"Antes de irmos a outros planetas, temos de melhorar o destino da Humanidade aqui na Terra" 

Edgar Morin esteve em Lisboa e conversou com o DN sobre o risco de uma Terceira Guerra Mundial, as alterações climáticas e as desigualdades criadas pela globalização. O filósofo francês, de 102 anos, falou também da ligação a Portugal, em especial ao amigo Mário Soares, que conheceu no exílio deste em Paris.
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Conversar nem que seja uns 20 minutos com Edgar Morin é um privilégio, mesmo que sentados no pátio do Instituto Superior de Agronomia, após a segunda recente intervenção pública do filósofo francês em Lisboa, com dezenas de pessoas à espera para tirar uma selfie e os aviões a passarem com um barulho que, por vezes, ameaçava abafar as respostas de grande lucidez a meia dúzia de perguntas que houve tempo de fazer. Esta é, pois, a entrevista possível, não a entrevista que ambicionei fazer a um pensador genial, que leio desde quando era estudante e a quem ainda no dia da chegada dediquei um editorial com o título "O sábio Morin em Lisboa".

Toda a gente ficou impressionada com a meia hora, ou até um pouco mais, durante a qual Morin falou de improviso durante a conferência inicial organizada pela CPLP no Museu do Oriente, abordando a conquista espacial, a inteligência artificial, a guerra. Tudo mostrando um poder de análise que surpreende aos 102 anos, e recorrendo sempre que se justificava - por exemplo quando analisou a invasão russa da Ucrânia - à sua experiência de vida, uma longa vida que inclui ter sido resistente contra os nazis na França onde nasceu, depois de a família de judeus sefarditas ter emigrado do Império Otomano. Nahoun é o verdadeiro nome de Edgar, Morin o nome de guerra que conquistou no maquis.

Foram dois dias intensíssimos, que levaram a sucessivos adiamentos de uma entrevista prometida ao DN. Na segunda-feira dia 4, o da iniciativa organizada pela CPLP e a Agrimútuo, a manhã de Edgar Morin e da mulher, a socióloga marroquina Sabah Abouessalam, começou com uma ida ao palácio de Belém. Lá, o presidente Marcelo Rebelo de Sousa condecorou o filósofo com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique, para grande alegria, sei, de uma personalidade que conhece e aprecia Portugal, os portugueses, e a sua história e cultura, tendo sido traduzido e publicado entre nós logo muito cedo. Esta condecoração explica um certo atraso no horário da conferência que tinha como ponto alto a palestra "O Atlântico - A Nova Carta do Humanismo", cujo encerramento coube ao presidente da câmara de Lisboa, Carlos Moedas, e teve uma assistência cativada pelas palavras de Morin, estando a embaixadora de França, Hélène Farnaud-Defromont, sentada na primeira fila.

Terça-feira dia 5, houve outro momento alto desta passagem de Morin por Lisboa, dessa feita na Sala de Atos do Instituto Superior de Agronomia. Sob o mote de "o poder da língua e o futuro da humanidade", tratou-se de uma conferências organizada por João Pestana Dias, do THE KLUB, juntamente com o Instituto do Mundo Lusófono, sedeado em Paris. Foi ao final da tarde, e apesar de haver uma sala disponibilizada para a entrevista, Morin preferiu conversar um pouco ali no pátio, tendo a seu lado a mulher, a quem segurou a mão enquanto conversava. Sabah Abouessalam pediu gentilmente que não fosse demorada a entrevista, pois o filósofo começava a dar sinais de cansaço. Fui obviamente compreensivo. Despedi-me do casal, que me disse ter mesa marcada naquela noite numa casa de fados em Alfama, acompanhado de amigos, entre eles Isabelle de Oliveira, professora na Universidade Sorbonne-Paris III e presidente do Instituto do Mundo Lusófono, decisiva para esta entrevista acontecer.

