mas isso vai contar para os grandes números, não para os pequenos números. Quando falo dos pequenos números, refiro-me aos níveis de emprego. São indústrias de capital intensivo. O setor agroalimentar é de capital intensivo; o petróleo é de capital intensivo; a mineração é de capital intensivo. Nós exportamos valor agregado..Na relação do Mercosul com a União Europeia, nem todos estão satisfeitos, nem mesmo na Europa. O senhor está otimista? Eu estou otimista porque a Argentina quer assinar o acordo, mas não queremos assinar qualquer acordo. Há alguns rumores de que se quer partir o acordo original em dois setores - um acordo político e um acordo económico, pois seria mais rápido finalizar o acordo económico e o acordo político levaria muito mais tempo. O que acontece é que há cláusulas no acordo político que não sabemos porque é que lá estão. Por exemplo, o financiamento de desenvolvimentos para que as pequenas e médias empresas argentinas sejam competitivas. Ora, isso pertenceria à área económica e não política. Então, a verdade é que queremos assinar os acordos, mas temos de ler com atenção as letras miudinhas..As relações bilaterais com Portugal não necessitam deste acordo multilateral forçosamente. Há relações que podem avançar mais? Uma das instruções que recebi do nosso presidente é que temos de explorar as relações com Portugal. Na Argentina há um sistema eleitoral dentro dos partidos que se chama PASO - primárias abertas, simultâneas e obrigatórias - para eleger o candidato de cada aliança. É uma grande sondagem nacional, fiável. Não há maneira de mudar os números, etc. E deu que Alberto Fernández ganhou com 64%. Ele, ainda por eleger presidente, viajou para Espanha, numa viagem que, em princípio, era unicamente para Espanha, mas ele quis passar a fronteira e vir a Portugal para ver o que estava a acontecer cá. Quis ver como, depois da situação difícil que o país atravessou a seguir a 2008, Portugal teve a recuperação que teve distanciando-se da política da troika, das políticas da rigidez monetária, da ortodoxia, etc. Portugal é um país que, hoje, é observado, pelo menos antes da pandemia, como uma espécie de milagre económico. Como era antes a Irlanda, atualmente é Portugal. É um país que está a suscitar o interesse do mundo. Esse êxito refletiu-se naquela que foi a resposta sanitária à pandemia. Foi um dos países mais bem-sucedidos na luta contra o vírus. Essas políticas públicas verificaram-se também na disciplina social, que é difícil de conseguir na vida quotidiana. Eu não imagino muitos lugares no mundo onde vamos a um supermercado e vemos as pessoas a manter distância física, a aguardar para entrar... há muita disciplina social. Neste pouco tempo que cá estou já observei muita coisa nas pessoas. Primeiro, a gentileza, a cortesia, o bom trato. Um estrangeiro sente-se bem tratado em Portugal - eu tenho alguma dificuldade com o idioma, mas noto logo a vontade de auxiliar, de ajudar. Segundo, a disciplina social que existe, não é pela coerção da lei mas antes pela persuasão da lei..Há algum campo específico onde essa exploração das relações possa ser mais concretizada? Sim, creio que fundamentalmente na cooperação científico-tecnológica e na cultura. E porquê? Porque o intercâmbio comercial entre a Argentina e Portugal é pequeno. Na totalidade, e contando com tudo o que se importa e exporta, anda, mais ou menos, pelos 150 milhões de dólares..Então será na ciência e na cultura? Na ciência, na cultura e na política. E na política porquê? Porque nós entendemos a relação ou não a entendemos. Portugal tem uma grande relação com o Brasil, e o segundo ponto de interesse na América Latina foi a Venezuela, onde Portugal tem uma grande colónia. Disseram-me que entre portugueses e lusodescendentes há aproximadamente um milhão de pessoas. Todos sabemos o que se passou na Venezuela. Então, nós pretendemos ser um parceiro privilegiado de Portugal na sua relação com a América que fala espanhol. Há duas Américas Latinas, uma América Latina que fala espanhol e o Brasil; são duas Américas distintas. Nós podemos, respeitando essa relação histórica que existe entre Portugal e o Brasil e tratando de não nos imiscuirmos