A retrospetiva dos teus filmes na Cinemateca tem um título que tu próprio escolheste: "Os filmes são histórias, o cinema é o modo de as filmar" - queres explicar?.Quero, é muito simples. Cito sempre o exemplo da Madame Bovary. Conheço várias adaptações ao cinema do romance de Gustave Flaubert: uma do Renoir, outra do Minnelli, outra ainda do Oliveira (a "Bovary do Douro", ou seja, Vale Abraão). São filmes maravilhosos e são filmes diferentes, tendo o mesmo texto como ponto de partida. Portanto, o cinema é, não as histórias, mas o modo de filmar as histórias. Gosto do cinema que se distancia das histórias, filtrando-as de maneira diferente..Hoje em dia, face aos filmes é comum as pessoas citarem imensos pormenores de uma história, sem referir, por exemplo que a certa altura vemos um rosto em grande plano ou um plano geral de uma paisagem.......ou onde está a câmara, ou que tipo de luz há neste ou naquele espaço. Nos meus filmes, a partir de certa altura, tive o cuidado de mostrar o artifício. Por exemplo, na abertura de Os Maias, tenho o Jorge Vaz de Carvalho - e não é gratuitamente que tenho um cantor de ópera - a ler o início do romance, mostrando atrás dele a parafernália que vou utilizar no filme: desenhos, guarda-roupa, cabeleiras... Está tudo exposto. Tenho sempre o cuidado de mostrar que aquilo é um espetáculo, tudo o que está no ecrã é falso: já matei uma série de personagens nos meus filmes... e depois tomo café com eles..É suposto o espetador saber que é um espetáculo?.Sim, e por isso tenho uma enorme inveja da ópera, em que todo o artifício do espetáculo está exposto: podes ter uma senhora de 100 quilos, com 60 anos, a interpretar uma adolescente - se cantar bem, se representar bem, vais às lágrimas! Isso tem-me levado a experimentar coisas como, por exemplo, filmar o canto, não em "playback", mas em direto..Citaçãocitacao"Tenho uma enorme inveja da ópera, em que todo o artifício do espectáculo está exposto".Foi o que aconteceu na longa-metragem mais recente, Um Filme em Forma de Assim..Exatamente. A música foi filmada em direto, em planos-sequência - a música não está "por baixo", passa a ser a matéria mais importante. Isso é uma derivação de uma ideia que em tempos formulei e à qual me mantenho fiel: a palavra como matéria, o texto como personagem..Já adaptaste, entre outros, Almeida Garrett (Quem És Tu?), Agustina Bessa-Luís (A Corte do Norte), Eça de Queirós (Os Maias) - alguma vez sentiste que o próprio texto resistia à tua vontade de o transformar em coisa cinematográfica?.Sempre, o texto ganha sempre..Ganha? Em que sentido?.O texto é sempre mais forte que o cinema. A única coisa que eu posso fazer é uma apropriação, uma espécie de violação do próprio texto. Por exemplo, houve quem achasse que, em Os Maias, a minha Maria Eduarda era muito frágil, como se estivessem à espera da Laura Antonelli a fazer uma personagem intensamente sexual. O certo é que, para mim, essa fragilidade era mais violenta, tornando o incesto ainda mais obsceno. Ao mesmo tempo, nos últimos filmes, por exemplo com o texto do Alexandre O"Neill em Um Filme em Forma de Assim, não acrescentei uma palavra - é um trabalho de "corta e cola"....Há aí um paradoxo: preservas o texto, mas reconheces que aquilo que estás a criar é totalmente outra coisa. O que pode dar origem a outro paradoxo: não receias que os puristas considerem que atraiçoaste o texto?.Não atraiçoei. Cortei e colei, fiz o meu filme. Por exemplo, quando fiz Tempos Difíceis, segundo Charles Dickens, tirei-lhe a carne, ficou o osso: tudo o que era melodrama desapareceu, ficou a luta de classes..É um trabalho semelhante à montagem?.É igual - aprendi com o Sr. Godard..Diz-se, por vezes, que esse regresso aos textos pode contribuir para que as pessoas leiam mais. Será assim?.Sem dúvida: com Os Maias, foram mais 50 mil exemplares que se venderam..Citaçãocitacao"Sempre me defini como um cineasta do tempo e da palavra".Toda essa integração de textos justifica que se diga que, enquanto cineasta, és também um historiador. Podemos lembrar o exemplo de Um Adeus Português, em 1986....Com esse filme, fui pioneiro na abordagem da Guerra Colonial. Mas não é exatamente sobre a guerra... é sobre o luto da morte e o silêncio dos portugueses..Silêncio?.Quando há acontecimentos graves, os portugueses não gritam - calam-se. Tive experiências dessas na minha família, não se falar de quem morreu. Os portugueses metem o luto cá para dentro. Já não é bem assim, mas a nossa história é feita muito disso, desse silêncio. Não gosto dos filmes de consolação, gosto dos filmes que inquietam, capazes de colocar perguntas - quem responde são as pessoas que vão ver os filmes..Faz sentido dizer que aquilo que filmas é também um certo luto por um Portugal utópico que não vai voltar?.Para mim, sim. Quando fiz a Conversa Acabada, o que era importante para um puto como eu, que estava a começar, era o modernismo português: Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Amadeo de Souza Cardoso, Almada Negreiros. Eram minoritários, mas tudo aquilo tinha qualquer coisa de grandioso, em paralelo com o que se estava a passar na Europa. Depois, aprendi com o Sr. Pessoa que a minha pátria é a língua portuguesa..Citaçãocitacao"O Sr. Oliveira ensinou-me que, não havendo dinheiro para a carruagem, então filmas a roda... mas filmas bem a roda!".