Morreram dois soldados portugueses ao serviço da ISAF nestes 20 anos. Depois desta retirada súbita, no verão passado, das tropas internacionais do Afeganistão, é de concluir que o comando João Roma Pereira e o paraquedista Sérgio Pedrosa deram a vida por nada? Tenho dificuldade em afirmar que tenham morrido em vão. Antes de estarem ao serviço da ISAF, encontravam-se ao serviço da política externa portuguesa. Eram instrumentos dessa política. Como membros das Forças Armadas nacionais naquele conflito, faziam parte do esforço de afirmação de Portugal no seio da Aliança Atlântica, resultante do dever de solidariedade a que Portugal se encontra obrigado como membro da NATO. A morte de soldados portugueses em operações internacionais no Afeganistão e noutros teatros de operações é o preço indesejado que por vezes se tem de pagar para que o país seja considerado e respeitado pelos seus pares..Viu a ISAF em ação. Como foi possível que militares altamente treinados das melhores Forças Armadas do mundo nunca conseguissem derrotar os talibãs, tantas vezes descritos como tropa-fandanga? É verdade que os militares da ISAF se encontravam altamente treinados, mas para outro tipo de operações, para operações de paz, não para fazerem frente a uma contrassubversão. O facto de as forças internacionais disporem de mais e melhor armamento e equipamento militar não lhes dava uma vantagem significativa para vencer este tipo de conflitos, que não se vencem com recurso apenas às ações cinéticas, mas sim à capacidade para se operar no domínio cognitivo do opositor, tanto combatentes como população. Neste campo, os rebeldes dispunham de uma nítida vantagem, estabelecendo os termos do combate..Até que ponto a ISAF era vista como invasora pelos afegãos, ou por parte deles? Essa ideia era alimentada permanentemente pelos talibãs, que recorriam a uma linguagem muito próxima daquela utilizada pelos movimentos de libertação em África, agora com uma componente religiosa de índole muçulmana. Foi uma ideia que as forças ocidentais nunca conseguiram contrariar. Os rebeldes acusavam os estrangeiros de serem potências coloniais, que estavam no país para saquear as suas riquezas, considerando as forças internacionais não só como invasoras mas também como infiéis. A intervenção internacional no país inseria-se numa guerra mais vasta contra o islão. As forças internacionais eram, além de invasores, infiéis, cruzados que queriam converter os muçulmanos ao cristianismo fazendo-os abandonar a sua religião em troca de dólares. Este argumento foi abraçado por largos setores da população afegã..A tradição guerreira dos afegãos, aliada a um terreno montanhoso, explica esta retirada americana, como antes a soviética e de certa maneira também episódios semelhantes dos britânicos no século XIX? Explica apenas parcialmente. Os afegãos tiveram sempre um forte sentimento de independência, manifestando uma profunda inconformidade com a subordinação a potências estrangeiras. Com base neste facto, vemos com imensa incredibilidade a forma simplista como as autoridades norte-americanas se convenceram de que iriam ter uma vitória fácil, que os talibãs iriam sucumbir e desaparecer e os contingentes internacionais seriam recebidos calorosamente. A explicação para o insucesso encontra-se fundamentalmente na forma como foi conduzida a campanha. Dois pecados mortais afetaram decisivamente a ação contrassubversiva internacional. Um prende-se com a ausência de um plano de atuação unificado e outro com a ausência de unidade de comando. As diferentes organizações internacionais no território tinham as suas próprias agendas, muitas vezes não coincidentes. Nem a ISAF dispunha de um plano unificado, nem a sua ação se pautava por um regime de prioridades claramente definidas. O outro tem a ver com a ausência da unidade de comando que uma campanha contrassubversiva exige, com uma autoridade que permitisse coordenar a ação militar e os esforços civis, com a existência de um primus inter pares..Da sua experiência no Afeganistão, o complexo mosaico étnico chegou a ser bem entendido pelas lideranças da ISAF no terreno? Nem o