nela, ser um parceiro importante de Portugal na América Latina que fala espanhol. E pretendemos, respeitando também a relação histórica que temos com Espanha, ser um grande parceiro de Portugal..Como é que o governo da Argentina se posiciona atualmente em relação a Jair Bolsonaro e a Nicolás Maduro - dois opostos políticos, mas que aparecem neste momento como os maiores problemas da América Latina? A Venezuela vive no "chavismo" há 20 anos e o problema da Venezuela com Maduro, Chávez, Carlos Andrés Pérez foi criado pelos venezuelanos. Assim, cabe aos venezuelanos solucioná-lo. Nós não queremos ter qualquer tipo de intervenção, porque nós rejeitamos tudo o que seja países estrangeiros a meter a mão nos negócios dos outros países e nos seus problemas autóctones - o que não nos impede de reconhecer que a situação venezuelana está a criar problemas a países da região. O Norte do Brasil tem problemas porque tem uma grande afluência de imigrantes venezuelanos, o mesmo acontece com a Colômbia, com o Equador, e, em menor escala, com o Peru. Nós temos uma imigração venezuelana importante, mas é uma imigração muito qualificada. Somos um país de imigrantes, somos um país que se fez com gente que veio de outros lugares do mundo, nomeadamente da Europa, e, agora, de outros países da América Latina..Quando o peronismo estava no poder, antes da era Macri, a maior parte do tempo no Brasil estava Lula e, a seguir, Dilma Rousseff. Agora, com o peronismo de volta ao poder, está no Brasil como presidente Bolsonaro. Tornaram-se mais difíceis as relações entre os vizinhos? Nós somos profundamente respeitadores das decisões dos povos e das sociedades. O povo brasileiro elegeu Bolsonaro para seu presidente. Será nas eleições intercalares ou no fim do mandato, para a reeleição ou não, que se determinará se a eleição de Bolsonaro e o governo de Bolsonaro foi bom para o Brasil..Mas houve impacto nas relações bilaterais? Há diferenças de posição. Há diferenças de posição no que respeita ao tratamento do coronavírus, há diferenças na avaliação de qual deve ser a proximidade com a administração dos EUA, mas são questões... As relações entre os povos e os países sobrevivem aos governos, e a relação entre a Argentina e o Brasil é uma suficientemente importante para os dois países, para que um governo ou outro as afetem. Com uns, a relação é mais fácil, com outros é um pouco mais difícil, mas isso não acontece apenas com o Brasil, passa-se com muitos países da Europa, da América Latina..Fala-se muito do soft power da Argentina, que não é só do futebol e de Messi, é também da cultura. Essa cultura, que se associa a Borges e a Cortázar... E a Marechal. Não se esqueça de Marechal, que foi um escritor reconhecido pela política..É algo do passado essa pujança ou é ainda uma realidade atualmente? É uma realidade. Cortázar é um emblema da Argentina na Europa. É muito conhecido na Europa, grande parte da sua literatura foi criada em Paris. Borges é um nome da universalidade. Marechal é um escritor que é resgatado porque foi injustamente apagado e maltratado por motivos políticos. Marechal era peronista e, quando foi o golpe de 1955 contra o general Perón, apagou-se tudo o que tivesse qualquer ligação..Quando falo de hoje em dia também falo, mesmo com todas as crises acumuladas, com a pobreza que é maior do que no passado, o consumo cultural - as livrarias, os teatros - continua a ser muito grande na Argentina, os argentinos consomem muito bens culturais? Sim, sobretudo certos setores sociais, como em todas as sociedades. Nós temos uma avenida muito importante em Buenos Aires, a Avenida Corrientes, onde está o obelisco, que tem dez quarteirões plenos de cultura - galerias, livrarias de editoras grandes, de editoras independentes... a cultura, na Argentina está muito, muito bem. Ainda se vê a educação, a universidade, como meio de ascensão social..Uma última pergunta sobre o mais famoso argentino da atualidade, e que não é Messi... O que pensa sobre o Papa? Posso resumir numa só frase: o argentino Francisco é a única voz no mundo atual dos setores vulneráveis. Os pobres e todos os setores vulneráveis, a única voz consequente que têm é a de Francisco.