É verdade que, além da literatura, a pintura, a matéria pictórica, é para ti igualmente importante?.Sim, claro. No início, o facto de eu ter sido também gráfico, podia funcionar como uma espécie de acusação... Acontece que o ecrã é como uma folha branca: temos de pôr coisas lá dentro. Censuravam-me o facto de os planos serem tão concebidos, a ponto de se perder a sequência. Mas isso tinha também que ver com os atores: eu gostava mais dos não-atores, tinha medo dos atores - agora já não tenho, ponho-lhes a mão, abraço-os, mas dantes tinha medo. Seja como for, sempre me defini como um cineasta do tempo e da palavra, não da montagem nem da ação. Na verdade, a minha montagem faz-se logo durante a filmagem: aquilo só cola de uma maneira, se um plano está mal, a sequência vai toda ao ar! Quando escrevo um argumento, já sei como vou filmar - o que tem também que ver com a economia, com aquilo que chamo o processo teatral. Não vale a pena filmar, filmar, filmar... Faço como no teatro: ensaio primeiro, trabalho um mês com os atores e filmo rapidamente - torna tudo mais barato..A partir de certa altura, esse sistema de fazer filmes parece tornar-se indissociável do produtor Alexandre Oliveira e da empresa Ar de Filmes?.É verdade. Existe entre nós um acordo pensado em função dos limites dos orçamentos e das necessidades de cada filme. Eu inventei uma ideia de serviço público no cinema português. Se só há filmes com o apoio do Estado, então temos de devolver alguma coisa. Por exemplo, com o Filme do Desassossego, feito a partir de Fernando Pessoa, andei de terra em terra, fiz 170 projeções... Com os mais jovens, fiz apresentações que não eram exatamente para explicar o filme, mas sim para os ajudar a perceber o que é o cinema..Que futuro podemos esperar?.Lembro-me, quando apareceu a televisão, de ver coisas coletivamente. Depois, cada um começou a ter a sua televisão no quarto. Depois, vieram os computadores, agora temos os telemóveis e isso produziu uma certa uniformização da imagem e do som. Os jovens vão ver filmes com 3000 planos... Será que ainda vês algum plano? Não vês nada. E os 10 mil efeitos sonoros? Não ouves nada. Agora, o que mais me inquieta é que a relação de muitos jovens com o ecrã não é com o cinema, mas os telemóveis. Já me aconteceu ir a uma sala de cinema e há quem não esteja a olhar para o ecrã, mas para "isto"... Têm medo daquela coisa grande que é o ecrã..Agora, na retrospetiva da Cinemateca, há uma secção ("Carta Branca") para a qual escolheste uma série de filmes de cineastas que te marcaram especialmente: John Ford, Robert Rossellini, Manoel de Oliveira, Jean-Luc Godard, etc. Que aprendeste com esta gente toda?.Aprendi muito. A começar pelo Sr. Oliveira que me ensinou que, não havendo dinheiro para a carruagem, então filmas a roda... mas filmas bem a roda! Ou o Ford, com quem aprendi que, se mexes a câmara, não mexas os cavalos, senão distrais as pessoas... É a ideia de filmar o essencial - gosto dos ascetas..A filmografia de João Botelho (nascido em Lamego, em 1949) é feita de muitos saltos e sobressaltos. Aí encontramos a sedução visceral de Fernando Pessoa - de Conversa Acabada (1981) a O Ano da Morte de Ricardo Reis (2020), passando por Filme do Desassossego (2010) -, a par da crueza burlesca de Tráfico (1998) ou da ágil contemplação das "outras artes", como acontece em Quatro (2014), viajando pelos universos de quatro artistas do "visual" e, por certo, para muitos espetadores, uma das revelações da retrospetiva que a Cinemateca lhe está a dedicar (com sessões diárias até 30 de setembro)..Dir-se-ia que as obras literárias, as personagens e as epopeias portuguesas que Botelho vai visitando - incluindo, importa não esquecer, a gesta de Fernão Mendes Pinto em Peregrinação (2017) - definem um impulso suavemente romântico. Mesmo através das convulsões mais angustiadas - lembremos a fascinante reinvenção do Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett, em Quem És Tu? (2001), filme assombrado pela pintura de El Greco -, pressentimos um mais além capaz de redimir os pecados das personagens e os vícios do espetador e do espetáculo..É uma ilusão magoada, esse romantismo que, afinal, já ninguém personifica. A reconversão cinematográfica de Os Maias (2014), de alguma maneira exponenciando as ambivalências da escrita queirosiana, será um exemplo modelar. Botelho percorre a paixão de ser português como uma aventura que não desemboca em nenhum final redentor - talvez porque, na nossa aprendida vulnerabilidade, não queremos que acabe..Vale a pena ver ou rever o trabalho de Botelho a par dos filmes, por ele escolhidos, dos mestres que o têm acompanhado. Aí encontraremos quem consegue filmar um drama de tribunal como o nascimento de uma ideia de nação: penso no sublime Young Mr. Lincoln (1939), de John Ford. E também quem sabe viver o cinema como a mais privada das artes, mas capaz de mobilizar os enigmas de estar vivo e filmar: veja-se a sessão em que serão projetados Passion, Le Travail et l"Amour (1982) e JLG par JLG (1984), dois metódicos exercícios confessionais de Jean-Luc Godard..Como complemento, convém não esquecer que o ciclo terá um catálogo a ser apresentado em sessão especial - com a presença de João Botelho, essa sessão está marcada para o dia 26, às 18h00, na esplanada da Cinemateca. JL.dnot@dn.pt