mosaico étnico nem a complexidade das redes sociais existentes naquela sociedade foram bem entendidas pelos atores internacionais. Falamos de uma imensa teia de alianças militares, hierarquias religiosas, tribos, grupos de famílias, etc. Referimo-nos a poderosas redes de interação social que não se podiam ter negligenciado. O entendimento dessa complexidade, sofisticação e interconexões ficou muito aquém do desejado. O estudo das estruturas tribais e do relacionamento entre os diferentes grupos, sobretudo no Sul e no Leste do país, onde predominavam os pastunes, deveria ter sido objeto de maior atenção. O conhecimento adequado das estruturas tribais teria ajudado a criar plataformas de diálogo e negociação, tanto com os líderes locais como com a população. A religião e as elites religiosas foram outro assunto com que se deveria ter lidado de outra forma. Elas eram também um público-alvo extremamente importante. Se corretamente tratadas, podiam ter sido parceiros de grande utilidade e, como tal, contribuírem para separar os rebeldes da população. O modo negligente como esta frente foi considerada teve efeitos devastadores para as forças internacionais..A invasão do Afeganistão em 2001 foi tida como justa retaliação americana pelo 11 de Setembro, ao contrário da guerra no Iraque, dois anos depois. O fracasso americano em ambas, num caso deixando o país regressar às mãos dos aliados da Al-Qaeda e no outro oferecendo um país à influência iraniana, é sinal de incompetência política, mais do que militar? Foi fundamentalmente incompetência política. Os talibãs deixaram de ser aliados da Al-Qaeda há muito tempo, embora alguns grupos, como a Haqqani Network, tenham colaborado esporadicamente e ao nível tático com o que restava da Al-Qaeda no Paquistão, mas não ao nível estratégico, dadas as diferenças ideológicas que os separavam. Era uma colaboração de conveniência, apenas em situações muito concretas. Enquanto a Al-Qaeda tinha um projeto jihadista global, os talibãs eram uma organização paroquial cujo objetivo se limitava ao Afeganistão e a dar-se bem com os países vizinhos. Foi um erro não se ter tirado partido destas divisões. Essa compreensão teria simplificado a obtenção de uma solução política, que não teria de passar pela solução de impor dogmaticamente uma democracia jeffersoniana a uma sociedade pré-moderna..Ficou surpreendido com a desagregação das Forças Armadas afegãs assim que a ISAF se retirou? Sim, principalmente a rapidez como ocorreu e a ausência de resistência, apesar de existirem indícios claros do abandono prolongado a que as Forças Armadas afegãs tinham sido votadas pelo governo central, assim como outros setores da sociedade. Muitos soldados tiveram de vender o armamento aos talibãs para subsistir e arranjar dinheiro para darem de comer às suas famílias. Em agosto de 2021, havia unidades com seis meses de salários em atraso. Não é, por isso, de estranhar o elevado número de deserções. A capacidade militar das Forças Armadas afegãs, como se veio a comprovar, encontrava-se muito distante daquela que era oficialmente apregoada. Mas a grande surpresa foi, sem dúvida, a fuga dos responsáveis governamentais, começando pelo presidente da República, Ashraf Ghani, e dos seus lugares-tenentes, responsável pela aceleração dos acontecimentos. Até os talibãs foram surpreendidos. O seu plano de constituir um governo de transição com elementos do governo de Ashraf Ghani, uma forma de partilha de poder, nunca se concretizou devido à sua fuga. Perante o vazio de poder, os talibãs entraram em Cabul. A fuga do presidente e dos seus colaboradores diretos causou o pânico entre a população, que procurou desesperadamente refúgio no aeroporto de Cabul, com as consequências conhecidas por todos..Alguém, além dos talibãs, fica a ganhar com um Afeganistão de novo pária? Nem os talibãs ganham. Duvido que o Afeganistão se venha a tornar um Estado pária, mesmo que, no rescaldo da nova Constituição, o regime seja profundamente reacionário e retrógrado. O Afeganistão não perderá, por exemplo, o estatuto de observador na Organização de Segurança de Xangai. O envolvimento