Como é que Ana Quintans viveu tantos anos com esta voz sem a conhecer? A soprano acaba de brilhar num dos mais desafiantes papéis da história da ópera. Foi a Alceste na obra de Gluck, tragédia que cantou de pés descalços e com toda a força e fragilidade que lhe eram, à vez, exigidas. Quem a viu e aplaudiu no Teatro São Carlos não fazia provavelmente ideia de que só aos 23 anos a mais internacional cantora lírica portuguesa começou a estudar Música..Estávamos nos anos 1990 quando Ana Quintans, aluna de Escultura na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa, começou a ter meia hora semanal de aulas de canto na Juventude Musical Portuguesa. "Ia a correr, vinha a correr." O objetivo era estar à altura do convite que lhe tinha sido feito por Rodrigo Leão para cantar como segunda soprano..Nessa altura contava já muitas noites a ver teatro, dança e música, sobretudo os concertos na Gulbenkian, onde com o seu grupo de amigos da faculdade pedinchavam e ficavam "até à última" para os deixarem entrar sem bilhete. Quanto à descoberta da voz propriamente dita, "não tem uma razão muito lógica", afirma em conversa com o DN num dos camarins do São Carlos. "Aquilo que me fez perceber que a minha voz tinha alguma facilidade na região aguda e que eu tinha alguma facilidade na afinação foi ouvir Madredeus. Eu gostava muito da voz da Teresa Salgueiro e percebi que facilmente conseguia atingir essas notas e às vezes até mais agudo.".Aos 23 anos, sem saber música, e a acabar o último ano da faculdade, Ana entrou então no Conservatório Nacional. "Hoje já não seria possível, mas teve as suas vantagens. Eu já sabia o que queria, já tinha a bagagem das artes plásticas e a música entrou de forma muito contextualizada." Por outro lado, havia um imenso trabalho a fazer, sobretudo comparando-a com quem desde pequenino conhecia aquela linguagem.."Preparava-me muito. Se chegássemos a uma aula de classe de conjunta, de música de câmara, eu sabia que tinha colegas que iam para lá e liam à primeira vista. Sendo um handicap ter começado mais tarde, o esforço que eu depositei nisso acabava por me colocar muitas vezes numa posição até mais favorável do que pessoas que tinham começado antes de mim, e que se calhar liam obliquamente a partitura. Provavelmente é muito pretensioso o que estou a dizer, mas essa humildade de saber que não ia ser fácil também me permitia chegar às coisas com o caminho mais desbravado e mais livre para estar à escuta do que me estavam a pedir. Combato essa insegurança com trabalho, com dedicação. Isso foi uma coisa que sempre me acompanhou", recorda..Ana começou a perceber que seria mais feliz a cantar do que a moldar as esculturas cujo processo de execução tanto prazer lhe dava, mas nem tanto a sua criação, nem defendê-las depois. "Na escultura tinha muitas dúvidas em relação à pertinência do que fazia. Ser criadora é completamente diferente de ser intérprete. Criar não era uma força maior, uma coisa a rebentar dentro de mim. Com a música há um lado mais imediato, mais à flor da pele. Era uma forma de expressão que tinha muito mais que ver com liberdade, com entranhas e com instinto.".Além disso, havia o professor de canto, José Manuel Araújo, que lhe dizia: "Tu vais ter de certeza uma carreira. Isto vai dar frutos. Tens uma voz fora do comum, uma sensibilidade fora do comum." Ela ouvia incrédula, e, todavia, a pouco e pouco convencendo-se..O medo de não estar à altura veio novamente quando foi mãe, já então com uma carreira construída, e muito ancorada na música barroca, com que logo sentiu uma grande afinidade. "Enquanto o bebé precisa muito de nós, eu tinha muita dificuldade em ter tempo para me preparar e para estudar. Querer estar à altura dos outros obrigou-me a trabalhar muito. Este não é um meio fácil, porque estamos muito centrados em nós. A maternidade relativiza todas as coisas angustiantes da profissão e obriga-nos a saber gerir os recursos. Percebi os exageros que às vezes nos impomos. Percebi que se não é possível aquecer a voz, cantamos na mesma, se não conseguimos dormir seis ou oito horas, não é ideal, mas cantamos na mesma.".Quando pensamos no trabalho que está por detrás do mais intenso papel de uma ópera de três horas como é Alceste, o esforço vocal, físico, a partitura na cabeça, as palavras, a representação, os olhos centrados em si, não deixa de causar algum espanto quando, ainda sobre a maternidade, a ouvimos dizer: "Educar é talvez a coisa mais difícil que já me propus fazer. Não o posso moldar à minha imagem, tenho de o deixar ser ele, mas de alguma forma tenho de estruturá-lo. Esse exercício é útil para o trabalho. É uma espécie de abertura que se tem de criar: eu sempre aceitei a personagem. Ela está viva dentro daquele livrinho azul que é a partitura. Eu é que tenho de me encontrar ali e perceber o que há em mim daquela personagem. Aquilo sou eu, na verdade, a personagem. Eu não sou uma atriz. Aquilo sou eu à procura da personagem, a tentar pôr-me naquela pele.".Alceste, a anti-heroína.Do ensaio no palco vão chegando notas e uma voz. O mesmo palco que Ana Quintans poderia não ter pisado se não insistissem com ela depois do primeiro "não" que deu ao encenador Graham Vick. "Pensei: isto não é para mim. Nunca tinha feito um papel tão grande e tão extenso. E havia o peso da história, das grandes referências e gravações do passado, uma pedra em cima da cabeça. Tinha a ideia de uma heroína absolutamente forte, a tomar as rédeas do seu destino, no topo da forma vocal.".Mas quando foi estudar a obra daquela história de Eurípides, de sacrifício e de amor conjugal, Quintans descobriu outra Alceste, e descobriu-se, de certo modo, também a si. "É uma personagem forte e determinada, mas também muito frágil e muito humana, não tem esse lado idealizado da mulher heroína. Tem até muito de anti-herói, de alguém que está sempre a duvidar, que mostra a sua fraqueza e as suas hesitações e que faz aquilo porque sente que é o que tem de fazer.".A soprano, que sempre fez sobretudo papéis de rapaz ou de rapariga jovem, leve, e que se continua a sentir assim, uma miúda, tem também na sua natureza o lado maduro e trágico de Alceste. "Perceber que sou capaz de fazer um papel desta dimensão é revelador. Tenho 44 anos. Já não sou propriamente uma cantora jovem. Há uma geração com metade da minha idade capaz de cantar os papéis em que consolidei a minha carreira. Esta é uma possibilidade: explorar outro tipo de papéis. Até aqui arrisquei muito pouco na escolha de reportório. Este papel foi uma espécie de catarse.".Agora é altura de deixar Alceste. "É difícil no outro dia abrir outra partitura e começar do zero, deixar para trás coisas muito intensas. Esta música fez parte da nossa vida durante meses e ainda vai connosco na cabeça. Eu canalizo todas as coisas para isto, que nos acompanha nos sonhos, no dia-a-dia. É difícil acabar o trabalho e ser eu. Não há uma fronteira. Somos tudo aquilo.".Agora Ana Quintans vai ser outras coisas. Depois de um concerto em Hamburgo neste mês, voltará a ser Amore em Orfeu e Eurídice, na Ópera de Massy. Em abril tê-la-emos de volta a Lisboa, onde continua a viver, para ser o Cupido de Timão de Atenas.