Na conferência que fez em Lisboa no auditório do Museu do Oriente falou na conquista do espaço. Pensa que o futuro da humanidade pode passar pela colonização de novos planetas?
Acredito que será técnica e cientificamente cada vez mais possível. Afinal já podemos ir à Lua, e será também possível ir a Marte. Os planetas do nosso sistema solar serem explorados, penso que é uma possibilidade. Mas eu penso que antes de pensarmos em ir a esses planetas temos de melhorar o destino da humanidade aqui na Terra. A ideia dos transhumanistas de aumentar os poderes do Homem de uma forma ilimitada é a mesma utopia que nos conduziu ao desastre ecológico. Acreditámos que íamos dominar a natureza, mas finalmente em vez de a dominar, degradámo-la e degradámos a nossa civilização. Na minha opinião, temos de pensar em melhorar as relações humanas, em criar mais compreensão humana, antes de pensarmos em partir à conquista do espaço.

Pensa que as alterações climáticas e os atentados contra a natureza são hoje a maior ameaça ao nosso planeta?
As alterações climáticas são o último episódio de uma crise ecológica que começou nos anos 70 do século passado e que foi diagnosticada pelo professor Meadows no seu relatório. Foi a degradação da fauna e da flora, a degradação da nossa alimentação devido à agricultura industrial, e que ainda por cima esteriliza os solos. Esta crise ecológica está agora agravada pelas alterações climáticas que vão provocar migrações, desastres, inundações, secas. É um problema urgente, um problema que devíamos ter começado a tratar desde o século passado, mas que adiámos resolver porque os Estados, os governos e mesmo a opinião pública não tiveram consciência da gravidade.

Mas para resolver a crise climática seria preciso uma forte cooperação internacional entre as grandes potências. E neste momento, pelo contrário, vivemos uma situação de guerra na Ucrânia e em consequência disso um choque entre o Ocidente e a Rússia. Pensa que esta guerra na Ucrânia, com tudo o que envolve, pode resultar num ataque nuclear? Acha possível que se assista a uma catástrofe nuclear?
Claro que é uma possibilidade porque vemos cada vez mais a escalada entre os dois campos, está a ficar mais grave. E vemos cada vez mais uma intervenção militar, não só do Ocidente, para apoiar os ucranianos, mas também da China ou de outros, em favor da Rússia. De facto, vemos que esta guerra, ainda localizada no território da Ucrânia, já se tornou internacional. E tornou-se também já uma guerra económica internacional, que afeta o abastecimento de muitos países, africanos e outros, e que afeta também as matérias-primas, e todo o tipo de abastecimento, o que pode provocar uma crise económica. Mas a crise económica é apenas um dos aspetos. Se o conflito se generalizar iremos assistir a uma Terceira Guerra Mundial, de um novo tipo.

O senhor viveu a Segunda Guerra Mundial...
Vivi-a, fiz parte da Resistência.

Sim, foi resistente em França contra os nazis. A vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial foi o momento mais importante da sua vida?
Sem dúvida, sem dúvida.

Para si, foi mais uma luta enquanto judeu, enquanto francês ou enquanto ser humano?
Enquanto ser humano, claro, sobretudo como ser humano. O que quero dizer é que hoje, quando penso na Segunda Guerra Mundial, apercebo-me das coisas que na altura não quis ver. Por exemplo, quando vejo hoje os bombardeamentos na Ucrânia, lembrei-me de que a aviação norte-americana bombardeou todas as grandes cidades alemãs, massacrando milhares e milhares de civis. Mas nós não queríamos ver essas coisas, queríamos a vitória aliada. Eu na época era comunista, era cego em relação à Rússia, à União Soviética, quando Estaline tinha mandado executar oficiais polacos em Katyn. Por isso apercebi-me agora, graças à guerra na Ucrânia, que na guerra do Bem contra o Mal, em que na Segunda Guerra Mundial o mal eram os nazis, no Bem também havia mal: os bombardeamentos americanos e as atrocidades de Estaline, que lhe permitiram colonizar a Polónia. Portanto, desconfio muito agora desta guerra porque vai levar a catástrofes históricas.

