Deves estar determinado a mudar o mundo com os teus filmes, mesmo que nada mude." As palavras do grande mestre da animação japonesa intimidam pelo nível de exigência. Como se quisesse dizer: se não for esta a disposição de um realizador, não vale a pena. Ouvimo-lo falar assim em 10 Anos com Hayao Miyazaki, de Kaku Arakawa, um documentário em quatro partes (disponível gratuitamente no site do canal NHK - World Japan) que acompanha o seu moroso e exaustivo processo de trabalho no período que vai desde os primeiros passos da conceção de Ponyo à Beira-Mar (2008) até ao lançamento do último As Asas do Vento (2013), após o qual anunciou a reforma. A chegar agora ao posto dos 80 anos de idade, e tendo renovado a esperança dos fãs com a notícia de um novo projeto em 2017, será que Miyazaki mantém uma filosofia de workaholic?.Numa entrevista ao jornal japonês Asahi Shimbun, em setembro passado, confessou: "Já não consigo trabalhar durante toda a semana sem descansar um único dia." Mas o abrandamento do ritmo não significa que a paixão tenha mudado. Na verdade, o documentário de Arakawa já mostrava um Miyazaki, aos 69 anos, a lidar com uma certa insegurança que se confunde com fragilidade. Sentado à secretária, tem sempre um cigarro por acender pendurado nos lábios, volta e meia coça vigorosamente a cabeça e, nos momentos de maior ansiedade, a lente capta um tique nervoso na perna, com o pé meio fora do chinelo: esta é a imagem do génio da animação a criar. Uma imagem tão humana quanto as suas oscilações de humor, entre o gaiato alegre e o irritadiço..Sim, por trás do sorriso franco de Miyazaki há também estados de rabugice e introspeção. Desde logo, só se deixou filmar por Arakawa na condição de ser apenas o realizador com uma câmara a segui-lo, e não um aparato com uma equipa. Essa informalidade permite captar pormenores deliciosos, como aquele, logo no começo do primeiro episódio, em que Miyazaki chega de manhã ao seu estúdio privado - pertíssimo do Studio Ghibli - e diz "Bom dia" para uma sala vazia. "Quem é que está a cumprimentar?", pergunta Arakawa. Ele responde, simplesmente: "Os residentes. Não sei quem são, mas estão aqui." Numa rápida montagem visual surgem os espíritos da floresta de A Princesa Mononoke (1997), mas também nos lembramos dos bichinhos negros que habitam a casa para onde vão morar as irmãs em O Meu Vizinho Totoro (1988)..Quer isto dizer que o imaginário de Miyazaki está presente no próprio quotidiano, como uma linha invisível que deixa passar as suas criações para a realidade "normal". Ele diz mesmo: "É nos cenários quotidianos e normais que descubro o extraordinário." E é fácil perceber essa tendência do cineasta, por exemplo, na maneira como se inspira numa estação de autocarros ou na Cavalgada das Valquírias de Wagner, neste caso para criar um tsunami de peixes em Ponyo à Beira-Mar..Para ele um filme tem de vir do coração, não há outra maneira. E a exigência, mencionada no início, de procurar "mudar o mundo" está também na austeridade com que olha para o trabalho do filho, Goro Miyazaki, a seguir os seus passos, que é como quem diz, à sombra de um gigante do tamanho de Totoro..O novo projeto de Hayao Miyazaki, que se prevê estrear ainda neste ano, chama-se How Do You Live? (em português, Como Vivem?) e é a adaptação de um clássico da literatura japonesa centrado no crescimento psicológico de um rapaz de 15 anos, a partir da sua relação com o tio. Era uma memória de leitura que o realizador guardava com carinho dos tempos da faculdade e que vai chegar ao ecrã pelo traço do seu desenho..Nascido em Tóquio a 5 de janeiro de 1941, Miyazaki não foi uma criança com a infância mais risonha. Quando tinha apenas 6 anos a mãe ficou doente com tuberculose vertebral, e por essa altura, relata, experimentou um estranho sentimento: desejava não ter nascido. Encontrou então consolo nos desenhos de manga. Pode dizer-se que o seu percurso na animação começou por aí, e concretizou-se depois de sair da faculdade, movido pela vontade de provar às crianças que sim, todas são dignas de ter nascido..Para além da robusta fantasia e da consciência ecológica que marcam o essencial da sua obra, a mãe é uma figura recorrente plasmada em várias personagens, nomeadamente, a mãe hospitalizada das duas meninas em O Meu Vizinho Totoro e a jovem tuberculosa de As Asas do Vento..Desde o seu primeiro sucesso, Nausicaä do Vale do Vento (1984), quando tinha 43 anos, passando pela fundação do Studio Ghibli com Isao Takahata, até aos grandes frutos da sua imaginação - O Castelo no Céu (1986), A Princesa Mononoke (1997), A Viagem de Chihiro (2001), Castelo Andante (2004), e claro, o icónico Totoro -, Miyazaki orientou-se por um desígnio aparentemente simples: "Eu quero que as pessoas se divirtam."