O leão da Metro. Para várias gerações de espectadores, esta expressão condensou um verdadeiro culto cinéfilo: o emblema dos estúdios da Metro Goldwyn Mayer correspondia a uma imagem de marca de Hollywood e, mais do que isso, a um símbolo universal da própria ideia de cinema..Até que, no dia 26 de maio do ano da graça de 2021, em tempo de pandemia, a história da Metro sofreu uma dramática inflexão: a imagem simbólica do leão deu lugar ao rosto risonho de Jeff Bezos (literalmente, em diversos cartoons publicados na imprensa internacional). Dito de outro modo: o multimilionário anunciou que a Amazon, empresa nuclear do seu império, tinha adquirido a MGM. A fatura? 8,45 mil milhões de dólares, quase 7 mil milhões de euros..Que fazer com a nossa nostalgia cinéfila? Talvez apenas recordar que, de facto, a MGM entrou para a história como a empresa mais forte, quer em termos financeiros quer no plano mitológico, da idade de ouro de Hollywood..É um facto que as últimas décadas não foram gloriosas e a sua liderança das bilheteiras há muito se desvaneceu. Longe vão os tempos heroicos de Ben-Hur, a versão de 1959 protagonizada por Charlton Heston e dirigida por William Wyler, um dos títulos mais premiados na história dos Óscares (11 estatuetas douradas, incluindo melhor filme). O certo é que, quando consultamos os dados do box office corrigidos em função da inflação, o filme mais rentável de sempre continua a ser da MGM: E Tudo o Vento Levou (1939) acumulou mais de 1800 milhões de dólares (valor ajustado) no mercado dos EUA, o que, contas redondas, corresponde ao dobro de Avatar (2009), o mais rentável blockbuster do século XXI. Na prática, E Tudo o Vento Levou levou às salas escuras 202 milhões de espectadores, contra 97 milhões de Avatar. Sem esquecer que os números duplicam se considerarmos a performance internacional de E Tudo o Vento Levou....Em todo o caso, a objetividade destes valores está muito longe de esgotar o esplendor da história da MGM. Fundado em 1924, o estúdio nasceu da fusão de três empresas protagonistas do boom industrial e comercial do cinema mudo: a Metro Pictures, a Goldwyn Pictures e a Louis B. Mayer Productions. Louis B. Mayer, precisamente, viria a liderar a política do novo estúdio, aplicando uma estratégia fundada no cruzamento do apelo espetacular com a riqueza artística: e não deixa de ser revelador que um dos primeiros exemplos da sua eficácia tenha sido a versão de 1925 de Ben-Hur, de Fred Niblo, com Ramon Novarro..Mayer teve um fundamental colaborador na figura lendária de Irving Thalberg (1899-1936), produtor cuja visão estratégica e sensibilidade artística lhe valeram o cognome de Boy Wonder de Hollywood, misto de figura divina e anjo negro. O seu enigmático fascínio inspirou mesmo F. Scott Fitzgerald a escrever The Last Tycoon (edição portuguesa: O Último Magnate, Relógio d"Água). No romance, que permaneceu inacabado, a personagem de Monroe Stahr é uma assumida derivação de Thalberg: foi adaptado ao cinema em 1976, com argumento de Harold Pinter e realização de Elia Kazan (título português: O Grande Magnate), estando a personagem de Stahr entregue a Robert De Niro - ironicamente, não se trata de uma produção da MGM, mas sim da Paramount..Convenhamos que a cinefilia não basta para nos ajudar a compreender o investimento de Bezos. Aliás, esta compra nem sequer é um recorde da Amazon: em 2017, a companhia tinha gasto ainda mais (13,7 mil milhões de dólares - 10 mil milhões de euros) para adquirir a Whole Foods Market, uma multinacional de supermercados sediada em Austin, Texas..Que está, então, em jogo? Precisamente aquilo que os novos negociantes do audiovisual, cada vez mais ligados a uma cultura mediática em que o cinema deixou de ocupar o lugar central, já não chamam "filmes"... Agora, o que conta são os "conteúdos"..Triunfa, assim, uma lógica de supermercado: também na venda dos filmes, é fundamental encher as prateleiras com produtos apelativos pela sua diversidade. Que é como quem diz: para a Amazon, a consolidação da sua plataforma de streaming - Prime Video - exige um catálogo tão vasto quanto possível, combinando variedade, sedução e prestígio. Como consegui-lo? Comprando a MGM..Há outra maneira de dizer isto. O cinema dos EUA deixou de estar integrado num sistema fechado de estúdios (studio system, justamente, é a expressão consagrada para designar o classicismo de Hollywood), passando a existir, quer em termos financeiros quer no plano artístico, numa