Qual a sua opinião sobre as consequências da globalização? Há mais desigualdades agora no mundo e nas sociedades europeias devido à globalização?
Infelizmente a globalização está ligada ao domínio do lucro sobre o mundo, à hegemonia do lucro, que aprofunda as desigualdades e que é, em si, um factor de crise. Vemos também por todo o lado a criação de novas ditaduras, há uma crise da democracia mundial. Estamos numa situação extremamente grave em que é preciso pensar e reagir.

A queda do Muro de Berlim foi um momento de otimismo para si, que conheceu a Guerra Fria?
Perfeitamente. Fiquei muito feliz. Mas também aqui... a chegada de Gorbachev ao poder foi um momento de otimismo para mim. Mas infelizmente vimos que houve fenómenos muito regressivos depois na Rússia. E quanto à Alemanha, é bom que esteja reunificada, mas hoje com a guerra remilitarizou-se e isso cria um problema para o futuro.

Professor, como é visitar Portugal e ter tanta gente a querer ouvir as suas ideias? Para si, aos 102 anos, é sempre uma experiência nova falar em público?
Fico sempre feliz. Porque acredito nas minhas ideias e quando vejo que são acolhidas e partilhadas dá-me um prazer imenso. Porque não é só a minha pessoa, eu acredito tanto na virtude do que chamo de pensamento complexo que quando vejo as pessoas adotá-lo fico feliz. E aqui, por exemplo, fiquei muito feliz de ver tantas pessoas incorporá-lo.

Tem uma relação especial com Portugal?
Oh, tive aqui tantos amigos! Venho a Portugal desde 1960, participei na revista O Tempo e o Modo, que tinha problemas com a censura, tive caros amigos, que infelizmente já morreram. António Alçada Baptista, Helena Vaz da Silva, Mário Soares, que conheci quando ele estava no exílio em França. E depois, quando houve a revolução dos Cravos e ele teve dificuldades porque houve uma tentativa comunista de se apoderar do poder, eu fiz um grande artigo para defender Mário Soares em França. Porque muitos em França diziam que os portugueses não precisavam de liberdade, precisavam de pão. E eu disse que se tem de ter pão e tem de se ter liberdade.

O senhor está otimista em relação à juventude, acha que esta pode fazer a diferença?
Eu penso que parte da juventude tomou consciência dos problemas do planeta e espero que seja nessa tomada de consciência e nesse compromisso que possa encontrar a satisfação moral e participar no combate vital pela espécie humana.

Edgar Morin e Sabah Abouessalam escreveram a quatro mãos É Hora de Mudarmos de Via - As Lições do Coronavírus, publicado em Portugal em 2022, já depois de o filósofo se tornar centenário. O DN perguntou à socióloga franco-marroquina de 64 anos, sua mulher desde 2012, como vê o carinho e admiração pelo marido: "É verdade que sempre que acompanho o Edgar num evento público, fico emocionada. Eu talvez já não esteja num estado de admiração tão grande como estava no início. Mas por outro lado, acho que, sobretudo nos últimos quatro ou cinco anos, tenho assistido a algo que não consigo explicar a não ser como um sentimento de amor pelo Edgar que vai para além da obra. Que é algo que talvez se explique mais por este homem ser um grande humanista, e é esse humanismo que fala cada vez mais às pessoas. Sobretudo a uma certa juventude que está em perda de valores, em perda de referências. Há uma crise do pensamento, dos valores, da ética, uma crise política. E neste contexto de crise, acho que o Edgar tem uma mensagem em relação a tudo isto. E muitas pessoas, muitos jovens hoje vêm abraçá-lo, a tremer e a chorar."

leonidio.ferreira@dn.pt

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