António Costa e o holandês esparvoador
Neste jornal, no texto de Paulo Pena sobre a crise financeira, ele cita Grégory Claeys, do Instituto Bruegel, em Bruxelas. Claeys é especialista de macroeconomia, mas o que me interessa, aqui, é o nome do instituto onde ele trabalha, um dos mais reputados think tanks europeus de economia. Que faz Bruegel, o pintor flamengo Pieter Bruegel, o Velho (1525-1569), na tabuleta de uma casa de homens de números?
Justamente é uma homenagem àquele cujo pincel simbolizou a entrada da gente comum na pintura europeia. Não a glorificação de santos e de reis, mas o inovador olhar sobre a vida e os costumes dos camponeses, os rituais, refeições, danças e jogos. Pieter Bruegel, o Velho, pintou a Europa dos homens e das mulheres comuns. Daí os pensadores da economia europeia atual terem prestado tributo ao colega pintor que os ensinou a olhar para quem ela serve, a economia.
E tudo isto entronca na polémica da semana. O ministro das Finanças holandês Wopke Hoekstra mandou bugiar qualquer ação financeira europeia comum para combater a crise que vem aí por causa do coronavírus. Na segunda-feira, ele exigiu que Espanha e Itália, os dois países mais atingidos, fossem sujeitos a uma sindicância da União Europeia, para saber porque estavam uns países preparados e outros não. A Holanda, como se sabe, preparou-se: há anos que mina as finanças dos seus parceiros, sugando, através de manigâncias financeiras, os impostos de empresas de outros países europeus (incluindo Portugal).
Na terça, o jornal holandês De Volkskrant fez manchete, resumindo as palavras do ministro Hoekstra: "Um manguito holandês aos países do sul." Mais exatamente, o título dizia "middelvinger", dedo do meio, para assinalar que Hoekstra teve uma posição muito tesa. Na quinta, sobre a indecência de Hoekstra, e não me estou a referir à imagem gestual do jornal, mas ao significado político das palavras do ministro holandês, António Costa disse, e por duas vezes: "Repugnante." E na sexta, perguntado por uma jornalista se não se arrependia de ter usado "repugnante", António Costa lembrou-lhe o que se vive: "A União Europeia faz o que tem a fazer ou acaba."
Na verdade, indecoroso não foi o jornal com a sua imagem, nem Costa com a sua rudeza. Foi o político Hoekstra com o seu egoísmo. A crise cria o cada um por si. Contou ontem o El País que em Madrid surgiram esparvoados julgando os outros à pressa. Os "polícias de varanda" insultam e cospem, das janelas e varandas, sobre enfermeiros e médicos a caminho do hospital, porque os julgam infratores da ordem de recolher...
Parece um hábito que à varanda dos políticos holandeses há tendência em sacar o falar de cima mais rápido do que a pequena sombra e a dignidade deles merecem. Há três anos, em março de 2017, outro ministro das Finanças holandês, Jeroen Dijsselbloem, disse que "os europeus do sul" gastam o seu dinheiro em... "copos \u2028e mulheres". Escrevi, então, uma crónica passeando pelos grandes pintores holandeses que aprenderam com o seu pai espiritual, o grande Pieter Bruegel, o Velho. \u2028O se segue é essa crónica.
"Ah, o que o noticiário me trouxe de arte e luxúria! Passeei-me pela Holanda, quando ela era grande e não só entreposto de impostos dos outros. Rembrandt em autorretrato, uma mão pousada no nadegueiro da sua mulher Saskia e outra levantando o cálice. Mulheres e copos. Vermeer é mais vinho branco, límpido como as suas sedas. Frans Hals, em Jovem e a Sua Amada, faz ambos de maçãs de rosto tão vermelhas que só pode ser do tintol que o rapaz levanta em glória.
Já Gerard der Borch, pintor dos ricos, só tem garrafas de cristal trazidas por criados. Jan Steen, pintor de tascas (bordeeltjes, cenas de bordel ou tabernas, são mesmo um género da grande pintura flamenga), no óleo Vinho Holandês, com uma bêbada de seio nu e coxas ao léu, homem com a mão marinhando pela perna dela e um querubim, nem 6 anos, já abotoado ao copo. Gabriel Metsu vai com a mulher para a taberna e pinta o casal agarrado, entre si e ao vinho. Copos e mulheres...
E eu, confesso, limitei-me a ler uma brochura da Académie Amorim, fundação de Américo Amorim, um homem do sul da Europa, grato ao vinho e à cortiça. A brochura chama-se O Copo de Vinho na Pintura Holandesa na Idade do Ouro, porque os verdadeiros europeus estão gratos à grande Holanda. Já para responder a Jeroen Dijsselbloem, um curso rápido de arte portuguesa chegava: um caralho das Caldas para ti, pequeno holandês." Fim da crónica antiga.
Se a Europa infelizmente acaba, cedo três das minhas palavras para António Costa as ofertar aos pequenos holandeses.