A crise na Venezuela já alastrou ao Brasil em forma de dores de cabeça para Jair Bolsonaro, que apoia o autoproclamado presidente Juan Guaidó. Primeiro, pela divisão que procurou no seu governo: enquanto uma ala não põe de parte uma intervenção militar no país, outra recusa liminarmente qualquer participação. Depois, pelas críticas geradas no Congresso: deputados da base de apoio do presidente da República criticam o auxílio financeiro concedido aos refugiados venezuelanos em detrimento dos pobres brasileiros..A cada dia da crise, dobra ou triplica a chegada de refugiados ao Roraima, estado brasileiro que faz fronteira com a Venezuela - só no dia 30 de abril foram contabilizados mais de 800 e no dia 1 de maio cerca de 600. Bolsonaro resolveu, portanto, enviar pouco mais do equivalente a 50 milhões de euros para o acolhimento dessas pessoas. Um número considerado excessivo pelos parlamentares roraimenses.."Enquanto brasileiros do Roraima estão passando fome e não há dinheiro para investir em políticas públicas, há dinheiro para manter venezuelanos?", questionou-se Johnathan de Jesus, deputado do PRB, partido ligado à Igreja Universal do Reino de Deus que apoia em peso Bolsonaro. Por anunciar publicamente essa medida, Jesus teme que o presidente piore ainda mais a situação: "Sabendo disso, mais gente vai querer vir para o Brasil", disse o eleito citado pelo jornal Folha de S. Paulo. "O valor que ele enviou para os venezuelanos é maior do que o orçamento de muitas cidades do estado, eu defendo o governo, mas quero que ele dê certo para os brasileiros", acrescentou. Segundo as contas do deputado, o governo já gastou cerca de três mil euros por venezuelano: "Comparem isso com o Bolsa Família...", desafia Jesus a propósito do programa social iniciado nos governos do PT..Johnathan de Jesus não é o único deputado do Roraima indignado com a atitude presidencial. Segundo o próprio, a quase totalidade da bancada do Roraima no Congresso Nacional, composta por oito deputados federais e três senadores, está indignada com a atitude presidencial. "Essa briga não é nossa, deixa os EUA brigarem com a Venezuela, eles estão brigando pelo petróleo", completou..A ala militar do governo, de que fazem parte o vice-presidente Hamilton Mourão e seis ministros generais, concorda que o Brasil deve pôr de parte a ideia de intervir no conflito, restringindo a sua participação à tomada de posição inequívoca por Guaidó e pelas forças rebeldes das Forças Armadas venezuelanas. Além de conceder asilo político na embaixada brasileira em Caracas a militares dissidentes - 25 deles já pediram mesmo esse asilo, mas o processo não se completou porque, segundo Bolsonaro, "a ditadura de [Nicolás] Maduro criou cordões de isolamento e dificultou a chegada ao local"..No entanto, essa ala teme que, se a escalada da violência aumentar, o outro grupo em que se sustenta o governo - apelidado de "ideológico" - convença Bolsonaro a intervir. Dois dos mais destacados expoentes dessa ala, o ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo e o deputado Eduardo Bolsonaro, que participaram ao lado do presidente na reunião com Donald Trump durante o encontro bilateral entre os países em Washington em que a situação na Venezuela foi o ponto principal, estão entre os atraídos por uma intervenção..Sobre o tema, Bolsonaro disse que "por enquanto não há nenhum contacto" sobre a possibilidade de os EUA requererem o Brasil como base para eventual operação na Venezuela e que "é próxima de zero" a eventualidade de o país entrar direta ou indiretamente num conflito armado no país vizinho. "Se porventura vier a haver algo sobre isso, o que é normal, o presidente reúne o Conselho de Defesa, toma a decisão e participa ao Parlamento.".Esta frase, no entanto, gerou novo embaraço a Bolsonaro. Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, disse que de acordo com a Constituição cabe ao poder legislativo e não ao executivo a decisão de autorizar uma guerra. Maia, cujo apoio a Bolsonaro será decisivo para a aprovação da reforma da Previdência, principal objetivo do governo em 2019, afirmou depois que não quis entrar em conflito com o presidente. "Fiz apenas uma ressalva respeitosa", disse o deputado..Segundo a imprensa, no entanto, Bolsonaro não queria marcar território perante Maia quando disse que a ele é que competia decidir sobre a intervenção - e sim perante Mourão, o seu vice-presidente, com quem tem relação conturbada..O governo, por outro lado, não quer sofrer os custos políticos de defender o "cavalo perdedor" na guerra de poder na Venezuela. Por isso, para Bolsonaro "não houve derrota nenhuma de Guaidó". "Eu elogio e reconheço o espírito patriótico e democrático por lutar pela liberdade no seu país, as informações de que dispomos é de que existe uma fissura, sim, que cada vez mais se aproxima das cúpulas das Forças Armadas e que então existe a possibilidade de o governo ruir pelo facto de alguns dessa cúpula passarem para o outro lado". Bolsonaro estima que "em duas semanas" a situação possa mudar..Um outro efeito direto da crise, entretanto, é a subida do preço da gasolina. Nas últimas semanas, Bolsonaro já foi criticado por intervir no preço, de forma a conter a revolta de camionistas, e com isso gerar uma perda aproximada de oito mil milhões de euros no valor de mercado da estatal Petrobras. "Com o que ocorre lá na Venezuela e os embargos, o preço do petróleo a princípio sobe e temos de nos preparar dada a política de não intervenção da nossa parte. Podemos ter um problema sério dentro do Brasil como um efeito colateral do que acontece, vamos conversar para nos antecipar a problemas de fora que venham de forma bastante grave.".O presidente também demonstrou preocupação com o fornecimento de energia elétrica para o Roraima, cujo abastecimento depende da Venezuela. "A situação é emergencial e não podemos continuar de forma eterna com a energia de óleo diesel porque o resto do Brasil paga um pouco mais de mil milhões de reais [perto de 250 milhões de euros] para a energia de Roraima.".Na terça-feira, Guaidó anunciou ter o apoio de parte das cúpulas das Forças Armadas venezuelanas e incitou os opositores do regime do atual presidente Nicolás Maduro a manifestarem-se diariamente nas ruas naquilo a que chamou de Operação Liberdade..Os dias seguintes foram marcados por confrontos entre oposicionistas e as forças de segurança, resultando em dois mortos e mais de cem feridos, segundo organizações não governamentais..A alta cúpula militar não chegou a oficializar apoio a Guaidó e foi Maduro quem, horas depois, fez uma marcha acompanhado de oficiais..Há cerca de 15 anos, a Venezuela enfrenta crescente crise política, económica e social. O país vive agora um colapso económico e humano, com inflação acima de 1 000 000% e milhares de venezuelanos refugiados noutros países da América Latina, entre os quais o Brasil.