dinâmica fortemente dependente da complementaridade ou da concorrência das plataformas..O modelo Netflix tem dominado. É certo que a Netflix tem cada vez mais filmes, antigos ou recentes, que não produziu, mas o essencial da sua estratégia envolve a oferta de produtos originais, quer dizer, obras da sua própria produção (que mais ninguém difunde). Por vezes investindo mesmo somas gigantescas para poder ter no seu catálogo determinados nomes de prestígio. O caso de O Irlandês (2019), de Martin Scorsese, é esclarecedor: depois de mais de uma década a tentar obter financiamento junto dos grandes estúdios de Hollywood, Scorsese encontrou na Netflix a disponibilidade para concretizar o projeto - entenda-se: um cheque de 160 milhões de dólares (132 milhões de euros)..Desde 2015, a Prime Video, através da Amazon Studios, tem também apresentado muitos títulos originais, por vezes adquirindo significativa visibilidade. Neste ano, por exemplo, nos Óscares, havia quatro filmes com a sua chancela: O Som do Metal (nomeado para melhor filme do ano), Borat, o Filme Seguinte, Uma Noite em Miami e o admirável documentário Time; entretanto, o filme de abertura do Festival de Cannes - Annette, de Leos Carax - vai ser distribuído nos EUA pela Amazon. Mas a partir de agora o potencial de programação da Prime Video será incomparavelmente diferente: o património da MGM integra mais de 4 mil títulos de cinema e uma coleção de séries televisivas cujo número total de episódios está próximo dos 17 mil..Não por acaso, a franchise James Bond foi muito citada nas notícias da aquisição da MGM pela Amazon. Desde logo, porque 007: Sem Tempo para Morrer, 25.º título oficial da saga do agente secreto, aguarda estreia há mais de um ano (o seu lançamento global está agora agendado para setembro/outubro); depois, porque não parece possível que, para futuros títulos de 007, os elementos da família Broccoli que controlam a respetiva produção, abdiquem de considerar Bond como um produto específico das salas de cinema..Tendo em conta a imensidão da filmoteca da MGM, e apesar do potencial de lucro dos filmes de 007, esse parece ser apenas um pormenor. É certo que a história da propriedade do estúdio no último meio século tem sido, no mínimo, instável, envolvendo peripécias mais ou menos agitadas como a sua compra pelo multimilionário Kirk Kerkorian, a aquisição da United Artists (foi, durante algum tempo, a MGM/UA) e até um período em que uma parte do seu catálogo de clássicos pertenceu ao fundador da CNN, Ted Turner. De qualquer modo, a Prime Video passa a ter inusitadas hipóteses de programação. Como disse Bezos, numa reunião com os acionistas a 26 de maio, trata-se de "reimaginar e desenvolver" para o século XXI o catálogo da MGM..Afinal de contas, para lá de James Bond, a Amazon passa a controlar as franchises de Rocky (incluindo as sequelas Rocky/Creed em que Sylvester Stallone continua a participar), Hobbit (que Peter Jackson realizou na sequência de O Senhor dos Anéis), RoboCop (thriller de ficção científica iniciado por Paul Verhoeven) e A Pantera Cor-de-Rosa (paródia policial com Peter Sellers). Isto sem esquecer uma avalanche de títulos muito populares que inclui, por exemplo, Os Sete Magníficos (1960), O Silêncio dos Inocentes (1991) e Quatro Casamentos e Um Funeral (1994)..Recuando aos tempos clássicos, a MGM emerge também como o estúdio que manteve a mais sofisticada unidade de produção de filmes musicais, dirigida por Arthur Freed, contando com talentos como Judy Garland, Fred Astaire ou Gene Kelly; entre as suas obras-primas podemos encontrar Um Americano em Paris (1951), de Vincente Minnelli, Serenata à Chuva (1952), de Gene Kelly e Stanley Donen, ou Brigadoon (1954), também de Minnelli. Sem esquecer que, ainda antes, nomeadamente nas décadas de 1930-40, a MGM teve sob contrato nomes como Greta Garbo, Clark Gable, Johnny Weissmuller, Spencer Tracy, Katharine Hepburn, Ava Gardner e Cyd Charisse..De uma maneira ou de outra, um capítulo fundamental da história e das lendas de Hollywood vai passar a ser matéria de eleição na vasta paisagem, realmente planetária, das plataformas de streaming. No seu programa da CBS, The Late Show, Stephen Colbert lembrou mesmo que Bezos passa a ser proprietário da série The Apprentice, da qual alegadamente existem gravações, nunca emitidas, com comentários racistas do seu protagonista, Donald Trump... Eis um excelente extra, sugeriu Colbert, para uma reedição em DVD..dnot@dn.pt