e empenho dos Estados vizinhos é muito grande, para que se possa tornar um Estado pária. Têm todos um grande interesse na estabilidade do país, tanto política como securitária, independentemente da natureza do regime que se vier a estabelecer..Entre condenação ao isolamento total e reconhecimento crítico, que opção deverá tomar a comunidade internacional em relação ao regime talibã, que tenta ser um pouco menos obscurantista do que na sua anterior versão? É ainda difícil prever com exatidão o que será o novo regime. Tudo depende do arranjo de forças no seio do movimento talibã, que já começou a ganhar forma, com os sucessivos alargamentos do governo de transição. Um Afeganistão em que prevaleçam as ideias dos grupos moderados será seguramente diferente daquele em que prevalecerem as ideias, por exemplo, da Haqqani Network. O isolamento total do novo regime não vai acontecer. Nem os talibãs nem os países vizinhos estão interessados em que isso aconteça. Apesar disso, não é provável que no curto prazo o novo regime seja reconhecido, mesmo pelos países da região. A reação dos atores internacionais deve ser vista a dois níveis: o imediato, que consiste fundamentalmente em prestar ajuda humanitária de emergência para mitigar a situação de fome que se vive há vários meses no país, agravada pela seca, que destruiu cerca de 40% das colheitas do ano. O sistema das Nações Unidas tem grandes responsabilidades neste domínio, assim como a comunidade de doadores. Esse auxílio visa salvar vidas e não sufragar o regime. E o curto e médio prazo, em que se tem de pensar no relançamento económico, que se encontra comprometido devido à falta de recursos financeiros. A retenção 9,5 mil milhões de dólares das reservas afegãs pelos EUA e a suspensão de verbas prometidas pelo FMI, entre outros apoios, nomeadamente da UE, igualmente suspensos, vieram agravar significativamente a situação económica do país, extremamente dependente da ajuda externa. Pelas consequências negativas que isso poderá trazer, não será avisada a ostracização política do novo regime. Fará mais sentido o apoio seletivo e condicional, de acordo com o comportamento que os talibãs vierem a ter..Perante a atuação americana no Afeganistão, uma retirada decidida muito à revelia dos aliados europeus, deveria a UE apostar forte num pilar militar, mesmo mantendo-se a NATO? A atuação unilateral dos EUA não se limitou à retirada. Aconteceu o mesmo em 2001, quando invadiram o país. Ficou célebre a resposta de Rumsfeld aos países ocidentais que mostraram vontade em cerrar fileiras com os EUA: a missão determinava a coligação, indicando não necessitarem da ajuda dos seus parceiros e aliados, e da NATO em particular. Lembraram-se de Santa Bárbara mais tarde, quando se envolveram, em 2003, no Iraque e perceberam que não tinham capacidade para gerir simultaneamente duas crises estratégicas daquela natureza e dimensão. Mudaram então radicalmente de discurso, apelando à solidariedade dos seus aliados da NATO. Apesar dos desenvolvimentos verificados ao nível da UE para reforçar a sua componente militar, muito em particular a sua autonomia estratégica, o desenvolvimento de um pilar militar no âmbito da Política Comum de Segurança e Defesa será de alcance limitado, porque os EUA não se sentem confortáveis com esses desenvolvimentos e porque não existe no seio dos Estados-membros da UE um consenso para se avançar nesse sentido. Essa situação não sofreu uma alteração radical com a saída do Reino Unido da União..Que ensinamento pessoal lhe trouxe a sua experiência no Afeganistão? Foram muitos, mas dois parecem-me particularmente relevantes. O primeiro foi aprender a respeitar os afegãos e não lhes impor o meu pensamento. Os afegãos são tremendamente orgulhosos. Sempre que o tentei fazer, corria mal. Lidar com essa situação exige abertura de espírito e algum tempo de aprendizagem. O segundo, que decorre do primeiro, prende-se com o perigo de se pretender fazer engenharia social em sociedades que se desconhecem. A complexidade das sociedades pré-modernas supera largamente a das sociedades industriais..leonidio.ferreira@dn.pt